Rinoceronte, Praia da Gamboa, 2 de março de 2024

Fotos: MG
| Review e fotos: Márcio Grings

O verão está longe de ser a minha estação favorita. Por crenças pessoais, acredito que esta seja a época do ano em que a estupidez humana viceja como uma erva daninha. Me perdoem os amantes das altas temperaturas. E, entre os lugares ao qual me sinto um alienígena nessa vida está a praia, não interessa o lugar onde essas faixas de areia e mar estejam localizadas. No pacote, malditas caixas bluetooth, bronzeadores melequentos, o corpo molhado de suor e as inevitáveis queimaduras do sol. Por outro lado, como não sou cego, é impossível não reconhecer as belezas de alguns lugares do país, no caso aqui falo de Santa Catarina e seu litoral. Assim, mesmo nutrido por sentimentos ambíguos, muitas vezes cá estou novamente em frente a esse grande azul. 

Vista do Rota Art Gastro Pub

Nessa relação conflituosa, quando me vejo em frente ao mar, prefiro admirá-lo de longe, ouvir os rumores das ondas de uma distância confortável, pois não preciso dele lambendo meus pés na areia e nem sussurrando ou gritando no meu ouvido. Raramente entro na água. Por outro lado, gosto de ver o verde dos morros encontrando o oceano cerúleo, algo que o lugar onde estou proporciona com rara beleza. 

Escrevo direto da Praia da Gamboa, em Garopaba, e, dentre os horrores que destruíram as belezas naturais do litoral sul catarinense, esse pedaço de terra ainda é um símbolo de resistência frente a voracidade dos veranistas e da especulação imobiliária, apesar dos muito pesares. As ruas sem calçamento, nada de arranha-céus, a ausência dos ambulantes aporrinhando o saco, a natureza dando seus sinais sem muito esforço, como o casal de corujas que nos observou do parapeito da casa onde estávamos hospedados. A trupe de Santa Maria estava reunida em três casas, uma comunidade com proporções de sucursal, pois ano a ano o quórum aumenta.


E temos a música. O que dessa vez me trouxe até aqui foi o show da Rinoceronte, banda de Santa Maria que teve seu ápice no início da década passada. Luiz Henrique Dalla Costa, baterista do grupo, inclusive mora na Gamboa. Alemão (como é conhecido entre os seus), é o coração do grupo. Além de compositor e principal letrista, ele não mantém outros projetos ou uma carreira paralela. A Rino é parte dele o tempo todo, tenho essa impressão. No antebraço direito pode-se ver o logotipo do trio tatuado como símbolo dessa relação íntima. Por outro lado, mas sem deméritos, para Paulo Noronha (guitarra e voz) e Vini Brum (baixo e voz) a vida segue quando a Rino para. Eles acabam de lançar seus álbuns solo, assim como ambos possuem outros projetos (Vini, por exemplo, é baixista dos Graxelos) e não se furtam de circular por aí, se apresentando e mostrando suas canções onde são chamados. 


Mas, de tempo em tempo, o bramido do Rinoceronte ressoa. Longos 10 meses após a última apresentação — em maio do ano passado, no Old School Pub, em Santa Maria —, a Rinoceronte fez no sábado passado (2) seu primeiro show de 2024. A estreia da nova temporada se deu no Rota Art Gastro Pub (Rua Dunas do Faísca, s/n. Ao lado da Pousada das Dunas), um bar com música ao vivo detentor de uma das mais belas vistas da Gamboa (não deixe de conferir o cardápio de hambúrgeres, Diego e Michele arrasam nos sabores!). Com ótimo público presente, uma legião de santa-marienses, veranistas e locais compareceram ao evento. Como centro dessa conjunçao, a Rino proporcionou aos presentes não apenas uma noite memorável, mas deu provas de que, mesmo com atuações bissextas, continua vivíssima como banda. Quando Paulinho, Vini e Alemão se unem para reconectar os plugues, sempre há plateia para vê-los. 


Assim como o animal que inspirou o seu nome, o grande mamífero perissodátilo de pele espessa e pregueada que possui um ou dois chifres sobre o nariz, a Rinoceronte (banda) também pode ser considerada um peso pesado do rock nacional. Se você não sabe disso, sinto muito! Na paleta de cores, aquilo que alguns definem como stoner rock, uma forte influência no som pesado dos anos 1970 e uma digital única que pode ser conferida em canções como “Chemako”, uma das minhas preferidas ao vivo.  21h35, 26 graus, última noite de lua cheia (o satélite natural da Terra deu seu show brilhando entre as árvores), o setlist apresenta uma mescla dos dois álbuns do grupo, “Nasceu” (2010) e “O Instinto” (2013), resultando num combo poderoso e que não dá tréguas à emoção ou oferece brechas para o desinteresse. 

Tomados por uma força motriz única, pois algo especial acontece quando esse trio se reúne, há um fato inédito neste show: mesmo após quase um ano sem se apresentar, o grupo não ensaiou para essa nova reunião. Na passagem de som, só três canções foram repassadas, apenas no intuito de acertar os detalhes técnicos. Entre os destaques da noite, canções como “Qualquer lugar”, “As cores”, “Chaves” e “Dizem por aí”, gemas detentoras de características definidoras do grupo e, mesmo quando tocadas no palco, as vozes combinadas de Noronha e Vini mantém um alinhamento invejável de como as conhecemos dos discos, assim como assistir de perto a energia de Alemão martelando e movimentando os braços pela sua bateria é sempre um espetáculo à parte. Se o Led Zeppelin tinha John Bonham, se o Deep Purple tem Ian Pace, se a Pata de Elefante tinha Gustavo Telles, a Rino tem Luiz Henrique Dalla Costa, o Alemão. O público bate cabeça e sacoleja ao andar desse bicho-banda. 


Furacão”, um dos hits definitivos do power trio, ganha o coro do público. Aí está uma das fórmulas vencedoras do som deles: ótimas letras, canções que pegam melodicamente sem esforço, e uma energia contagiante vazando do palco direto para o público. Já no final,  “Regras do jogo” e “Eu que não queria” são usinas de força capazes de iluminar muitos rostos. O bar onduolou ao sabor da brisa e do som, o tempo todo, sem expirar a empolgação, pareados com a vibração do palco. Após o segundo bis — com “O Choque” — às 23h em ponto a Rinoceronte se despede. Exaustos e ensopados de suor, mas com semblantes de dever cumprido, o trio é ovacionado e confraterniza com os amigos e fãs até o meio da madrugada de domingo. Ao vê-los novamente juntos, fica uma certeza: a Rinoceronte ainda tem gás e lenha de sobra para produzir um novo álbum, pois a magia se deflagra quando as forças do grupo se conjugam. Isso não pode ser disperdiçado, precisa ser canalizado.  


Ah, o verão e as noites quentes no litoral. Entre tantas lembranças embaçadas quando volto da praia, torrado do sol, cansado de tudo e de todos, eis uma memória que dificilmente será enfraquecida pelo tempo: ter assistido a Rinoceronte na Gamboa. Naquela madrugada, quando retornei para a pousada do Teo, o barulho do mar ao longe me perseguiu até o meu travesseiro, dessa vez não como um pesadelo, mas como algo bom. Foi bom ter ido até lá, pois é comum nos arrependermos dos shows que não fomos. Nunca me arrependi dos que vi, quase sempre proprocionando uma pausa entre o caos cotidiano — um sopro de ar puro —, como no caso desse. 

"Caminhos nos levam calados a um certo lugar/ As estradas desenham os rumos da percepção/ E resta um sonho-compasso que ainda se desfaz/ os quentes momentos do acaso nos fazem sonhar". Eu também prefiro acreditar em todo e qualquer sonho. Dessa vez foi no verão e de frente para o mar. Preciso rever os meus conceitos? 

Valeu, Rino! Obrigado, Rota Art Gastro Pub. Tks, Daniel Saurin pelo convite e carona.   

Foto: acervo Rota Art Grastro Pub

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