A tradição poética de Walt Whitman é reavivada em "I Countain Multitudes", nova música de Bob Dylan


Fonte: DB
Por Márcio Grings

Sempre vi Bob Dylan como um poeta. Afinal, estamos falando de um ganhador do Nobel de Literatura, por mais polêmicas que o fato tenha gerado — quanto ao merecimento ou não de um músico/compositor levar para casa a mais cobiçada láurea da literatura mundial. Com isso, limitá-lo apenas as cercanias do músico convencional, ou meramente referenciá-lo como um simples artista que utiliza recursos poéticos em suas canções, certamente é uma forma de diminuir o próprio e suas criações.

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Contudo, ao nominá-lo como 'bardo', talvez estejamos próximos de um perfeito retrato do papel literário que ele representa na música mundial. Bardos, na Europa antiga, eram artistas conhecidos por transmitirem ao povo histórias, mitos, lendas e poemas. Encontrando liga nas descrições orais, o bardo atuava simultaneamente como músico, poeta e historiador, utilizando a dobradinha música/poesia como principais pilares desse ofício.  

Já o nosso bardo que está prestes a completar 79 anos (24/5), há exatas três semanas (27/3) divulgou em suas redes “Murder Most Foul”, canção de 17 minutos que confirma essa tradição de contador de histórias. A música é repleta de referências a músicas/artistas e fatos históricos do Século XX (e até bem antes desse período), com ligações que vão de “Hamlet", de William Shakespeare, até o livro homônimo de Stanley J. Marks, que trata das teorias da conspiração que envolvem o assassinato do presidente John Kennedy. Montamos um player com supostas 65 músicas que são citadas direta/indiretamente em "Murder Most Foul". Ouça AQUI

Print do trecho de “Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese” em que Dylan fala de Whitman
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E eis que nessa sexta-feira (17/4), um novo tema inédito é divulgado em suas redes. Inspirado inicialmente em um trecho de "Song to Myself", do escritor norte-americano Walt Whitman, “I Countain Multitudes” mantém uma ligação ainda mais forte com o espírito poético/literário já explorado em muitas de suas composições — “Me Contradigo? Tudo bem, então me contradigo, sou vasto, contenho multidões. Extraído de "Folhas de Relva", Bíblia wtthmaniana, o livro teve sua primeira edição em 1855. Em “Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese” (2019), Dylan cita o referido poema que agora é vertido parcialmente em sua música. Walt Whitman (Huntington, 31 de maio de 1819 — Camden, 26 de março de 1892), foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o "pai do verso livre". Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução americana, como Maiakovsky seria o grande poeta da Revolução russa. Sua obra "Folhas de Relva" é considerada um marco na literatura universal, principalmente dentro do gênero poético.

De "Folhas de Relva", da tradução de Rodrigo G. Lopes (Iluminuras)

 "Vivendo Á Sombra dos Gigantes" (2006), de Márcio Grings


É fácil percebermos uma ligação direta com o poema de Whitman, mais precisamente sobre o trecho #51 (veja na imagem acima), mas também podemos notar um claro espelhamento na expressão poética de um dos principais seguidores de Whitman no século XX, Allen Ginsberg. Todavia, Dylan e Gisnberg se autoinfluenciaram ao longo dos anos, além de se tornarem muito próximos. O mencionado recorte de “Song to Myself” também celebra as próprias autocontradições do(s) orador(es), algo pelo qual Dylan — Ginsberg e o próprio Whitman, três geminianos) — foram condenados (e elogiados) ao longo de suas trajetórias artísticas — “Você vai falar antes que eu vá embora? Ou virá quando já for tarde demais? ”, ainda de "Song to Myself".

Ouça uma versão livre em português da letra.



Os arranjos do novo tema seguem a linhagem minimalista de "Murder Most Foul" — sem bateria ou mínima percussão, ele canta sobre base de violão, guitarra, pedal steel e violoncelo. Como um bardo do Século XIX, Dylan mais recita um poema do que canta uma canção. A letra ainda contém referências a Edgar Alan Poe, Wiliam Blake, Frédéric Chopin, Ludwig van Beethoven, Anne Frank, Indiana Jones, David Bowie, Rolling Stones, além de uma nova citação ao Titanic  — "I’m going to Balinalee [Irlanda]", um dos portos visitados pelo navio em sua rota. Ouça "I Countain Multitudes."

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