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Foto: Ronald Mendes |
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Por Márcio Grings Fotos Ronald Mendes |Eu não gosto de sentir saudade, assim como a inflexibilidade e os espaçamentos do tempo me assombram, tal qual como as efemérides. Coincidentemente, exatas duas décadas após sua estreia no palco do Theatro Treze de Maio — com um trio de blues —, Daniel Rosa está de volta a mesma casa. Era julho de 2002, mês e ano do primeiro Cesma in Blues, evento que chegaria a nove edições naquela década; ao lado de Paulo Noronha & Os Watts e Red House, Daniel Rosa & Saturno Blues seria um dos protagonistas desse première registrado em vídeo pela TV OVO. 20 anos depois, mas com uma nova formação, o músico santa-mariense não apenas retorna ao repertório de blues em sua cidade natal — pois, como um alquimista, um mágico das cordas, voz e pedais — ele parece nos reconectar às lembranças desse território afetivo, furando essa horrorosa bolha que nos privou de seu convívio (saiba mais AQUI). Produzido por Ana Lúcia Silva, o evento Blues Session, segundo espetáculo do projeto cultural Tributos, financiado com com recursos da Lei de Incentivo à Cultura de Santa Maria, contou com uma ótima presença de público. Meu retorno ao Treze pós-pandemia não poderia ter sido melhor, pois vi muitos rostos amigos por lá, afora a apresentação em si — estupenda!
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Foto: Ronald Mendes |
Além do próprio
Daniel Rosa (guitarra e voz), lá estão
Luciano De Leon (baixo) e
Ricardo Vivian (bateria), uma trinca de ases que nunca blefa, pois cada cartada é sempre certeira, protagonizada por jogadores experientes. O
setlist é praticamente o mesmo daqueles tempos, com algumas surpresas como "
The Chicken" (Pee Wee Ellis), um tema ligado ao repertório de James Brown e Jaco Pastorius, além de um improviso da banda de apoio — bem no início da apresentação — quando Daniel precisa de um minuto para ajustar sua guitarra, a versão instrumental de "
Norwegian Wood" (The Beatles) tapa esse buraco com maestria. Daniel sempre trabalhou com baixistas virtuosos (lembram de
Nenê Vianna?), e o solo de baixo logo na segunda música, em "
All Your Love" (Otis Rush), revela que Luciano De Leon não está nessa banda para fazer apenas acompanhamento. Já Daniel Rosa faz ligações diretas com a memória afetiva do público (e dele mesmo), quase sempre com um sorriso no rosto, fazendo caretas, brincando com os músicos e com a audiência. Alguém imita a voz de
Clóvis Müller na plateia (lendário luthier) e Daniel entra na brincadeira e faz o mesmo, dizendo que seu instrumento precisa de uma nova regulagem. Essa piada só pode ser contada em Santa Maria, e esse momento de descontração dá o tom caseiro da noite.
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Foto: Ronald Mendes |
Ao longo do show, quando há um breve intervalo entre as frases musicais — um lick, um riff ou um bend do guitarrista preenchem os espaços vazios com a nota certa (ou as vezes a ausência delas). O pedal wah-wah sussurra ou grita, as dinâmicas oscilam entre a agressividade e a suavidade, marcas dessa manha de levar as coisas em direções ambíguas. Palmas para o baterista Ricardo Vivian, pois sua batida colabora nessa ambiência e climática, trazendo não só o toque minimalista do blues, mas também elementos do jazz ou a intensidade do rock and roll, um equilíbrio baseado nas escolhas de acordo com a demanda oferecida em cada tema. Como um bom vinho e com pose de guitar hero, Daniel envelheceu bem, ele soa mais seguro do que já foi, sem medo de reinventar clássicos como "Have You Ever Loved Woman" (Billy Myles), conhecida por Freddie King; "Everyday I Have the Blues" (Pinetop Perkins); "I Just Want Make Love to You" (Willie Dixon) e principalmente na versão de "Thrill is Gone" (B.B. King), quando voz e instrumento marcam presenças espirituais nessa atuação. Porém, é em "Goin' Down" (Don Nix) que essa possessão encontra um ápice, como se os orixás fossem invocados, pois toda comunicação e linguagem artística revelam que o artista que está no palco é um mensageiro eficaz. Assim como a letra nos diz: "I've got my head out the window", o intérprete coloca sua cabeça para fora da janela e nos convida a apreciar as paisagens que ele mesmo observa, do seu jeito peculiar.
Daniel Rosa dedica
"Ain't no Sunshine" (Bill Whiters)
à família, cita nome por nome com ênfase especial na memória da irmã,
Deborah Rosa, saudosa cantora local que deixou sua marca em cada espaço do Theatro Treze de Maio (é uma gravação de sua voz que nos orienta antes do início de cada espetáculo).
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Foto: Ronald Mendes |
O guitarrista Paulo Noronha (Rinoceronte), um dos paladinos do blues santa-mariense, participa do show em momentos distintos. Primeiro em duas versões instrumentais, "Chitlins com Carne" (Kenny Burrel) — com direito a um breve mash-up com "Hideway" (Freddie King/ Tony Thompson), além de "Little Wing" (Jimi Hendrix), quando os diferentes estilos de tocar uma guitarra denotam as virtudes de cada instrumentista. À exemplo disso, reparo no classicismo de Paulinho, mais comedido, como se estivesse a escolher cada nota, temendo quebrar algum tipo de encanto, como se os trastes e escalas do braço de seu instrumento estivesse coberto por uma opaca camada de gelo fino. Já o endiabrado Daniel, coloca fogo no parquinho, destemido em celebrar esse encontro. Ao final, os dois, irmãos de som, se divertem e alternam base e solos em "Sweet Home Chicago" (Robert Johnson) e "Got My Mojo Working" (Preston "Red" Foster).
No bis, a pequena Naíma (uma homenagem a John Coltrane), filha de Daniel, dança no palco ao som de "Mustang Sally" (Mack Rice), legítima representação de sua tia, Deborah, que duas décadas antes cantou essa mesma canção no mesmo local como convidada especial no show da Red House. A máquina do Tempo nos visitou na noite desta quarta-feira, 17 de agosto de 2022. Espero que alguém sabote o motor dessa geringonça e que essa nave nunca mais saia daqui.
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Foto: Ronald Mendes |
SetlistEveryday a Have the Blues
All Your Love
Norwegian Wood (This Bird Has Flow)
Have You Ever Loved Woman
I Just Want Make Love to You
Thrill is Gone
Chitlins con Carne
Little Wing/ Hideway
The Chicken
Ain't no Sunshine
Goin' Down
Sweet Home Chicago
Got My Mojo Working
Bis
Mustang Sally
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Pode chorar, Daniel! Foto: Ronald Mendes |
Emocionante o teu texto, Marcio. A tua descrição em Goin' Down foi perfeita. Me fez reviver a noite de ontem e também algumas lembranças muito queridas. Sensacional, parabéns.
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