Hurricanes — Auditório da Cesma, 30 de março de 2024

Fotos: Pablito Diego (Há Cena)
| Por Márcio Grings Fotos Pablito Diego (Há Cena) |

Bons palcos são essenciais para arejar cucas e oferecer espaço para os artistas. Quando um palco deixa de existir, por 'N motivos', todos perdem. Me nego a aceitar essa estagnação como algo imutável. Essa espécie de estado de inconsciência letárgica e prolongada — semelhante ao sono profundo — onde uma coisa puxa a outra para baixo, muitas vezes precisa de uma soma de esforços para um novo despertar. 

O Auditório João Miguel de Souza, espaço cultural com capacidade atual para 150 pessoas, localizado no 3º andar da Cesma (Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria), não recebia apresentações musicais há muitos anos. O show da Hurricanes ocorrido no último sábado (30) — com sold out — , resgatou esse palco e recoloca a Cesma como protagonista cultural nesse início de 2024. O improvável do evento se deu na cortina em frente ao palco, movida por um motor elétrico, que emperrou e simplesmente parecia não aceitar esse retorno no local. Mesmo assim, numa diligência da produção, técnica e até mesmo de um integrante da plateia (gracias, Matheus!), manualmente a cortina foi recolhida e o show teve seu início. Fica o recado: muitas vezes o abre-te, sésamo rola na marra. Esse seria o único incidente de uma noite quase perfeita.  

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
Fazer rock e viver de música no Brasil é um ato de idealismo e coragem. Você sabe que vai passar por perrengues, está ciente de que não haverá balaclavas para protegê-lo das chamas, de todo o modo, o ímpeto de seguir em frente simplesmente o empurra. Foi assim que em 2016 Rodrigo Cezimbra (voz) e Leo Mayer (guitarra) saíram de Santa Maria rumo a São Paulo. Eles tinham um brasão: Hurricanes, banda que fundaram no interior do RS, dispostos a levar esse mesmo emblema como símbolo de diligência e ativismo da dupla no centro do país. Na capital paulista se juntaram a Henrique Cezarino (baixo) e Guilherme Moraes (bateria, músico que gravou o trabalho de estreia, mas foi sucedido por Lucas Leão).

Ouça o álbum de estreia da Hurricanes

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
A Hurricanes virou arroz-de-festa no circuito da Grande São Paulo, orbitando por festivais, bares e casas de espetáculo, ora apresentando releituras personalíssimas, mas principalmente por colocar na roda suas canções autorais, sempre com a intenção de juntar as peças certas para construir um álbum com suas músicas, plano concretizado no disco de estreia em junho de 2023. Nas oitos canções do disco o grupo resgata o espírito do hard rock feito na conjunção nos anos 1960/70, batendo de raspão ou acertando em cheio no blues e outras afluências, isso sem se desconectar de uma sonoridade contemporânea. 

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
Nessa trajetória, um dos picos na carreira da Hurricanes se deu em março do ano passado, quando fez as preliminares para a segunda passagem dos Black Crowes pelo Brasil, com show único em São Paulo. O grupo prepara o lançamento de um segundo álbum, que deve bater no semestre derradeiro deste ano. E, depois de quase oito anos sem shows por aqui, a Hurricanes — que nasceu em Santa Maria — está em cartaz na cidade. Antes do retorno ao lar de onde tudo começou, o grupo passou por Porto Alegre (Gravador Pub) e Ibarama (Festival Pira Rural) e encerrou o seu minitour pelo Rio Grande do Sul promovendo a reestreia do Auditório da Cesma

Veja imagens da Hurricanes durante a apresentação de abertura para o Black Crowes. 

A sensação estética de assistir a Hurricanes no palco nos faz viajar sem escalas até os anos 1970, a começar pelo próprio figurino da banda, mas principalmente pela tímbrica dos instrumentos, pelos arranjos, e fundamentalmente pela soma de todos os fatores, resultado de ações que nos leva a parte da essência do rock and roll. Fazendo uma paralelo recente com o cinema musical, veja a figura de Leo Mayer no palco: o guitarrista se assemelha a um Russell Hammond mais franzino. Hammond é o guitarrista da banda fictícia Still Water em "Almost Famous" (2000), filme que resgata o cenário do rock nos Estados Unidos em uma das décadas mais gloriosas do gênero. E que som Mayer tira de sua guitarra! Rodrigo Cezimbra é um dervixe no palco: calça boca de sino e colete vermelho, chapéu na cabeça, camisa branca entreaberta, um penduricalho com um cardeal pintado no pescoço e uma postura de palco repleta de maneirismos que nos leva de volta para nomes como Paul Rodgers, Robert Plant, Roger Daltrey, David Coverdale, entre tantos outros. E sua voz é a voz do rock. 

Foto: Pablito Diego (Há Cena)

Henrique Cezarino traduz a imagem de um baixista clássico, ora seguro na coadjuvância, mas sem nos furtar de oferecer seu protagonismo quando a música pede algo mais. Seu baixo tem gordura para remexer o caldo. E por último, Lucas Leão é o baterista que utiliza as baquetas como batutas, regendo a orquestra de peles e pratos com um estilo de tocar a lá Keith Moon. Vê-lo tocar bateria nos dá a certeza que ele está se divertindo fazendo o seu trabalho. Somado às descrições, aquilo que realmente interessa, o som da banda, seja no estúdio ou ao vivo, não economiza o ouvinte em nenhum quesito e, principalmente —  aqui no palco da Cesma — sacia a sede de rock de muitos, agradando principalmente os amantes da tríade guitarra-baixo-bateria.

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
No setlist, sete temas do primeiro álbum — apenas "How Do You Love" fica de fora —, o novo single lançado em dezembro do ano passado, e duas músicas que estarão no segundo álbum da Hurricanes. 

THE BIRD'S GONE é o mais perfeito cartão de visitas do que encontraremos a seguir, um norteamento mítico rumo a conjunção dos anos 1960/70. O que ouvimos no palco aproxima o ouvinte de uma experiência muito próxima de estarmos na sala de casa com o CD no player (o som do Auditório é candidato disparado a ter a melhor acústica de Santa Maria). 

OVER THE MOON é uma pérola da nova safra. "Desde a sua concepção inicial, essa música surgiu quase que naturalmente  Sinto que ela evoca uma atmosfera nostálgica, reminiscente do final dos anos 1960, com um final marcado por improvisos psicodélicos que remetem a essa era de experimentação e liberdade criativa na música", disse Cezimbra ao Memorabilia. Pelo que ouvimos, "Over the Moon" está pronta para brilhar no próximo álbum. 

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
Antes de cantar WAITING, Rodrigo Cezimbra não esconde a emoção de estar voltando para casa e de se apresentar frente a rostos conhecidos. COME TO THE RIVER é mais uma da nova safra de composições. Bem, nem tão nova assim, segundo o vocalista: “Essa  é bem antiga, poderia ter entrado no primeiro disco, mas acabou ficando fora. Nasceu inspirada na sonoridade arrastada do rock setentista, capturando a essência desse período musical". O solo de guitarra adiciona uma camada de experimentação, incorporando elementos que desafiam as convenções tradicionais do gênero, proporcionando uma experiência sonora impactante.

Provavelmente por uma mistura de nostalgia e júbilo, antes de FLOWERS, a grande balada da Hurricanes, Cezimbra se esvai em lágrimas já na introdução, quando apenas Leo Mayer introduz o tema. "Flowers começou a ser composta em Santa Maria, no meio da década passada". Atesto a informação do vocalista, pois circa 2015/16, a dupla Leo e Rodrigo fizeram uma visita a minha casa e ouvimos o tema juntos — "um esboço do que ela viria a ser" —, mas já com as credenciais de canção exitosa e, não por acaso, uma das preferidas dos fãs.

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
Canções como WEARY HEARTED BLUES e DEVIL'S DEAL usam formas diferentes de expressão do blues para mostrar como eles utilizam essa matriz para pulverizar tudo com a energia do rock, intenções potencializadas quando o vemos no tête-à-tête das quatros linhas de um palco. São números onde o talento de Leo Mayer brilha, assim como as dinâmicas da Hurricanes revelam sua maturidade e entrosamento.  

PENNY IN MY POCKET foi lançada como single em dezembro passado, um sinal positivo para o que vem por aí. 'Penny' não apenas é uma das mais ouvidas no Spotify do grupo, mas aponta para uma continuidade na qualidade das composições. Em prateleiras semelhantes, mas diferentes, THUNDER IN THE STORM e PURPLE CLOUDS trazem o clima do rock 70 da melhor cepa, a primeira como falsa balada, a segunda como motor de propulsão que nos leva a um dos picos do show, deixando o público de queixo caído antes da grande surpresa da noite. 

Foto: Pablito Diego (Há Cena)

É claro que muitos esperavam um bis com Pylla Kroth, tio de Leo Mayer, e detentor de uma carreira celebrada no interior do Rio Grande do sul, seja com a banda Fuga ou até mesmo em sua trajetória solo, com a Carbono 14, quarteto de apoio que teve um jovem Leo como guitarrista. Pylla sobe ao palco e todos já sabiam qual seria a música escolhida para a despedida da Hurricanes do palco do Auditório João Miguel de Souza. SAUDADE é uma espécie de segundo hino de Santa Maria, um clássico do rock local, cravada no segundo LP da Fuga, lançado em 1992. O autor da música, Rafael Ritzel, guitarrista da Fuga, estava na plateia (assim como Gonçalo Coelho, baixista do grupo). Cezimbra senta-se no fundo do palco e novamente chora de emoção, com Leo puxando acordes iniciais — em versão mais emblueada —, e o restante dos músicos improvisando com o auxílio do guitarrista, esquentando a releitura até o ápice apoteótico dos instantes finais. Lágrimas e mais lágrimas nos quatro cantos do Auditório. 

Foto: Pablito Diego (Há Cena)
Utilizando-me do mote da canção do Thin Lizzy —  "The Boys Are Back in Town", todas as emoções afloraram na noite deste sábado na volta dos garotos para o lugar onde tudo se iniciou. E é sempre bom voltar para casa depois da missão cumprida, mesmo que a jornada mal tenha começado. Então, como diria Allen Ginsberg: "Senhoras, levantem as barras das suas saias, vamos atravessar o inferno", pois se a vida é feita de luz e sombra, ontem o sol brilhou para todos nós.  

A reestreia do Auditório João Miguel de Souza é uma promoção do Cineclube Lanterninha Aurélio, com parte do financiamento de reestruturação do espaço captado via Lei Paulo Gustavo. Oferecimento Casa do Pastel, SM Medical e Viação Centro Oeste. Apoio Beltex e Climaster. Suporte técnico: Bolzan Áudio. Filmagem: Ariel Farias. Fotos: Pablito Diego. Assessoria de produção: Camila Gonçalves e Sílvia dos Santos. Segurança: Pedro Gonçalves. Produção Grings Tours e 70. Realização Cesma

Foto: Pablito Diego (Há Cena)

Huricanes | Auditório da Cesma | Março, 30 - 2024

THE BIRD'S GONE

OVER THE MOON 

WAITING

COME TO THE RIVER

FLOWERS

WEARY HEARTED BLUES

DEVIL'S DEAL

PENNY IN MY POCKET

THUNDER IN THE STORM

PURPLE CLOUDS

Bis

SAUDADE (Banda Fuga)

Fotos: Pablito Diego (Há Cena)

Fotos: Pablito Diego (Há Cena)

Fotos: Pablito Diego (Há Cena)

Fotos: Pablito Diego (Há Cena)

Comentários

  1. Show espetacular, banda com muita energia, parabéns a todos , por este excelente espetáculo, de nível internacional!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Banda maravilhosa, grandes amigos de palcos e só desejo sucesso e mais sucesso a Hurricames... viva o Rock intensamente.

      Excluir

Postar um comentário