O dia em que abracei Ken Parker

Foto: Lobo (Brasa)
| Por Márcio Grings |

Via BR-287, são pouco mais de quatro horas de carro — 288 quilômetros separam Santa Maria de Porto Alegre. No total, mais de oito horas de estrada, ida e volta. Fiz esse trecho no mesmo dia, 11 de setembro, saindo de uma gripe e de uma maratona de quinze dias na Feira do Livro de Santa Maria. Estava exausto, mas também tomado por uma motivação rara. Não era um encontro qualquer que me esperava na capital gaúcha.

Saiba mais sobre Ken Parker

O quadrinista italiano Ivo Milazzo, 78 anos, desenha profissionalmente há mais de meio século. É um dos artistas mais respeitados da Europa no gênero. Tex, Nick Raider, Mágico Vento — todos já tiveram edições sob sua pena. Obras como Welcome to Springville, Marvin, o Detetive e Tom’s Bar, em parceria com Giancarlo Berardi, marcam sua trajetória. Mas nada supera a mítica criada em Ken Parker, fruto da mais célebre colaboração da dupla Berardi/ Milazzo.

A trilha-sonora de Ken Parker

Ken Parker é o anti-herói por excelência, carregado de dramas existenciais e afinado com narrativas literárias. Nas suas histórias, somos pulverizados por dramatizações que promovem interlace com obras de Shakespeare, Poe, Marx, Thoreau, Hawthorne, Melville. Ken é um humanista, defensor da natureza, guia civil do Exército, montanhista, trapper, pacifista, misantropo, atento ao massacre indígena, sentimental demais para um mundo tão brutal. Tudo isso nos leva até um dos personagens mais fascinantes do western em quadrinhos.

Inspirado no já saudoso Robert Redford (que nos deixou nessa semana) de Jeremiah Johnson (Mais Forte que a Vingança, 1972, de Sidney Pollack), Ken Parker nasce impregnado pelo ecrã. Amplitude de espaços, enquadramentos narrativos — impossível ler sem projetar um filme em cada sequência de imagens. Cinema, literatura, teatro, a história da Conquista do Oeste e o imaginário do faroeste dos anos 1960 e 70 forjam um alicerce sólido. Trata-se de um personagem único em seu gênero.

Leio Ken Parker desde 1982 (no Brasil começou a ser publicado em novembro de 1978), quando tinha 11 ou 12 anos. Desde então, nunca mais me deixou. Tenho toda a saga, em alguns edições desgastadas, de tamanhos variados, outras novas, compradas fora de ordem, muitas publicadas de modo errático e em periodicidade bissexta. No entanto, passado o tempo, em 2025 reencontramos Ken em melhor forma: a editora Mythos está relançando a série completa em capa dura (o volume 31 já em pré-venda). Assim, cá estou eu, recomprando exemplar por exemplar, religiosamente, a cada dois meses.

Porto Alegre, 5.9.25. Imagem do casamento de Ivo Milazzo e Lu Vieira. Foto: Antônio Manieri 
Ivo Milazzo já esteve seis vezes no Brasil (1993, 1999, 2001, 2003, 2013 e agora). Mas esta foi sua primeira passagem por Porto Alegre. Ficou na cidade por quase um mês, entre agosto e setembro, participando de eventos no RS e no Paraná. O marco maior de sua visita, no entanto, não foi artístico: no dia 5 de setembro, casou-se com a porto-alegrense Lu Vieira. Eles vivem hoje em Chiavari, na província de Gênova, onde compartilham o mesmo estúdio de criação. No ano passado, a artista gaúcha lançou Boa Tirada, HQ em que roteiriza a própria vida. (Em tempo: meu último livro Bicho-do-Mato (2022), tem uma ilustração dela na contracapa). Curiosamente, antes de entrelaçar a vida com Milazzo, Lu Vieira viveu em Milão com outro desenhista de Ken Parker, Carlo Ambrosini (Dylan Dog, Napoleone), com quem casou em 2023. Ambrosini morreu ao final do mesmo ano, aos 69 anos.    

Lu, eu e Ivo. Foto: Lobo 
Conheci Lu na pandemia, num grupo de WhatsApp que reuniu fãs de Ken Parker espalhados pelo Brasil. A amizade virtual virou ponte: combinamos um encontro com o casal na Brasa Editora, na José do Patrocínio.

Por volta das 15h, eles chegaram ao local combinado. Abracei primeiro Lu, que eu ainda não conhecia pessoalmente. Antes de abraçar Milazzo, confessei:

— Quem me trouxe aqui não foi o Márcio de 55 anos, mas o moleque de 12 que lia Ken Parker. De pronto sorriu e elogiou minha camiseta (obrigado, Bellé!). 

Incrível, não tinha feito a conta! Ken Parker me acompanha há 43 anos. Sempre digo à minha esposa: “Ken me ajudou a construir valores, mostrou caminhos, deu exemplos de integridade, de humanismo, de consciência ecológica e política — e até fomentou minha paixão pela poesia. Descobri Walt Whitman em suas páginas!”

Na sacada com Ivo. Foto: Lu Vieira
Enquanto o casal resolvia compromissos na editora, fiquei discretamente de lado. Logo depois, Lobo, o gentil proprietário do espaço — livraria, bar e editora sob o mesmo teto — nos ofereceu uma cerveja. E lá estava eu, próximo a uma sacada ensolarada, tomando um long neck ao lado de Milazzo, como se fôssemos velhos amigos.

Aí eu te digo, o que perguntar a um ídolo?

O que está achando de Porto Alegre? — perguntei. Lu traduziu.
Parece Blade Runner — respondeu ele. — Distópica.

A comparação faz sentido. Cidade Baixa, fios emaranhados nos postes, prédios em ruínas, moradores de rua circulando, pixações por toda parte. Para alguém que vive numa cidade histórica, preservada, não parece difícil enxergar um cenário de ficção científica.

Foto: Lu Vieira
Contei que tinha adorado Um Dragão em Forma de Nuvem (Figura, 2024), sua obra mais recente lançada por aqui. Ele comentou que chorou ao ler o roteiro de Ettore Scola, escrito para cinema e transformado em graphic novel — o último projeto artístico do lendário diretor. O filme chegou a entrar em pré-produção, mas foi engavetado após um atrito com Silvio Berlusconi, então dono da produtora que tocava o longa, além de acumular o cargo de primeiro-ministro da Itália. Assim, o cineasta abandonou o projeto, que teria como protagonistas Gérard Depardieu e Nastassja Kinski. Desde então, preferiu dedicar-se aos netos e aos livros. Assim, Ivo e Ettore trabalharam juntos e, dois anos depois de a HQ sair na Itália (2014), Scola morreria, aos 84 anos. Dica: leia a graphic novel como se fosse um filme, pois de fato é o que temos em mãos. Obra-prima! 

Foto: Lu Vieira
Voltando ao nosso encontro, Milazzo acaricia um gato da casa enquanto outro investiga minha ecobag cheia de HQs. Entrego alguns livros que editei pela Memorabilia. Ele elogia a edição de "Meu Primeiro Livro", tradução de um texto inédito de Robert Luis Stevenson. Fica um tempo olhando as ilustraçoes de Louis Rhead, extraídas de um edição de 1915. Descemos ao bar. Ele, generoso, carrega meus exemplares, autografa todos e faz alguns desenhos exclusivos. Emocionante! Depois, fomos à esquina registrar o momento em fotos. A esquina de uma cidade que, na imaginação de Ivo, evoca Blade Runner.

Não quis tomar mais tempo do casal. Agradeci, abracei Lu, dei um último abraço em Milazzo — o mais caloroso que já ganhei de um gigante — e, ao final, ele me disse sorrindo:

— Obrigado pelo carinho.

Eu, nem sabia o que dizer. Eu, sorri em silêncio.

Menos de uma hora depois, estava na estrada de volta. Gostaria de ter perguntado muito mais. De todo modo, foi épico. Estive diante de um ídolo máximo. No meu altar de referências, coloco esse encontro no mesmo degrau de estar frente a frente com Bob Dylan. E Dylan, convenhamos, nunca vou encontrar (nem quero!).

Horas depois, já em casa, minha esposa perguntou:

— Como foi?
Respondi:
— Foi como se eu tivesse abraçado Ken Parker de carne e osso.

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Coda:

Em tempo, em breve a editora Trem Fantasma colocará à venda "Tiki", primeiro personagem da dupla Berardi/ Milazzo, graphic novel que relata a saga de um menino indígena brasileiro. Tive a honra de assinar o posfácio em parceria com o editor, Lucas Pimenta. A edição definitiva de Tiki ainda conta com texto inédito de Eduardo Bueno.  

Agradecimento especial: Lu Vieira.      

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