Review: Graxelos e sua música entre-lugares

    Arte sobre foto de Zé Carlos de Andrade por Diego De Grandi
| Por Romero Carvalho |

O que define uma fronteira? Qual o critério que distingue países, culturas, povos em “cercas embandeiradas que separam quintais”? Uma linha no mapa, uma aduana, uma guarita, um famigerado muro do Trump. Ou um dialeto, a culinária, a indumentária, a linguagem artística. Seja qual for a tentativa, fronteiras sempre foram problemáticas na América Latina e costumam ser ainda mais frágeis na arte popular. O primeiro disco dos Graxelos é um retrato sonoro dessa impossibilidade de encoleirar em uma fronteira imaginária uma expressão de arte. Feito esse preâmbulo, fica o fato: o álbum “Shangri-Lá” é candidatíssimo a disco do ano. E ainda estamos em março.

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Arte sobre foto de Zé Carlos de Andrade por Diego De Grandi
Reunindo músicos experientes de três cidades gaúchas — Porto Alegre, Santa Maria e Vacaria —, o supergrupo traz composições de Gustavo Telles e letras do meu parceiro de podcast Quando o Som Bate no Peito, o poeta e jornalista Márcio Grings (que também toca gaita de boca no álbum). Telles, que além das belas melodias, traz sua voz precisa, violão e bateria, é acompanhado de Márcio Petracco, em um trabalho primoroso de guitarras, pedal steel, voz de apoio e outras cordas; o piano, voz e teclados de Murilo Moura, outro destaque do disco; baixo, violão e voz do multi-instrumentista Vini Brum (que acaba de lançar um belíssimo álbum solo de estreia - ouça AQUI); e as guitarras, vozes e violão de Vítor Cesar, coautor da faixa de abertura da obra. Telles, Vini e Vítor formam a base sólida e coesa da banda, dando espaço para a arte de Petracco e Murilo. As letras são de altíssimo nível, bem como a precisa escolha de timbres e unidade melódica e lírica do álbum. Um disco que já soa clássico em seu primeiro acorde. A produção é co-assinada por Telles, Grings e o graxelo honorário Luciano Albo — que também toca violão, baixo, canta e faz percussão — além da participação de Eliézer Moreira no trompete.  

O sociólogo Silviano Santiago propôs alguns anos atrás o conceito de “entre-lugares”, buscando abandonar a ideia de “unidade, pureza e homogeneidade cultural”, refletindo assim sobre diversidade, pessoas, culturas e expressões que estão nestes entre-lugares. Especificamente, encontram-se no hífen, nesta conexão entre uma coisa e outra. [Me pergunto o que no Brasil colonizado não estaria nestes entre-lugares?]

Escutar o álbum é pegar a estrada e passear por paisagens sonoras que são abundantes neste continente americano. Um som urbano (rock, blues, soul) que transita por cenários rurais (country, folk, gospel), em um amálgama que a música dos EUA sintetizou em conceitos como southern rock, bayou rock, country rock e outras tentativas de fornecer fronteiras para uma música que insiste em rompê-las. No Brasil, já chamamos isso de rock rural, tentamos emoldurar em MPB, mas o fato é que uma música de estrada, que passeia por cidades, mas gosta do campo, não pode ser “fronteirizada”.  

Ouça "Shangri-lá"

Essa é a música dos Graxelos. É gaúcha, mas pode ser de qualquer lugar, porque se comunica universalmente por meio das "entre fronteiras”. Remete a um rock clássico norte-americano dos anos 1970, mas é genuinamente brasileira e atual. Fala de Santa Maria, Porto Alegre, Vacaria e Buenos Aires, mas poderia ser Campinas, Montes Claros, Maringá e Volta Redonda. Ou até New Orleans. Basta pegar a estrada, seja ela real, onírica ou interior. 

Veja o clipe de "O Viajante". 

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