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Foto: Ronald Mendes |
| Por Márcio Grings Fotos Ronald Mendes |
Talvez nem o próprio Vitor Ramil saiba, mas ele é um haijin. “Rigor, profundidade, clareza/ Concisão, pureza, leveza e melancolia”, é o que ele nos diz em “Milonga das Sete Cidades”, uma das minhas canções preferidas do bardo pelotense. Sem chance de equívoco, o interlace procede, pois esse trecho, inclusive se adequa aos preceitos e buscas de um haijin.
Aos desavisados, haijin é como são chamados os poetas que escrevem haicai, gênero poético nascido no Japão
feudal (hoje espalhado pelo mundo, inclusive no Brasil), onde em poucas linhas se diz muito, tendo a simplicidade e a concisão como força
motriz. Se você acha que estou maluco com essa associação, preciso informá-lo que, em seu último álbum, “Mantra Concreto” (2024), Vitor Ramil congrega quinze poemas
musicados da obra de Paulo Leminski (1944-1989), uma união que nos leva ao
sublime. Em tempo: Leminski é um carateca do rigor poético, amante da arte oriental, temos em sua obra um dos maiores
difusores do haicai no Brasil. Segue um trecho de "Profissão de Febre", poema de Leminski adaptado nessa leva:
Quando chove eu chovo/ Faz Sol eu faço/ De noite anoiteço
Mais haicai, impossível.
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Foto: Ronald Mendes |
Apesar do próprio Vitor afirmar que — a priori — o que o captura em uma canção é a melodia, e não a letra, é justamente na palavra escrita onde reside o quesito em que sou coptado. Muitas de suas letras, quando fatiadas, têm o poder de concisão de um haicai:
No pampa, meu pala a voar/ Esteira de vento e luar/ Vento e luar.
O trecho específico de “Semeadura” reforça os cânones da minha tese. Nesse exemplo, temos inclusive o kigô (na palavra "pala", termo da estação haicaísta que remete ao inverno gaúcho), além da própria relação com a natureza cósmica (vento, luar). São recortes dignos dos tercetos de Bashô, Buson, Issa e Shiki, mestres supremos da poesia oriental. E, assim como no haicai, há muitas pistas e elementos de concisão nas letras escritas por Ramil.
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Ainda versando sobre métodos, o show desta quarta-feira (3) — últimos dias de inverno com tempo instável em Santa
Maria — reproduz um modelo de espetáculo que mais me agrada: o cantor impecável, sua voz e um violão — ou violões, pois o músico utiliza dois modelos, peculiaridade necessária devido às afinações ambíguas utilizadas por ele. Pelo meu ponto de vista, levando em conta o artista e a qualidade do solista, minha crença se afirma nesse formato. Não sinto falta de uma banda de apoio. Quanto ao setlist, temos clássicos (e são muitos) e canções de sua produção mais
recente.
Leia reviews de outros shows de VR publicados no Memorabilia:
Durante 1h30min, Vitor Ramil se mostra à vontade no palco do Treze, um teatro centenário, pequeno, mas bem aparelhado, patrimônio e orgulho local, espaço cultural lotado com capacidade máxima, apenas 380 pessoas. A acústica impecável do Treze oferece uma rara intimidade
entre artista e público, ambos alinhados nessa noite. "Me chamem para tocar uma vez por mês aqui", diz ao público. Santa Maria sempre o recebeu com euforia, e não foi diferente dessa vez.
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Foto: Ronald Mendes |
Vitor está a fim de
papo, conta breves histórias entre cada composição apresentada, fala lentamente e nos envolve com suas descrições. Desse modo, traz lembranças e os bastidores
de suas criações, além de um acento peculiar: o bom-humor. Ri de si mesmo, brinca com o público e mostra presença de espírito quando esquece a
letra de uma canção que ele próprio escreveu (Loucos de Cara, um dos seus clássicos) — “é por isso que
não escrevo mais músicas tão longas”, diz ao emendar o erro, o que arranca risos da plateia. Conversa com uma criança à frente do palco (fala de sua relação com os filhos e netas), elogia a hospitalidade e o calor local, assim como relembra que essa energia santa-mariense talvez tenha sido propulsora para que — como reza a lenda — Lupicínio Rodrigues compusesse "Felicidade" no período em que morou na cidade (entre 1933-35).
As dinâmicas vocais — com vocalizes e scats diferentes das gravações — e as pequenas variações melódicas impõem riquezas únicas à apresentação, diferem os temas ao vivo daquilo que conhecemos dos álbuns. Cada show é único, esse é o recado, pois percebemos a espontaneidade pulsando durante o curso de uma canção. E, nunca esqueça de prestar a atenção na execução de seu violão, impecável (gosto muito do que ele faz em Mango).
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Foto: Ronald Mendes |
Como a apresentação
faz parte de uma das mais tradicionais e antigas feiras do livro do Rio Grande do Sul (só Porto Alegre está à frente), um artista antenado como ele faz questão de apontar no repertório temas em que ele explora poetas de grandezas
peculiares, como no caso do português Fernando Pessoa (Noite
de São João), e do alegretense João da Cunha Vargas (Deixando o Pago e Mango),
além do já citado Paulo Leminski (Teu Vulto, Um Bom Poema, Profissão de Febre). Destaque
para canções como “Terra”, versão do músico espanhol Xoel Lopes (Tierra), uma das minhas preferidas de “Campos Neutrais”
(2017), e o alvoroço no bis com “Semeadura”, momento supremo de delírio e ovação.
Nosso louvor a sua arte, kyōshi Ramil!
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| Coda |
Penso que Vitor Ramil poderia se inspirar nas apresentações de Eric Clapton no Royal Albert Hall, em Londres, onde constumeiramente emendava três ou quatro datas em sequência (anualmente), com sold out garantido. Muita gente ficou de fora do evento de hoje (li protestos nas redes sociais e presenciei lamentações ao vivo em frente à banca 20, espaço da editora Memorabilia na Feira do Livro, onde estou desde o dia 22). Assim, proponho uma residência anual de Vitor por aqui, com no mínimo três datas enfileiradas num final de semana qualquer. Seria um sucesso.
O leitor dessas linhas está de acordo?
SETLIST
Foi no Mês Que Vem
Não é Céu
Teu Vulto
Um Bom Poema
Noite de São João
Ramilonga
Terra
Estrela, Estrela
Profissão de Febre
A Ilusão da Casa
Loucos de Cara
Deixando o Pago
Mango
Bis
Joquim
Semeadura
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Foto: Ronald Mendes |
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