Vitor Ramil — 24 de outubro de 2024, Salão de Atos da PUCRS

Foto: Márcio Grings
| Por Márcio Grings |

Vitor Ramil não se parece com ninguém. Qualquer tentativa de catalogá-lo está fadada ao fracasso. Ele faz um tipo de música que conversa com o incomum, busca a excelência — é universal, é regional, é brasileira, é gaúcha — e, como artista inquieto, constantemente busca na literatura parte do sumo que constrói essa obra, o que materializa uma cosmologia distante anos luz de seus pares. A kriptonita de Vitor é o violão de aço, farol a iluminar essa trajetória. Por si, nesse lugar, já o vejo como poeta, afinal, músicos são bardos, fato consumado pela láurea de Bob Dylan em 2016, ano em que, para surpresa do mundo, o norte-americano levou o Nobel de Literatura "por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. 

Aqui, no sul da América do Sul, a epifania do compositor de 62 anos que segue criando novos cruzamentos poéticos dentro da música brasileira, traz 15 poemas musicados da obra do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989), conjugação que forjou seu 13º álbum de estúdio, "Mantra Concreto". Lançado coincidentemente no ano em que o escritor faria 80 anos, o novo trabalho conta com atuações de Carlos Moscardini (violão), André Gomes (sitar e guitarra), Santiago Vazquez (kalimba) e Toninho Horta (guitarra). Há ainda Vagner Cunha (violino e arranjo), José Milton Vieira (trombone) e Pablo Shinke (violoncelo), estes com participações especiais na apresentação desta noite. Isabel Ramil ilumina, Vini Albernaz é responsável pelas vídeo intervenções e Lauro Maia Pedro Schmitt fazem a técnica de som. 

Nos últimos nove anos, pela quinta vez o assisto ao vivo, o primeiro show em Porto Alegre e o primeiro que o vejo ancorado por uma espécie de banda, pois todos os eventos anteriores visto por estes olhos, ele esteve acompanhado apenas pelo seu violão (ou violões). Dessa vez, no Salão de Atos da PUCRS (Av. Ipiranga, 6.681), além do protagonista (violões, viola e voz), temos Edu Martins (baixo sintetizador e baixo acústico) e Alexandre Fonseca (bateria, tablas, percussão e programações), mesma dupla que caminhou ao seu lado em praticamente todas as faixas do novo álbum, além de dividir a produção com o artista pelotense.

Foto: Márcio Grings
première do show de "Mantra Concreto" se deu nessa quinta-feira, 24 de outubro, com ótimo público, apesar da noite instável de primavera na capital gaúcha. No show, nada de instabilidade, além das novas canções, Vitor resgata temáticas que julga estarem espiritualmente conectadas a essa nova lavra. O show inicia às 21h15 com "De Repente", mesma faixa que abre o CD, onde ouvimos a voz de Leminski dizer: "a música é o destino natural do ser humano". Em destaque uma presença legítima no set, O Velho León e Natália em Coyoacán” (uma das minhas preferidas), primeira faixa forjada com a poesia de Leminski, já conhecida no álbum "Tambong" (2000) e regravada em "Mantra Concreto". Antes de tocá-la, ele explica a analogia buscada pelo poeta parananese, unindo um drama vivido por Trótski, para então ilustrar a perda de um filho com Alice Ruiz.   

"Me dei por conta de que é incomum na música brasileira um cantor musicar poetas", disse Vitor dois dias antes ao programa Timeline da Gaúcha. 

Ao ouvi-lo dizer isso no rádio, lembrei de "Rosa de Hiroshima", poema de Vinicius de Moraes, talvez a mais célebre das adaptações póeticas da MPB, assinada por Gerson Conrad e eternizada na voz de Ney Matogrosso, destaque absoluto no primeiro álbum do Secos & Molhados, lançado no longínquo ano de 1973. Partindo desse sarrafo erguido há meio século, verter a poesia de um gigante da literatura brasileira, um faixa-preta com Paulo Leminski, sabemos — não se trata de uma tarefa fácil, pois são poemas que se sustentam por absorver uma luminosidade autêntica. Contudo, Vitor possui uma rara perícia e domínio neste ofício, vide o que já fez com a poesia de João da Cunha Vargas, Jorge Luis Borges e Angélica Freitas. Nessa ciranda, relembro um dos meus álbuns favoritos de todos os tempos, "Délibáb" (2010). 

Para quem está acostumado a assisti-lo solitário no palco, como eu, vê-lo no 'formato banda', mesmo com uma abordagem inicialmente contida, oferece um aspecto distinto para essa apresentação. E há mais. A cênica e a estrutura simples/ sofisticada agrupada no palco — luz e imagens ao fundo no telão —, assim como os samplers e cada pingo nos 'is' pontuado nos arranjos, o ótimo som que ouvimos tomar conta do Salão de Atos da Puc, tudo denota um  trabalho minucioso e bem pensado, o que resulta num show pronto para ganhar o país. Com ótimo humor, Vitor conversou e brincou com a plateia e os músicos e, como de costume, explicou o motivo das trocas de violões e da constante presença de seu roadie: cada violão traz uma afinação diferente. Em "Manifesto" ele usa até uma viola, em arranjo diferente do álbum (que conta com Toninho Horta na guitarra), pois, no show de hoje, nada de guitarras. Agradeço aos céus por isso, inclusive.  

Das 15 faixas de "Mantra Concreto", 11 são apresentadas ao público. Entre os highlights, milongas universais como "Administério" (com um falsete desafiador) e "Profissão Febre"; "Teu Vulto" é MPB clássica de alto quilate; A tabla e o sitar em "Anfíbios" e "Amar Você" integram o oriente e o ocidente; "Sujeito Indireto" é deliciosamente pop; "Profissão de Febre" é triste-bonita de doer; o clima jazzy de "Manifesto" nos ajuda a mergulhar na poesia da letra; sem forçar a barra, o blues bate de raspão em "Sujeito Indireto"; e "Caricatura", pelo menos para mim, é o mais bonito cartão-postal dessa feliz união entre Ramil e Leminski. 

Foto: Camila Gonçalves

Contudo, como show, o fato de Vitor misturar essa nova safra leminiskiana com canções de rigor poético semelhantes, potencializa uma intenção literária que nunca pode ser alijada da obra do músico. Direto de seu songbook, “Não é céu”, “Astronauta lírico”, “A ilusão da casa”, e o hit Estrela Estrela” ampliam o mantra concebido para o espetáculo. E, ainda temos aquela já conhecida voz clara e afinadíssima, apenas ela, como de costume, sem vocais de apoio, interpretações irretocáveis. É o caso de "Terra (Tierra)", a joia reluzente de "Campos Neutrais" (2017). Ao vivo, ela sempre me emociona. Um detalhe: quando as músicas antigas surgem na pauta o telão não projeta imagens. Nem precisa, pois eu mesmo projeto imagens dentro de mim. 

Por outro lado, há um superpoder invocado pelo artista ao lado de Edu Martins (que esbanjou talento e foi o grande solista da noite) e Alexandre Fonseca (um mestre da sutileza usando as baquetas como batutas). Essa energia de power trio compõe um tour de force onde — muitas vezes — os temas ganham encarnações próximas a energia do rock and roll. É o que sinto brilhar em "Loucos de Cara" e principalmente na primeira música do bis, "Joquim", quando o violino de Vagner Cunha (à la Scarlet Rivera em Joey), em arranjo alegórico ao que ouvimos em "Desire" (1976) e "Tango" (1989), aproxima a visão dylanesca de Ramil como nosso bardo maior. Como de fato ele é. 

Agradecimento especial: Branca RamilCida Herok  

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SETLIST | VITOR RAMIL | CENTRO DE ATOS DA PUC | 24/10/24

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DE REPENTE

TEU VULTO

UM BOM POEMA

ASTRONAUTA LÍRICO

MANIFESTO

ANFÍBIOS

NÃO É CÉU

O VELHO LEÓN E NATÁLIA EM COYACÁN

PROFISSÃO DE FEBRE

TERRA (TIERRA)

SUJEITO INDIRETO

ESTRELA, ESTRELA

A ILUSÃO DA CASA

AMAR VOCÊ

LOUCOS DE CARA

ADMINISTÉRIO

Bis

JOQUIM

CARICATURA (veja vídeo abaixo)

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