Flism: Bob Dylan - To be or not to be Nobel" / Athena Livraria, 13 de agosto de 2018

Foto: Mauro Castanho
Por Márcio Grings

Um bardo, na Europa antiga, era uma pessoa encarregada de transmitir histórias, mitos, lendas e poemas de forma oral, cantando as histórias do seu povo em poemas recitados. Era simultaneamente músico, poeta e historiador. Mais tarde, os bardos também ficaram conhecidos por trovadores, assim como as tradições musicais e literárias que transmitiram às gerações sucessivas, certamente garantiram a sobrevivência do legado de seus antepassados artísticos. O bardo/trovador usava frequentemente um instrumento de cordas, quase sempre um alaúde, para assim tocar suas melodias e músicas, que contavam histórias ou poemas épicos. A música tradicional irlandesa tem nos bardos a sua principal raiz.

Foto: Mauro Castanho
Relembre a passagem de Bob Dylan por Porto Alegre em 1998 

Do mesmo modo, bem antes dos bardos, se voltarmos a Grécia antiga, poetas como Safo e Homero, pensavam em versos para serem cantados, ou recitados ao som de um instrumento. Essa tradição literária associada a algum tipo de melodia não nos aproxima da moderna criação musical, mas nos dá um toque de que música e poesia não estão tão distantes assim. É ÓBVIO QUE NÃO! E o artista em evidência nessa postagem, certamente pode ser chamado de bardo. Basta olhar para o rastro de luz que sua obra ainda desenha na história da música internacional.   

Relembre a passagem de Dylan por Porto Alegre em 2012

Toda essa reflexão é por que fui convidado para um painel da Flism (Festa Literária de Santa Maria) que começou nesta quarta-feira (12) na Cesma (Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria) e estendeu sua programação nesta quinta-feira (13) também na Athena Livraria.

Foto: Mauro Castanho 

Confira a programação completa da Flism

Ao lado do professor Gérson Werlang, conversamos sobre a láurea que Bob Dylan recebeu da mais celebrada das premiações da literatura mundial. Pra início de conversa, o próprio nome de Dylan é uma joke, uma charada literária, pois, como todos já sabemos seu nome de batismo é Robert Allen Zimmerman. O nome artístico - Bob Dylan - vem de Dylan Thomas, poeta galês que se encaixa perfeitamente na figura do bardo. “Não entre sem resistência pela idade da boa morte / A velhice precisa arder e imprecar quando o fim estiver próximo / Fúria, fúria contra a luz que se apaga”. O trecho preferido de Bob ao seu homônimo, reflete também sua obsessão pelo palco e uma distante aposentadoria que provavelmente não virá, pois é nessas quatro linhas, ao lado de sua banda e com sua Never Ending Tour (turnê sem fim) que provavelmente esteja o segredo de toda essa vitalidade e resistência artística.    
Foto: Mauro Castanho
"Bob Dylan - To be or not to be Nobel", como foi batizado o evento, coloca em pauta o constante questionamento se a premiação é realmente justa. "Premiar Dylan com o Nobel é como dar uma medalha ao Monte Everest por ser a montanha mais alta do mundo", disse Leonard Cohen ao ser perguntado da legitimidade do prêmio. Bob Dylan não foi o primeiro a misturar a cultura da música com literatura, os beats já tinham tentado isso antes com o jazz - recitais e audições onde a poesia e o clima etéreo dos cafés e salas de recitais naufragou como uma nau de papel bem antes de chegar ao alto mar da popularidade. 
Dylan conseguiu esse feito em temas como "A hard rain's a-gonna fall", "Like a rolling stone" e "It's all right, ma (I'm only bleeding). Também começou a deixar pistas sobre seus requintes literários através dos textos que escreveu para seus LPs: "Minhas canções são escritas com címbalos em mente / com o toque colorido da minha ansiedade / Inominável. Óbvio / Uma gente parecida com um tipo de cantor suave brasileiro. Já desisti de realizar qualquer qualquer tentativa de perfeição / O fato de que a Casa Branca está repleta de líderes que nunca estiveram no Apollo Theatrer me espanta", diz um trecho do texto da contracapa de "Bringing it all back home" (1964). "As músicas desses discos não são apenas canções / São exercícios tonais de controles de respiração / O assunto, sem significado tal como é, tem algo a ver com o belo desconhecido / Com a jaqueta verde de Vivaldi e o trem lento e santo", divaga o autor na contracapa de "Highway 61 Revisited" (1965). 
Foto: Mauro Castanho 
E se pularmos alguns anos adiante, "Tangle up in blue", poeticamente é uma música que desafia o tempo, pois a história se passa simultaneamente no passado e presente, brincando com a narrativa que começa na segunda pessoa, para logo depois, passar para a primeira do singular: “Eu estava tentando ser eu no presente enquanto invocava um monte de imagens do passado”, disse Dylan anos depois. É sem dúvida a grande Guernica do poeta, pois a intenção é que “Tangle up in blue” seja ouvida/visualizada por portes ou no todo, como uma assombrosa pintura numa sala gigante. E é assim que ela pode ser vista e percebida: "Então ela abriu um livro de poemas / E o colocou na minha mão / Escritos de um poeta italiano do século XIII / E cada uma daquelas palavras soou verdadeira / E brilhou como carvão em brasas / Caindo de cada página / Como se fosse escrita na minha alma".  Outro bom exemplo desse sucesso está em "Hurricane" (1976),  quando o drama do boxeador Rubin 'Hurricane' Carter percorre recursos literários que poucos escritores alcançam. Mais tarde, em 1999, Norman Jewison dirigiu o filme homônimo que certamente se utilizou da narrativa cronológica minuciosa proporcionada pelo compositor.

Chegando ao limiar do novo século, canções recentes ainda utilizam recursos ou citações literárias. É o caso de "Thunder on the mountain", 2006, onde o poeta italiano Ovídio, reconhecido pelo intenso fluxo musical de seus versos, surge perfilado ao lado da cantora Alicia Keys. Já "When the deal goes down", tema advindo do mesmo álbum da citada anteriormente, "Modern Times", parafraseia antigo poema de um esquecido poeta da época da Guerra Civil norte-americana, atuante na segunda metade do século XIX, Henry Timrod. Já "Feel a changing come", 2009, faz referências biográficas ao escritor irlandês James Joyce.   
Foto: Mauro Castanho
Bob Dylan é o único artista no planeta que acumulou láureas como o Oscar (2000), - por "Things have changed", canção do filme Garotos Incríveis, dirigido por Curtis Hanson; o Grammy (ele levou 12); o Pulitzer (2008) – "por seu profundo impacto na cultura popular norte-americana" – e agora o Nobel (2016) – "por ter criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição norte-americana da canção". Livros, lançou apenas dois: o contestado "Tarântula" (1971), e "Crônicas - Vol 1" (2004), obras menores que a complexidade literária que abrange sua discografia. "Nossas músicas estão vivas na terra dos vivos. Mas músicas são diferentes da literatura. Elas são para ser cantadas, não lidas. As palavras de Shakespeare eram para ser apresentadas no palco. Assim como as letras em canções são feitas para serem cantadas, ou não lidas no palco. E eu acredito que alguns de vocês tiveram a chance de ouvir essas músicas da maneira que devem ser ouvidas: em shows ou gravações ou de todas as formas que as pessoas estão ouvindo músicas atualmente.", disse Dylan - o bardo musical - numa gravação seis meses depois do anúncio do Nobel.    
Sobre o merecimento ou não da premiação, o povo fala: "Eu, para falar a verdade, nunca questionei o recebimento do prêmio, sempre achei digno, mas posso garantir que saí do evento com minhas convicções totalmente reforçadas", escreveu em seu Facebook logo após o término do painel Ricardo Nicoloso, responsável pelo acervo da Loja Disco Voador (livros e vinis), e um dos presentes no Café da Athena.

A Flism segue amanhã com seu último dia de programação. Confira AQUI

Foto: Mauro Castanho
Além das fotos de Mauro Castanho (imagens acima), veja mais fotos do evento por Pablito Diego (Há cena Cultural).
Foto: Pablito Diego/ Há Cena Cultural
Foto: Pablito Diego/ Há Cena Cultural
Foto: Pablito Diego/ Há Cena Cultural
Foto: Pablito Diego/ Há Cena Cultural
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Foto: Pablito Diego/ Há Cena Cultural
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