Os Melhores Álbuns de 2022

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| Por Márcio Grings |

O texto de apresentação é o mesmo de sempre dos últimos tempos, com reduções e amplificações que se traduzem mais claramente ano após ano. Toda vez que vejo listas dos álbuns escolhidos em sites e plataformas especializadas em música, sinto-me assombrado. O mundo que eu conhecia não existe mais. Esse é o 12º ano em que publico uma listagem desse gênero. Contudo, sempre vale o aviso: muitas vezes algum álbum figurante do Memorabilia possivelmente não esteja ranqueado em outros sites de música. O que o leitor encontra por aqui sempre é uma visão particular, baseada naqueles discos que de uma forma ou outra acabaram caindo na micro teia que me circunda. Esse universo pessoal, caracterizado na forma de como vejo e ouço música, se espelha no modelo de como se davam as coisas no Século XX. Eis uma das marcas dessas escolhas — o saudosismo (ouça um seleção dos laureados pelo Memorabilia no player ao final desta postagem). 2022 foi uma ano difícil, mas boa música foi feita ou lançada nesses 12 meses. Na lista, artistas/ bandas do Brasil, Argentina, Suécia, Estados Unidos e Inglaterra. 

GUSTAVO TELLES & OS ESCOLHIDOS | "HOJE, AOS 43"


O álbum que mais ouvi em 2022 é uma confirmação: Gustavo Telles (e seus Escolhidos) mantém o sarrafo lá em cima, álbum após álbum. "Hoje, aos 43", 5° trabalho de Telles revela em primeira pessoa seus anseios e frustrações. Ele fala de sua travessia nos últimos anos, conforta-se na imparável renovação da existência, nos alerta dos extremismos políticos, exalta a capacidade de restauro em nossas vidas, mas sempre pelejando nas vicissitudes dessa trajetória. A narrativa passa pelo retorno à cidade natal do músico, relembra o exílio durante a pandemia, evoca medos e desejos, mas emerge com um fio de esperança no amor, um raio de sol e esperança que ilumina as consequentes reconstruções deflagradas por todo e qualquer imprevisto. É comum nos apropriarmos de suas letras, é fácil bater o pé ao embalo de seu rock and soul e de alguma tinta country rock aqui e ali. O disco foi gravado, mixado, masterizado por Luciano Albo (baixo, guitarra, violão, percussão, vozes e arranjos ), com Murilo Moura na coprodução (teclados e vozes de apoio), além do próprio protagonista (voz, baixo e bateria), com participações especiais de King Jim (saxofone e voz), Maurício Nader (guitarra, percussão e voz de apoio) e Rica Sabadini (violão). A faixa título, "O Farol" e "Mesmo assim estamos juntos" são destaques num disco onde cada faixa vale muito mais que um quinhão. Discaço. Leia review completo AQUI  

TEDESCHI TRUCKS BAND | I AM THE MOON 


A Tedeschi Trucks Band lançou entre abril e setembro uma série de quatro álbuns intitulada "I Am the Moon".  São eles: "Crescent""Ascension""The Fall""Farewell". Cada disco tem o seu filme equivalente postado na página da banda no YouTube. O grupo disse que a inspiração veio de um conhecido poema do século 12, "Layla and Majnun", escrito pelo poeta persa Nizami Ganjavi. Se o leitor tem a impressão de estar vivendo um déjà vu, a resposta é sim. Essa é a mesma obra que inspirou parte de de "Derek and the Dominos, Layla and Other Assorted Love Songs", LP lançado por Eric Clapton em 1970. Assim, Derek Trucks, Susan Tedeschi e seus comparsas narram essa saga de amantes infelizes movidos emocionalmente pelo isolamento e desconexão da era pandêmica. Cada um dos álbuns da 'série' "I Am the Moon" pode ser adquirido individualmente em vinil e CD, ou num box contendo o pacote completo. O que para muitos pode parecer pretencioso e megalomaníaco, no meu ponto de vista nos apresenta um dos grandes lançamentos do ano. Entre os destaques, músicas como "Fall In", "La Di La" e "So Long Savior" são a prova incandescente desse pacotáço vitorioso produzido por uma das melhores bandas da atualidade. 

WILCO | "CRUEL COUNTRY"


Jeff Tweedy começou a escrever algumas das músicas de "Cruel Country" durante as sessões de "Love Is the King", álbum solo gravado e lançado durante a pandemia de COVID-19. O músico trabalhou sozinho, auxiliado apenas pelo filho Spencer (bateria) e pelo produtor Tom Schick. Por outro lado, "Cruel Country" é um trabalho de banda. Todos os seis integrantes do Wilco gravaram ao vivo no estúdio, naquela mistureba repleta de vazamentos naturais que emprestam vida e movimento para as gravações. Após quase uma década sem novidades, o Wilco parece feliz nesse modelo onde o volume nunca estoura e o espírito dos anos 1970 renasce. "Cruel Country" é o álbum mais Neil Young do Wilco. Ouça temas como a faixa título, "Falling Apart" e "Tired of Talking It Out on You" e perceba essa ligação. 

DR. JOHN | THINGS HAPPEN THAT DAY


Dr. John viveu uma longa vida, falecendo em 2019, aos 77 anos. "Things Happen That Way" saiu só agora em 2022, mas é um senhor epitáfio. Além de Dr. John nas teclas, outra lenda de New Orleans, Jon Cleary, gravou teclados adicionais, como o Hammond B3 que pode ser ouvido em várias canções. O disco traz uma mistura de funk, jazz, blues e country rock, marcas de um artista que sempre expandiu as fronteiras étnicas e regionais. Ouça o arranjo incrivelmente sacana do clássico country de Hank Williams "Ramblin' Man" e entenda a diferença entre Dr. John e um monte de oportunistas. "Sleeping Dogs Best Left Alone" remonta o mais puro rock and roll ancestral com swing de sobra, assim como a regravação de "End of the Line" dos Travelling Wilburys é de chorar de alegria. Nomes como Aaron Neville, Willie e Lukas Nelson impulsionam ainda mais nossa empolgação em festejar esse canto do cisne de um dos artistas mais incríveis e originais do nosso tempo.  

FIRST AID KIT | PALOMINO


As irmãs Klara e Johanna Söderberg formam o duo First Aid Kit. Ouvir "Palomino", quinto álbum das cantoras/compositoras e multi-instrumentistas suecas, foi uma das boas surpresas de 2022. Elas até podem buscar inspiração Inicial nas raízes americanas — o que percebemos facilmente ao ouvi-las —mas o que elas fazem atualmente é pop de alta qualidade para ser apreciado sem rótulos ou preconceitos. A pancada de "Out of My Head" me pegou de primeira, assim como o baixo grave e a guitarra malandra de "Turning Onto You" abraçam o acústico e o country. "Ready to Run" é uma daquelas canções relevadoras, prova de que não estamos diante de uma farsa, pois as comparações com lendas como Everly Brothers (guardadas as devidas proporções) se justificam. Aposto minhas fichas em Klara e Johana, elas merecem ganhar o mundo. 

JOHN MELLENCAMP | STRICTLY A ONE-EYED JACK


Com seu 25º álbum, Mellencamp se apresenta como um músico sábio e reflexivo. O novo trabalho, autoproduzido, apresenta uma série de peças sombrias, ao estilo do que ouvimos em algumas canções de Nick Cave e Tom Waits. É o caso de "Driving in the Rain", quando 'dirigir na chuva', um eufemismo que o avô de Mellencamp usava para alertá-lo (quando jovem) da forma perigosa em que ele vivia, é rememorado durante a pandemia de Covid-19. "Esse é um termo antigo", disse Mellencamp ao Washington Post. "Meu avô costumava me dizer: 'John, é melhor você tomar cuidado ou logo estará dirigindo na chuva', o que significa que você está entrando em território perigoso. "Gone So Soon" traz o jazz dos cafés e a tristeza do fim de um relacionamento, tudo amplificado pelo solo de trompete de Joey Tartell. O segundo single do álbum, "Chasing Rainbows", nos lembra do bordão que o dinheiro não traz à felicidade e nos aconselha a reconhecermos as bênçãos diárias. "Strictly a One-Eyed Jack" ainda conta com a participação de Bruce Springsteen, não em uma, mas em três faixas. A melhor delas, "Wasted Days", revela o ponto de vista de um homem que sabe que seus dias estão contados, mas disposto a aproveitar cada raio de sol que surge a cada nova manhã. 

 TEARS FOR FEARS | THE TIPPING POINT 


"The Tipping Point" é um retorno triunfal para o Tears for Fears. De cara, na surpreendente abertura de “No Small Thing”, na fusão de dedilhados acústicos, percussão e acordeom,  o duo evoca o folk dos anos 1960 e 1970. Ao retornarem com o primeiro single (ainda no ano passado), já percebíamos que a química continuava intacta. O videoclipe é uma pequena obra de arte, com destaque para o impacto inicial ao vermos os cabelos brancos de Roland Orzabal e o rosto envelhecido de Curtis Smith, lembrança de que a implacável ação do tempo não poupa ninguém. Roland teve dias difíceis no final da década passada. Sua esposa, Caroline, viveu um longo calvário de depressão e demência, algo que levou o seu marido ao fundo do poço depois de sua partida. Por outro lado, como uma das principais armas dos grandes artistas, impulsionado pelas dificuldades, o músico novamente começou a compor. Mesmo assim, seus problemas com o álcool chegaram ao momento mais crítico de sua vida, o que acabou por jogá-lo numa clínica de reabilitação. Meses depois, já recuperado, com o incentivo de sua nova namorada, a fotógrafa Emily Rath, Roland se encontrou com o velho parceiro de banda, quando então resolveram reviver a fera que os tornou conhecido mundialmente. "The Tipping Point" é o símbolo dessa virada e reaviva uma das boas bandas nos idolatrados anos 1980/90.   

LÉON GIECO | EL HOMBRECITO DEL MAR


Depois de 11 anos sem lançar um disco de inéditas, León Gieco, 71 anos, lenda viva da música pop argentino, acaba de lançar "El hombrecito del mar", um álbum que faz jus a sua estatura artística, com participações de Roger Waters, Lila Downs, Gustavo Santaolalla e Silvio Rodríguez. O disco traz 13 canções, todas compostas por León Gieco e Luis Gurevich, com exceção das versões de “Sueño con serpientes” (Silvio Rodríguez), “Estuche” (Alicia Scherman, Leon Gieco e Luis Gurevich) e “Gira , vira, girassol” (Víctor Jara), em que se ouve a voz do próprio Jara, cantor e compositor assassinado pela ditadura chilena, além da narração de Roger Waters. Para as sessões, Gieco contou com um supergrupo formado por Vinnie Colaiuta (Sting, Jeff Beck) na bateria; Leland Sklar (James Taylor, Phil Collins) no baixo; Dean Parks (Steely Dan, Michel Bublé, Bob Dylan, Stevie Wonder, Michael Jackson) nas guitarras; Luis Conte (Madonna, Clapton) na percussão; Jerry Douglas (Eric Clapton, Paul Simon, Elvis Costello) no dobro; Michael Thompson (Elton John, Rod Stewart); Gustavo Borner e Luis Gurevich nos teclados. "El orgullo", tema que encerra o disco, é uma daquelas canções que mostram o autêntico Léon Gieco, um artista único e original. 

TAJ MAJAL + RY COODER  | GET ON THE BOARD


Há 54 anos, Taj Mahal e Ry Cooder gravaram juntos pela primeira vez, quando Cooder tocou no álbum solo autointitulado "Taj Mahal" (1968). Meio século depois a dupla novamente une forças para homenagear dois músicos de blues cujo estilo os influenciou profundamente — o gaitista Sonny Terry e cantor e violonista Brownie McGhee —, mestres do blues acústico. "Get on Board" reúne onze canções utilizadas no repertório ou compostas por Terry e McGhee. Taj Mahal contribui com gaita, violão, piano e vocais, enquanto Cooder canta, toca violão, bandolim e banjo. Além deles, apenas o  filho de Cooder, Joachim, se junta à dupla no baixo e na bateria. Só por unir um duo desse quilate, somado a louvável intenção em homenagear uma das parcerias mais saudosas da história da música negra, o álbum já mereceria nossa atenção. Trata-se de uma aula de blues acústico, onde o bordão 'menos é mais' faz todo o sentido, num álbum onde cada faixa é um highlight e cada segundo vale o quanto pesa.

JETHRO TULL | THE ZEALOT GENE


As melhores músicas do "The Zealot Gene" são onde a banda se inclina para o folk rock. Afinal, para muitos (inclua-me nessa), essa sempre foi uma das grandes virtudes do som do Jethro Tull, um grupo com a digital de seu líder e principal criador (o dono da bola), Ian Anderson. Tal como acontece com muitos álbuns de Jethro, o novo disco exige mais do que uma audição superficial, principalmente se o ouvinte está disposto a se aventurar pelas curvas sinuosas do progressivo. Os arranjos intrincados e a instrumentação repleta de amarras e desvios resultam em uma exibição demonstrativa que continua digna da lenda e do legado de Tull. É aquela história, o Jethro é uma daquelas bandas que podem gerar amor e ódio, sem meios termos. "Jacob's Tale", "The Betrayal of Joshua Kynde" e "Where Did Satuday Go" são provas vivas de que Ian e os seus ainda tem lenha pra queimar. 

BLUES ETÍLICOS | BLUES ETÍLICOS 35 ANOS

Fora do Spotify e das plataformas de streaming, "Blues Etilicos 35 anos" relê a trajetória da mais importante banda do blues nacional. Leia review completo AQUI Partindo dessa visão de retrospecto e tendo o blues como mote principal, o novo CD é proficiente em não manter as estruturas do gênero dentro de uma redoma. Até porque estamos falando de um conjunto musical sul-americano, tão brasileiro quanto o próprio Greg Wilson, guitarrista, compositor e vocalista da banda, o mais carioca dos estadunidenses. Com suas canções revisitadas (+ duas inéditas), “Blues Etílicos — 35 anos” nos leva para um lugar onde o blues pode ser o que ele quiser. Assim, o legado do grupo se propaga como a poderosa mandinga de um Preto-Velho, esse bluesman andarilho que habita o corpo físico de muitos, graças ao mojo espalhado pela Rosa-dos-ventos do quinteto. Se estivesse disponível em streaming, na minha playlist de resumo do álbum — "Waterfalls", Misty Mountain" e "Puro Malte" certamente entrariam no player. 

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