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Foto: Pridia |
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De BH Romero Carvalho |
Como nos diz uma antiga canção de Rolando Boldrin: “essa hora da gente ir-se embora é doída”, mas como pode ser uma experiência bela e arrebatadora! No último sábado (14), noite gelada em Belo Horizonte no estádio do Mineirão tomado por 40 mil pessoas, celebrou-se a obra de Gilberto Gil, meu maior alento de ser brasileiro. Em sua turnê de despedida, o mestre nos presenteou com mais de 2h30 de show, empilhando canções em arranjos elaborados, uma excelente banda e uma sintonia absoluta com a plateia. Próximo dos 83 anos, que serão completados no dia 26 de junho, Gil mostrou uma vitalidade incrível, revigorada por uma imensa alegria de estar no palco dividindo conosco a sua arte repleta de sabedoria. Que pena que foi a última vez. E como é complexo se despedir de Gilberto Gil... Doído sim, mas profundamente celebratório.
Com direção musical dos filhos Ben (guitarra e baixo) e José Gil (bateria), Gil segue em família, com o talentoso João Gil (baixo e guitarra), a filha Nara Gil e a nora Mariá Pinkusfeld (vocais de apoio). Além deles, completam a banda Diogo Gomes, Thiago Oliveira e o grande Marlon Sete (sopros), Danilo Andrade (teclado), Leonardo Reis e Gustavo Di Dalva (percussão), o excepcional Mestrinho (sanfona), além de um quarteto de cordas formado apenas por mulheres. Gil mostra toda a sua generosidade ao deixar que todos os integrantes da banda tenham o seu momento de brilhar.

O setlist é perfeito, começando a celebração com “Palco”, do disco ‘Luar’, de 1981. A música que define o compositor como um profeta da música popular, levando a canção como instrumento de cura, capaz de “afugentar o inferno para outro lugar”. E sim: a alma de Gil e sua aura clara seguem cheirando a talco, com o frescor de um jovem compartilhando suas primeiras composições. E, óbvio, não são canções comuns... Muitas ajudaram a moldar a estética de Brasil em vários níveis e elevaram a música popular deste país. A poética de Gil e seus insights filosóficos e existenciais, acompanhados de melodias lindas e ritmos que passeiam por todo o Brasil, Caribe, África e EUA formam uma linguagem totalmente única.

O que fica didático com a sequência do show. Banda Um, Tempo Rei, Aqui e Agora, Eu só Quero um Xodó, Eu vim da Bahia, Procissão, Domingo no Parque, Cálice, Batmacumba, Back in Bahia, Refazenda, Refavela, Não chore mais, Extra, A Novidade, Realce, A Gente Precisa Ver o Luar, Punk da Periferia, Rock da Segurança, Se Eu Quiser Falar com Deus, Drão, Estrela, Esotérico, Expresso 2222, Andar com Fé, Emoriô, Esperando na Janela, Aquela Abraço e Toda Menina Baiana contam a história da arte de um povo. Apresentam para a plateia um sujeito que esteve na bossa-nova, na psicodelia, no acid-rock, criou o Tropicalismo, trouxe o som de todos os rincões do país para o seu violão, difundiu o reggae, o funk, o afoxé, o ijexá... Em Belo Horizonte, o show ainda contou com Samuel Rosa, em “Vamos Fugir”, um dos pontos altos. Espero que toda a turnê se torne um lindo e emocionante documentário.

Foi impossível segurar a emoção na sequência de “Se Eu Quiser Falar com Deus” e “Drão”, cuidadosamente posicionadas em um momento de respiro do show, em que a plateia emudece pra ouvir, em arranjos sublimes, a maior oração da MPB e uma das mais profundas canções de amor de todos os tempos. O público no Mineirão evidenciava a capacidade de Gil de falar para todas as idades, pois tínhamos muitas crianças, uma massa de adolescentes e jovens adultos e também uma grande parte de pessoas já acima dos 45. Uma renovação difícil no mundo todo para qualquer artista que começou sua carreira ainda nos anos 1960, deixando explícito o caráter atemporal da poesia de Gil e a multiplicidade estética de suas canções, que evitam que sua obra fique confinada a alguma tribo ou momento histórico específico. Afinal, o Gil dos meus filhos já cantou que “boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente, o sol nascente é tão belo”. Hoje ainda canta para eles que “mistério sempre há de pintar por aí”. O da minha esposa diz que “meu coração só pede o teu amor; se não me deres, posso até morrer”. O do meu pai canta que “a paz invadiu o meu coração, como se o vento de um tufão arrancasse os meus pés do chão, onde já não me enterro mais”. O da minha mãe confidencia a ela que “quando escutar um samba-canção assim como ‘eu preciso aprender a ser só’, reagir e ouvir o coração responder: ‘eu preciso aprender a só ser’”.

Gil e sua antena parabólica, unindo a diáspora negra e sintetizando a música deste imenso continente americano num “barato total”. E no seu velho “baú de prata” cabe muita coisa. A nós, cabe a reverência ao gênio, ao mestre, com sua sabedoria para cantar o tempo, aquele que “pela onda luminosa leva o tempo de um raio; tempo que levava Rosa pra aprumar o balaio quando sentia que o balaio ia escorregar”. O “tempo rei” nos deu 83 anos de Gilberto Gil ainda em plena forma e toda a geleia geral deste profeta popular, que anda com fé, porque ela não falha e deixa o inferno fora daqui há 60 anos.
Sua música profundamente espiritual e mística é um sustento de brasilidade, um orgulho nacional, um bálsamo. Eu, como devoto, sempre aviso que trago um cesto de alegrias de quintal, já que a deusa-música pede pra deixar “derramar o bálsamo e fazer o canto cantar o cantar”. Sua carreira de longas turnês chega ao fim, mas a obra de Gil segue conosco. E quem poderá fazer este amor morrer? “Se o amor é como um grão. Morre e nasce trigo, vive e morre pão”. Aquele abraço, Gil. Nos vemos na eternidade, na África, na Índia, na Bahia, na Jamaica, no sertão, no cerrado, no interior do mato.
Refestemos você!
Texto impecável e experiência única q tive o privilégio de compartilhar com vc e sua família ao meu lado. 💖
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