Vitor Ramil — Alegrete, 22 de outubro de 2022


Foto: Paulo Amaral 

| Por Márcio Grings | Fotos Paulo Amaral/ Sesc (exceto indicada)| 

O que motivaria você a viajar cerca de 3h — no bate e volta, num curto intervalo de tempo — apenas para assistir um show? 150 km, essa é a distância que separa Uruguaiana, cidade onde atualmente resido, do Centro Cultural Adão Ortiz Houayek, em Alegrete, local onde Vitor Ramil se apresentou no último sábado (22). O artista pelotense acaba de lançar uma versão celebrativa aos 25 anos de "Ramilonga" (1997), um de seus álbuns mais importantes, definidor de bases e pontos de vista que permanecem até hoje em sua obra. E, vamos lá: assistir Vitor Ramil ao vivo sempre foi um sentimento motivador, pois trata-se de um dos nossos artistas mais importantes. Não conhecia o local do evento, que além de um auditório com ótima estrutura para receber espetáculos, ainda abriga duas bibliotecas — uma adulta e outra infanto juvenil — afora o átrio onde ocorrem Mostras de Arte. Nesta ambiência, com som e luz adequados às característica do show, somado às cores de um público quente e receptivo, foi fácil perceber que se tratava de uma noite especial. 

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Foto: Paulo Amaral 
O show de Vitor, como anunciado, faria uma homenagem a João da Cunha Vargas (1900-1980), poeta alegretense muitas vezes musicado por ele. De origem simples, Vargas guardava todas suas poesias de memória e publicou apenas um livro — a obra póstuma "Deixando o Pago: Poesias Xucras" —, cujos poemas foram ditados a familiares ou transcritos a partir de registros de suas declamações registradas em fitas cassete. "Há poucos escritos publicados dele, se João da Cunha Vargas tivesse feito 100 poemas, teria musicado todos", disse o artista durante o show. O homem de origem simples, que viveu toda a sua vida como peão de estância, forjador de versos durante a lida campeira, é um dos grandes ídolos de Vitor Ramil. Essa devoção está eternizada em "Délibáb" (2010), álbum onde encontramos apenas poemas musicados da obra de Vargas e do argentino Jorge Luiz Borges, gigante literário sul-americano. "Mas afinal, a quê se deve o sucesso de "Délibáb"?", perguntou um repórter português numa entrevista para um jornal de Lisboa: "Eu não sei, pois o disco foi gravado metade num dialeto gauchesco e metade em espanhol. Achei que seria um fracasso", disse ao público alegretense, repetindo o que já havia relatado a apresentadora  Shana Müller durante o programa Galpão Crioulo da Rádio Gaúcha (ouça o podcast). Então, Vitor rebate o questionamento e pede para o jornalista dar sua opinião: "Para nós, aqui em Lisboa, é como se estivéssemos recebendo notícias de um lugar novo no mundo", afirmou o repórter. Nesse cruzamento sulista, uma conjunção entre as culturas uruguaia, argentina e gaúcha, está uma das chaves da trajetória de Vitor Ramil, uma obra que, como representação daquilo que somos, também é legitimamente brasileira.          

Foto: Paulo Amaral 
Essa foi uma das marcas do show em Alegrete: como contador de histórias, Vitor não teve pressa. Entre seus relatos, disse que "Causo Farrapo" foi composta no set de "Anahi de Las Misiones" (1997), produção argentino/brasileira dirigida por Sérgio Silva, mas não aproveitada na trilha. Lembrou aos presentes das origens da milonga, vinda da África, renascida na habanera cubana, chamada de 'blues de Montevidéu' pelo violonista uruguaio Alfredo Zitarrosa. Essa erudição, quase um workshop onde o músico fala sobre os processos de composição e as inspirações motivadoras de um compositor — de onde vem e para onde vão as canções — é um dos grandes momentos da apresentação, como se estivéssemos à beira de uma fogueira ouvindo as reflexões de um artista sobre seu ofício. Vitor ainda falou com carinho de uma de suas canções mais populares, "Deixando o Pago" (confessou que chorou após adaptá-la), e deu detalhes de como o poema "Gaudério" foi vertido — uma declamatória que, ao vivo, à capela, impressiona pela sua força. O cantor ainda disse que a relação com a poesia de Vargas colocou Alegrete no mapa de sua vida e, por isso, recordou diversas passagens pela cidade e as motivações que o levaram até a fronteira. Num show onde a vertente pop quase não apareceu, a chance de poder ouvir canções com temática essencialmente regionais como "Chimarrão", "Querência", "Pé de Espora", "Pingo à Soga", "Mango" e "Último Pedido" potencializam o poder dos escritos de João da Cunha. Tratam-se de relatos repletos de violência, impressionismos estéticos e expressões campeiras, mas que também trazem sensibilidade, descrições precisas de objetos e lugares, abrindo espaço para uma poesia exuberante  — contrastes forjadores de um legítimo faroeste gaúcho. 

Aos 60 anos, assistir Vitor Ramil ao vivo ainda é um experiência impressionante, seja pela técnica apurada na execução de seu instrumento ou pela confiança em que as músicas soam impecáveis na voz do cantor, feito um LP deslizando límpido no toca-discos. Os dois violões de aço Martin utilizados com diferentes afinações são a prova desse perfeccionismo em apresentar cores distintas de uma canção para a outra. "Sempre fico hesitante em sair de Pelotas. Gosto de tocar violão na minha casa. Não tenho essa necessidade de estar num palco, tocando. Mas quando estou na estrada, eu acabo curtindo”. Ouvi Vitor dizer essa frase enquanto rabiscava um autógrafo para um fã em 2015, após um show em que trabalhei na produção local, em Santa Maria. De todo o modo, foi visível a sensação de que estávamos todos integrados na mesma sala, um ambiente íntimo, compartilhando emoções e a amplitude da experiência musical propiciada por esse encontro entre público e artista no auditório local.    

Foto: Paulo Amaral 

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Além das músicas com letras de João da Cunha Vargas, destaque para "Milonga de Los Morenos", adaptação de um poema de Jorge Luiz Borges. O músico ainda declamou um poema inédito do poeta alegretense, enviado pelo seu filho, Zézu Vargas diretamente para o Whatsapp do artista: "Irei musicá-lo em breve", disse. No bis, após mais de 1h30 de apresentação, "Semeadura" talvez seja o símbolo dessa unidade e integração. Apresentada pela primeira vez em 1980, na Califórnia de Uruguaiana (quando foi vaiado), a letra fala sobre o desejo de um mundo mais justo, um lugar onde as pessoas possam dividir entre si o campo e o mar: "Nós vamos prosseguir, companheiro/ Medo não há/ No rumo certo da estrada/ Unidos vamos crescer e andar". A plateia cantou alto e vibrou com uma das grandes canções de protesto — não apenas de Vitor Ramil, que a compôs com apenas 17 anos —, mas também do cancioneiro brasileiro. Ao se despedir,  o "L" desenhado pelos dedos do artista foi o recado final dirigido à plateia. Ovacionado, só ouvi aplausos, vi sorrisos e percebi lágrimas de esperança. É uma alegria compartilhar a mesma época com um artista como Vitor Ramil, um privilégio que nos faz encurtar os espaços apenas para podermos respirar o mesmo ar e renovarmos essa bendita crença em dias melhores. 

Vitor Ramil em Alegrete foi uma realização da Prefeitura Municipal em parceria com o Sesc. O evento faz parte do calendário de comemorações dos 191 anos de Alegrete. Agradecimentos ao Portal Alegrete Tudo (informações sobre o espetáculo) e Paulo Amaral (Sesc), pelo suporte e fotos desta postagem.        

Setlist

Ramilonga

Noite de São João

Causo Farrapo

Gaudério

Deixando o Pago

Chimarrão

Milonga de Los Morenos

Querência

Pé de Espora

Pingo à Soga

Milonga das Sete Cidades

Mango

Último Pedido


Bis

Foi no Mês que Vem

Estrela, Estrela

Semeadura

Foto: Márcio Grings


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