Luciano Leães volta a New Orleans para finalizar seu próximo álbum. Músico também fará uma série de shows em dezembro

Foto: Kyuwon Kim
| Por Márcio Grings

Reggie Scanlan, Tom Worrell, Jake Eckert, Cornell Williams, Terence Higgins e Pat Byrd, nomes importantes do cenário de New Orleans, já reconhecem o talento de Luciano Leães. Quando toca seu instrumento, o músico gaúcho é considerado um dos principais pianistas no estilo New Orleans, isso sem abandonar suas influências como  artista brasileiro e latino-americano. Em dezembro, celebrando a pluralidade das Américas e a singularidade de suas músicas, o artista retorna à cidade que hoje considera uma ‘segunda casa’ para concluir as gravações de seu terceiro álbum (ele já esteve lá em maio/ junho), além de cumprir agenda de apresentações. Algum desavisado pode se perguntar: como um músico sul-americano passou a ser reconhecido nesse seleto grupo? Reggie Scanlan, baixista dos Radiators, pode nos dar uma pista: 

"Eu simplesmente adoro tocar com esse cara! Luciano Leães é autêntico. Seu groove é funky e profundo demais para ser medido. Já toquei com alguns dos melhores e posso dizer que ele traz nas suas performances toda a paixão e técnica que eles tinham.

Pat Byrd, filha de Professor Longhair, um dos pianistas mais celebrados nos Estados Unidos, destaca o talento de Leães em verter um vernáculo tão peculiar:

"Quando me lembro de Luciano Leães, ele não é uma presença insólita. Muitos já o assistiram tocando por aqui [em New Orleans]. Quando recorre ao espólio do meu pai, é um dos melhores pianistas para figurar neste papel". O depoimento de Pat denota a admiração e irmandade dos residentes. "Me sinto adotado pelos amigos que fiz lá, como se fizesse parte de uma grande família musical", afirma Leães. 

Foto: Monica Kelly

Para alguns pode ainda soar inusitado o fato de a revista britânica Blues Matters, principal publicação de blues da Europa, ter batizado o pianista gaúcho de Brazilian Professor, em referência a Professor Longhair. Seria um exagero? Conforme publicado no site do New Orleans Jazz Museum, que o nomeou como o principal representante do piano de New Orleans no Brasil — e provavelmente na América Latina —, Leães foi o primeiro músico brasileiro a se apresentar na instituição, e isso dilui qualquer dúvida a respeito do seu talento (saiba mais AQUI). 

Há exatos 10 anos, em 2014, Leães pisou pela primeira vez em New Orleans. Desde então, tem feito peregrinações pela cidade, apresentando-se em bares, casas de espetáculos — como Tipitina's e Maple Leaf — e festivais como o Jazz Fest e Crawfish Fest. Não sem surpresa, as mais recentes celebrações anuais dos aniversários de Professor Longhair e James Booker — uma tradição local —, contaram com sua presença no palco. 

Foto: Kyuwon Kim
O COMEÇO DE TUDO

Voltando ao início, tentando achar uma lógica de como tudo começou, é preciso lembrar que Luciano Leães cresceu cercado por um ambiente musical, imerso em discos de vinil. Ainda muito jovem, passava horas debruçado ao piano. Ele não era o único da família. Na casa da avó, seus tios, Laquito e Ivan, tocavam piano diariamente. Embora não fossem músicos profissionais, se expressavam com paixão e habilidade. Anos depois, uma das músicas lançada por Leães na rádio WWOZ (New Orleans) e no Maple Leaf foi batizada de “Odila y Maneco” (nomes de seus avós), homenagem onde, na lembrança do pianista, surge à lembrança do casal dançando tango naquela mesma sala onde ele aprendeu as primeiras notas.  

Aos 14 anos, enquanto a maioria dos amigos de sua geração estava mergulhada no rock 'n' roll, Leães só tinha olhos e ouvidos para o universo do blues e do R&B. Ao ouvir e tocar as músicas de Chuck Berry — com o radar apontado para o piano de Johnnie Johnson e Lafayette Leake —, consequentemente chegou até Otis Spann, Pinetop Perkins e Sunnyland Slim. Mas, ao descobrir as canções de Professor Longhair, James Booker, Dr. John, Allen Toussaint e Champion Jack Dupree, seu coração encontrou o compasso até a batida perfeita. Assim, começou a forjar seu estilo, enlameado pelo som do blues, R&B, soul, funk e do piano de New Orleans. Nesse compasso, aos 20 anos ele já dividia o palco com nomes como Carey Bell e Hubert Sumlin — atuando como músico de apoio em turnês pelo Brasil.

Com Pat Byrd e os amigos de New Orleans. O menino com o braço levantado é neto de Professor Longhair. Foto: Annie Whitson
O SANTUÁRIO

Nessas peregrinações à Meca de seu universo musical, ele ainda busca se impregnar da essência dos personagens que o inspiraram — comer, beber e caminhar pelas mesmas ruas onde os ídolos um dia gastaram a sola de seus sapatos. Para ele, é fundamental respirar o mesmo ar, apreciar os mesmos cenários, circular pelos bares e prédios que parecem resistir ao teste do tempo, e assim absorver o último sopro de uma época irresgatável. Ainda na sua primeira ida até lá, em 2014, conheceu Pat Byrd, filha de Professor Longhair. De imediato, Pat e Luciano se conectaram, irmanados pela paixão profunda de ambos na cultura musical de New Orleans. Pat viu em Luciano traços artísticos do pai, e percebeu o respeito e a reverência do músico brasileiro ao seu legado.

Pat Byrd é conhecida entre os locais por promover street parties em frente à sua casa, onde Leães conheceu Lionel Batiste Jr., Reggie Scanlan e Tom Worrell, um dos principais pianistas de New Orleans. O que começou como uma simples colaboração musical rapidamente evoluiu para uma forte amizade. Juntos, Tom e Luciano, realizam anualmente o show Piano Twins no Buffa's, acompanhados por uma série de convidados da cena local, incluindo o talentoso percussionista Michael Skinkus.

Terence Higgins, Cornell Williams e Jack Eckert com LL em frente ao Rhythm Shack Studio. Foto: acervo pessoal
CIDADES IRMÃS

Há algo transcendente em como os destinos de Porto Alegre e New Orleans se cruzam, ambas cidades situadas no Paralelo 30, urbes marcadas por enchentes e por uma profunda conexão com matrizes africanas. A capital gaúcha possui o maior número de quilombos urbanos no Brasil, fortemente ligados à história da cidade e à resistência cultural, especialmente na preservação das tradições afro-brasileiras. Entre eles está o Quilombo do Areal, berço do samba em Porto Alegre. Já New Orleans foi o destino de inúmeros afro-americanos e produziu um caldeirão multicultural sem precedentes, percutindo nas origens do blues e do jazz. Tomando por base essa conexão, independente se a língua falada é o inglês, espanhol, francês ou português, como sabemos, a cultura afro-americana forjou uma parte significativa da massa cultural vigente nas Américas e até mesmo na Europa, incluindo a música de Luciano Leães. 

Piano Twins. Foto: Annie Whitson
Com dois álbuns gravados, "The Power of Love" (2015), c/ The Big Chiefs), e "Live at Pianístico" (2022), c/ Edu Meirelles e Roni Martinez, a jornada musical já possui um refrão definido, pois, partindo de Porto Alegre, Leães sempre retorna à New Orleans. Essa ponte invisível onde a arte e a música desconhecem fronteiras, une culturas e corações. As novas canções produzidas pelo pianista nos últimos meses comprovam essa ligação. 

Desde a pandemia, Luciano Leães vem refletindo sobre a gravação de um novo álbum. À medida que se irmanava com os artistas e a cultura de New Orleans, o artista passou a perceber com mais naturalidade as profundas raízes de onde erigiram a música da cidade. Por outro lado, a consciência de ser um musicista latino-americano, e a aceitação dessa natividade, oferece um blend peculiar as suas novas canções. Assim, quando ele pisa no território do blues, jazz e R&B, jogando esses ingredientes num mesmo caldeirão, somos apresentados a obras genuínas como "Fessta Brasilis" e a música "Odila y Maneco".   

Com Lionel Batiste e Peanut Andrews. Foto: arquivo pessoal
NOVO ÁLBUM

Com o lançamento previsto para o primeiro semestre de 2025, o trabalho gravado em New Orleans traz elementos de R&B, soul, funk e uma boa dose de sua bagagem latino-americana. O músico  estreitou laços com o guitarrista e produtor Jake Eckert, proprietário do Rhythm Shack Studio, que se colocou à disposição para auxiliá-lo em novas gravações. E Jake não economizou elogios ao músico brasileiro:  

Foi uma alegria trabalhar com Luciano no estúdio aqui em Nova Orleans. Luciano é um músico muito genuíno e aborda a cultura musical de Nova Orleans com maestria, amor e respeito. Ele sempre terá uma cadeira cativa aqui no Rhythm Shack Studio". 

Leães produziu uma música de Lionel Batiste Jr. no estúdio e a afinidade com Jake foi instantânea. Além de admirar o trabalho de Jake, Leães sempre esteve atento ao talento de seu filho, o pianista prodígio River Eckert, com quem dividiu o piano em diversas apresentações a quatro mãos. Assim, com o incentivo de Tom e Jake, Leães decidiu gravar seu novo álbum ali mesmo. 

A ideia era trazer suas composições e entrar em estúdio com músicos locais, deixando as ideias fluírem naturalmente, guiado pela serendipity de New Orleans. Parte das canções contaram com a colaboração de Tom Worrell nas letras, um de seus grandes amigos e parceiros musicais: 

O Brazilian Professor caminhou com passos firmes rumo ao templo do funk de Nova Orleans! Seu futuro álbum nos liga à herança dos grooves dos Meters, Dr. John e Allen Toussaint”, afirma Worrell. 

Em frente ao Maple Leaf, noite de apresentação de Luciano Leães. Foto: acervo pessoal
Vindos diretos da estrada, juntam-se ao projeto nomes como Terrence Higgins (bateria), que havia acabado de voltar de uma turnê com a cantora Mavis Staples, e Cornell Williams (baixo), que chegou justamente na primeira manhã em que os músicos estavam reunidos. Coincidentemente, Cornell tinha finalizado uma turnê com Jon Cleary, uma das maiores influências de Leães. 

A concepção musical que ele trouxe para dentro do estúdio facilita o trabalho dos músicos. Luciano emana uma vibração contagiante”, nos disse o baixista. Higgins também não poupa elogios:  

Que ótima sessão tivemos com Luciano, ele é o cara. O vejo como um dos grandes músicos do nosso tempo, eu amo suas músicas e devoção dele pela nossa cultura. Quando toca o piano, o brasileiro invoca o espírito dos gigantes do passado”. 

O time de músicos ainda conta com John Fohl, guitarrista e compositor que trabalhou com Dr. John, além de Lionel Batiste Jr. (que faleceu em julho deste ano), o amigo Tom Worrell, Revert Andrews e o já citado River Eckert. Outros artistas locais devem se somar ao projeto até dezembro. Endossado por essa narrativa repleta de personagens confiáveis, o álbum obtém credenciais para se tornar um marco em sua carreira. Já estamos ansiosos para conhecermos o desfecho dessa história. 

No backstage do Tipitina's. Foto: Annie Whitson

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