"The Division Bell" (1994), o Canto do Cisne do Pink Floyd

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| Por Márcio Grings |

Quando comecei a ouvir música de uma forma mais profunda, no final de 1984, tive a sorte do Pink Floyd ser uma das primeiras bandas a cair na minha rede. "The Wall" (1979) foi a porta de entrada, "The Final Cut" (1983), o último com Roger Waters (que anunciou sua saída em 1985, dizendo que o PF tinha acabado), veio depois. Naqueles dias, os trabalhos solo de David Gilmour — "About Face" (1984) e " The Pros and Cons of Hitch Hiking" (1984), de Waters, meio que supriam a falta de material novo enquanto grupo, que naquele momento vivia um rumoroso imbróglio. Afinal: a banda realmente acabara? Após algumas demos destinadas para um possível terceiro álbum solo de Gilmour, Stephen Ralbovsky, um executivo da CBS, convenceu o guitarrista e Nick Mason a seguir adiante com detentores do nome. Waters discordava veementemente deles. O Outro envolvido, Richard Wright, estava impedido contratualmente de assumir o seu posto desde 1979, quando foi despedido pelo então líder da banda, mas poderia figurar como músico de estúdio, um artista contratado para as sessões, como de fato atuou. 

Veja a live no Pitadas do Sal. 

Entre dúvidas, disputas nos tribunais e a incredulidade dos fãs, quando "A Momentary Lapse of Reason" foi anunciado em setembro de 1987, óbvio que uma comoção misturada a curiosidade se instaurou no mundo do rock. Será que os remanescentes conseguiriam resgatar a mágica do Pink Floyd sem o principal criador — o ex-líder, mentor intelectual de "The Dark Side of the Moon" (1973) e "Animals" (1977)? "Roger havia carregado a banda nos ombros por dez anos", disse Nick Mason em sua biografia, "Inside Out" (2004). Não havia dúvida na qualidade dos vocais e das músicas, mas sem as letras de Waters, fica exposto um buraco enorme e difícil de ser preenchido, principalmente devido a aparente inabilidade em escrever novas canções com conteúdo à altura dos grandes momentos do grupo.    

A resposta, hoje, todos sabemos. Sim, eles conseguiram. Mas olhando em perspectiva, "The Momentary Lapse of Reason" é um álbum que, em primeio lugar, funciona ao apertar na moleira da memória afetiva e, mesmo longe de ser um fiasco, ele também passa léguas adiante para ser considerado um álbum digno de figurar entre os clássicos do Pink Floyd. Esse lugar, principalmente se levarmos em conta a era pós-Waters, sem dúvida é ocupado por "The Divison Bell" (1994), que bate nos 30 anos de seu lançamento em 2024. O primeiro detalhe está nas letras, uma das fragilidades de Gilmour, aqui suprida pela força literária de sua esposa (na época namorada), a jornalista e escritora Polly Samson, alçada a nova letrista do grupo. Jon Carin, músico de apoio do grupo, resgatou os antigos teclados do Floyd, incluindo um Farfisa, e pontuou músicas como "Take It Back" e "Marroned" com tímbricas característica nos álbuns clássicos do grupo. Guy Pratt, casado com a filha de Wright, está no baixo, Dick Parry toca sax, é como se a família se reunisse novamente. O álbum foi batizado por Douglas Adams, autor do "Guia do Mochileiro das Galáxias", amigo de Gilmour, inspirado no sino que era utilizado na House of Commons, que reúne membros ausentes do parlamento para votar.  
 
Mesmo que o resultado tenha sido positivo, sabemos que houve muito labor para chegar até as 11 faixas definitivas, mas dá pra dizer com folga que valeu a pena. Na verdade, quando o grupo voltou à ativa em 1987, com "A Momentary Lapse of Reason", nos esforçamos para aceitar aquela formação capenga. A impressão é que o Floyd carecia da visão ácida e emocional de Roger Waters, assim como o baixista, em viagem solo, parecia sentir falta da sutileza da banda que o expurgou. "Tragam o comunista de volta!". Essa sensação foi exorcizada em “The Division Bell” (1994), um trabalho que a cada nova audição expõe uma incrível força criativa e que ainda espalha suas sementes, além de revogar a independência de David Gilmour como compositor, apoiado pelas letras de Polly. Apesar das críticas mornas da grande imprensa, o álbum liderou as paradas em ambos os lados do Atlântico e em vários países ao redor do mundo. O grupo excursionou durante grande parte de 1994, fazendo seu último show completo em 29 de outubro daquele ano.  

Gravado em vários estúdios, inclusive no barco estúdio de Gilmour, The Astoria, a capa do álbum foi projetada pelo mago Storm Thorgenson, que usou duas modelos de metal de uma tonelada e 3 metros de altura, inspiradas nas esculturas da Ilha de Páscoa. Foram fotografadas durante duas semanas e, após as sessões, foram removidas de Cambridge (cidade natal de todos os membros do Pink Floyd, menos Nick Mason) e enviadas para o Hall da Fama do Rock em Cleveland, nos Estados Unidos.

CLUSTER ONE

O trilha incidental que abre o disco deixou alguns fãs consternados, pois eles tinham a sensação de que seu exemplar em LP ou CD estava com defeito. De acordo com uma entrevista dada por Andy Jackson, engenheiro de gravação do álbum, esse ruído é captação eletromagnética do vento solar. Depois desse início, surge um piano, sintetizadores e um órgão Hammond, o som dos pratos de uma bateria, e toda aquela ambiência preambular de característica do rock progressivo, como se o disco não tivesse pressa para começar. A guitarra de Gilmour chega a flertar com o blues.  

WHAT DO YOU WANT FROM ME?

Se o blues surgiu tímido na introdução, agora em "What Do You Want From Me?", ele invade o início do álbum de uma forma surpreendente. Mas, óbvio, estamos falando de uma canção do Pink Floyd, então esse blues se transforma em muitas coisas, nessa letra belicosa de um personagem que parece se defender de alguém que não sabe as reais intenções dessa aproximação, de algo que se assemelha a um relacionamento em conflito. A parte final estendida, que emprega magistralmente riffs de guitarra e harmonias vocais.  

POLES APART

“Poles Apart” talvez seja a música mais subestimada do álbum. Polly Samson disse que desde a primeira linha da letra "Você sabia/ Tudo iria dar tão errado pra ti", eles se referiam a Syd Barrett. A segunda linha, "E você viu que tudo ficaria tão certo para mim", refere-se a Roger Waters do ponto de vista de Gilmour. Muitas das músicas de "The Division Bell" parecem ser baseadas no relacionamento com os ex-membros. Aqui o DNA floydiano se impõe sem restrições, é quando percebemos que o disco está nos levando diretamente para o universo que tão bem conhecemos, pois o Floyd está de volta ao seu coração no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. 

Os vocais de Gilmour são mais brilhantes e até mesmo a estranha seção intermediária, orientada por sintetizadores e temas de fanfarra, funciona bem para manter o clima nostálgico e melancólico da música. Tudo isso culmina com o forte verso final, carregado de uma mensagem filosófica:

A chuva caiu devagar sobre os telhados da incerteza/ Pensei em você, nos anos e toda a tristeza desapareceu de mim".  

MARROONED

Embora tenha sido altamente elogiada a ponto de ganhar o Grammy de Melhor Performance Instrumental de Rock em 1995, “Marooned” parece não se encaixar na jornada do álbum. De todo o modo, aqui brilha a guitarra de David Gilmour, responsável por toda a climática central do tema, onde a cama do piano de Rick Wright também merece certo louvor.   
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A GREAT DAY FROM FREEDOM

A queda do muro de Berlin está no centro inspirador do tema: "No dia em que o muro caiu/ Jogaram os cadeados no chão. E com os copos para o alto lançamos um grito/ Pois a liberdade havia chegado". "A Great Day From Freedom" é permeada por uma sensação de perda, de que algo nos foi logrado e nunca mais será totalmente recuperado. A letra mistura-se a um sonho em que dois personagens se separam. Eventualmente, o pesadelo é desfeito e eles se reencontram, mas o resíduo amargo da memória permanece. Sabemos, nem tudo que está quebrado pode ser consertado. Às vezes, a liberdade simplesmente não é suficiente. É uma das minhas preferidas do disco e um dos grandes momentos do Pink Floyd no seu ocaso pós Waters.   

“A Great Day for Freedom” tem uma dualidade de humores com o piano melancólico enquanto a melodia e a letra parecem mais otimistas e esperançosas. Gilmour fornece uma liderança impressionante durante o final, que lembra “On the Turning Away” de seu álbum anterior, sete anos antes. A canção celebra as grandes esperanças após a queda do Muro de Berlim, mas muitos a interpretaram como uma reflexão sobre o relacionamento distante de Gilmour com Waters.

WEARING THE INSIDE OUT

Estou esperando pelo dia/ Quando todas as nuvens se dissiparem/ Estou com você agora, posso falar seu nome/ Agora podemos nos ouvir novamente”. O tema passa certa desesperança à expectativa do dia em que valerá a pena viver. Por outro lado,  a comunicação está reaberta, esse é um dos recados.

Wright está nos vocais principais em “Wearing the Inside Out”, outra novidade em mais de duas décadas. O solo de saxofone logo no início é de Dick Parry, mas no geral a música de seis minutos e meio é um pouco monótona, exceto pela inversão no protagonismo do sintetizador de Wright na parte central do tema. O verdadeiro destaque vem no terceiro verso, quando Gilmour oferece um vocal reflexivo como acompanhamento do refrão;

TAKE IT BACK

“Take It Back” talvez seja a performance musical mais impressionante de Gilmour, entre os vocais melódicos e diversas texturas de guitarra. Com um uso genial de um e-bow, coloco essa música entre as melhores músicas de guitarra no Pink Floyd (e houve muitas). Por muitas vezes a ouvi em viagens no meu carro, por muitas vezes a toquei nos fins de tarde durante meus programas de rádio. “Take It Back” é uma daquelas músicas em que o progressivo abraça o pop e encanta os ouvintes da boa música.    

COMING BACK TO LIFE

Colada ao fadeout de "Take It Back", “Coming Back to Life” começa com uma introdução de guitarra suave e embluada com a digital de David Gilmour carimbada com tinta vermelha. Depois temos vocais quase à capela, num revérber como se David estivesse cantando numa sala gigantesca. E, quando a banda entra no restante da música, isso passados dois minutos e meio, temos o Pink Floyd pop de volta, e em ótima forma. Essa foi uma das duas músicas de "The Divison Bell" que tive o prazer de ouvir ao vivo em 16 de dezembro de 2015 no Arena do Grêmio em Porto Alegre. É um dos trabalhos de guitarra mais assombrosos do álbum todo, da parte suave no início, até o final mais efusivo.       

KEEP TALKING

“Keep Talking” tem um arranjo magistral começando com os interlúdios vocais de Stephen Hawking até o uso extensivo de um talk box e a chamada e resposta dos versos entre Gilmour e o refrão com vozes femininas. Primeiro single lançado do álbum, a música liderou as paradas de rock nos EUA por seis semanas. Talvez seja a música que mais lembra os trabalhos solos de David, com vocais femininos que funcionam de resposta que vendem um certo clima soul.

LOST FOR WORDS

Outra da leva Pink Floyd pop. “Lost for Words” desaparece magistralmente com o zumbido profundo do órgão antes de finalmente chegar ao coração acústico e folclórico da música, com um solo de violão de aço apropriado para a climática agreste da música.  

HIGH HOPES

Primeira música feita em parceria com Polly Samson, que encorajou Gilmour a recuperar na memória suas lembranças de infância em  Cambridge, ajudando-o a verbalizar essas memórias. Tudo começa com sinos ao longe como se fosse uma cena rural. A letra fala das coisas que alguém pode ter ganhado e perdido na vida, na verdade um inventário das perdas e ganho, o que resultou num tema que facilmente pode ser incluso no panteão das grandes canções do Pink Floyd. Foi o tijolo que amalgamou o álbum. 

Estamos no inverno inglês, época em que os locais migram para dentro de si, e "High Hopes" capta essa essência.  Quando Nick Mason bate no metal e percute um fictício sino do coveiro, há uma simbologia nessa atuação, um rito de passagem que sepulta as pardacentas sombras do passado. Tive a chance de ouvi-la ao vivo em 16 de dezembro de 2015, na Arena do Grêmio em Porto Alegre, e guardo na memória como um dos grandes momentos desse encontros com um dos meus guitarristas favoritos.  

“High Hopes” é a última música do último álbum e da longa carreira de gravação do Pink Floyd.  Apropriadamente, uma bela guitarra com tintas de blues é o canto do cisne do trabalho.    

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