Na manhã da última sexta-feira (27) os fãs de Bob Dylan
acordaram com uma nova música do bardo norte-americano. Com 16 minutos e 56
segundos, "Murder Most Foul" é sua gravação mais extensa, superando
"Highlands", de 1997, tema de "Time Out of Mind" com 16
minutos e 31 segundos. O tema estreou sem aviso prévio, mas com um recado nas redes sociais: "Saudações para meus fãs e seguidores com gratidão por todo apoio e lealdade através dos anos. Esta é uma canção inédita que gravamos há algum tempo e que vocês poderão achar interessante. Fiquem seguros, fiquem atentos e que Deus esteja com vocês", publicou no Twitter e Facebook.
Ouça "Murder Most Foul".
Em "Murder Most Foul" (que se supõe ter sido composta na época de "Tempest"), Dylan retoma uma fórmula de contar histórias musicais muito utilizada no folk — o talking blues, ideário que mistura ritmos repetitivos com um método de interpretação mais falado do que cantado, e até mesmo sem refrão. Basta olhar para sua discografia para encontrarmos temas similares como "Talkin' New York, Talkin' World War III Blues" ou "Motorpsycho Nightmare."
Mestre no uso de palavras e imagens que comportam várias interpretações e significados, Dylan nos provoca já a partir do próprio título, que pode ser livremente traduzido como "Assassinato a Sangue Frio" e que tanto pode se referir a uma fala em "Hamlet", de William Shakespeare, quanto a um livro de Stanley J. Marks com o mesmo título, que trata das teorias da conspiração que envolvem o assassinato de Kennedy — como foi bem lembrado por Scott Warmuth em seu Twitter.
O assassinato de John Kennedy em 1963, quando o presidente norte-americano foi atingido em praça pública durante uma visita a Dallas, no Texas, ainda é um dos maiores traumas da sociedade estadunidense, com todas as controvérsias que cercam o fato. No entanto, esse pano de fundo da canção é um mote enganosamente simples que Dylan utiliza para que o acompanhemos em uma jornada de fôlego que apenas ele seria capaz de nos proporcionar.
Revisitando algumas conhecidas teorias da conspiração para esse assassinato, Dylan repassa fatos históricos em meio a uma narrativa cheia de referências culturais: contrapontos literários, citações diretas e indiretas a filmes, músicas e personalidades que ajudaram a definir o século XX. É como se Dylan, sempre atento às mudanças, nos alertasse de que esse mundo descrito na letra está morrendo ("I said the soul of a nation been torn away/and it's beginning to go into a slow decay", "eu disse que a alma de uma nação foi arrancada/e agora estamos em um lento declínio") e ele quisesse resgatar essa memória, nos convidando a acompanhá-lo nessa empreitada com atenção ("if you want to remember you better write down the names", "se você quiser lembrar é melhor anotar os nomes").
A impressionante lista de referências utilizadas por Dylan (Beatles, Marilyn Monroe, Patsy Cline, para citar apenas uns poucos nomes dos tantos referidos na canção, é uma mostra significativa de uma época que não existe mais, ao menos não como costumava ser. Em tempos de imediatismo e desinformação, Dylan nos deixa com mais perguntas do que respostas ("what is the truth and where did it go?", "o que é a verdade e para onde foi?"). "Murder Most Foul" éuma Guernica poética em forma de canção, uma deliciosa charada musical que nos instiga a buscar desdobramentos ambíguos. Falar sobre o tema é como tentar explicar um tratado histórico, como também poderíamos pensar num longo podcast em busca de múltiplas interpretações,e mesmo assim, estaríamos apenas raspando um diminuto lote dessa superfície de significados.
Na playlist inclusa abaixo, selecionamos 65 músicas que são citadas direta/indiretamente por Dylan em "Murder Most Foul". Como já foi avisado, podemos perceber que várias frases na letra possuem significados distintos, breves enigmas que podem ou não ter relação com a narrativa. A inclusão da própria "Murder Most Foul" no player certamente não é obra do acaso. Assumindo a posição de um contador de histórias, Dylan nos mostra que a história mundial é uma sucessão de ciclos contínuos, e essa citação parece querer nos induzir a uma pergunta que remete a outra música: "Will The Circle be Unbroken" (o círculo será constante?). Assim, estendemos o convite de Dylan a você e perguntamos: o que faltou nessa playlist? Deixe sua sugestão nos comentários.
Ótimo trabalho de rastreamento das obras em artigo que se não definitivo, nenhum o será, bastante instigante. Valeu dylanescos!
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