Review: Hurricanes

| Arte da capa: Julia Danesi / Divulgaçao |
| Por Márcio Grings |

Fazer rock e viver de música no Brasil é um ato de idealismo e coragem. Você sabe que vai passar por perrengues, está ciente de que não haverá balaclavas para protegê-lo das chamas, de todo o modo, o ímpeto de seguir em frente simplesmente o empurra. Foi assim que em 2016 Rodrigo Cezimbra (voz) e Leo Mayer (guitarra) saíram de Santa Maria rumo a São Paulo. Eles tinham um brasão: Hurricanes, banda que fundaram no interior do RS, dispostos a levar esse mesmo emblema como símbolo de sua diligência pelo centro do país. Na capital paulista se juntaram a Henrique Cezarino (baixo) e Guilherme Moraes (bateria, que gravou o trabalho, mas foi sucedido Lucas Leão). 

Hurricanes se apresenta em Santa Maria no Auditório da Cesma. Saiba mais

Arte sobre foto de Julia Danesi por Diego De Grandi
A Hurricanes virou arroz-de-festa no circuito da Grande São Paulo, orbitando por festivais, bares e casas de espetáculo, ora apresentando releituras personalíssimas, mas principalmente por colocar na roda suas canções autorais, sempre com a intenção de juntar as peças certas para construir um álbum com suas músicas, plano concretizado no disco de estreia em junho de 2023

Nas oitos canções do disco o grupo resgata o espírito do hard rock feito na conjunção nos anos 1960/70, batendo de raspão ou acertando em cheio no blues e outras afluências, isso sem se desconectar de uma sonoridade contemporânea. 

As canções tem apelo pop, com trechos instrumentais e solos repletos de nuances e dinâmicas, tornando a música da Hurricanes muito fluente, com Leo Mayer (que também é o produtor musical da banda) tirando vários coelhos da cartola. Vejo nos arranjos um raro detalhismo, uma preocupação nos acabamentos e um conjunto de elementos surpresa que capturam o ouvinte mais antenado.   

Nessa trajetória, um dos picos na carreira da Hurricanes se deu em março do ano passado, quando fez as preliminares para a segunda passagem dos Black Crowes pelo Brasil, com show único em São Paulo. A banda norte-americana, uma das legendas do hard rock mundial, é uma das referências do gênero na atualidade. Essa participação rendeu ao quarteto brasileiro uma série de matérias em sites especializados que consequentemente propagaram o autointitulado álbum de estreia lançado três meses após o evento.

Divulgação
Um lembrete: antes de fazer o faixa a faixa da estreia discográfica da Hurricanes, relembro que o grupo está prestes a lançar seu segundo álbum. Com isso, mesmo com atraso, segue o review de um dos grandes álbuns do ano passado. 

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No CD lançado em 2023, além do quarteto base, o álbum conta com participações — Lucille Berce e Julia Danesi (vozes de apoio), e Jimmy Pappon (teclados). Nos seus 33 minutos de duração, sem desperdícios e fillers, basta ouvir os primeiros 20 segundos de THE BIRD'S GONE e você já sabe território será explorado. É sempre difícil alçar novas canções e compará-las como clássicos do passado, mas aqui a primeira lembrança revivida é com o Led Zeppelin, culpa da voz de Cezimbra e da tímbrica na guitarra de Mayer (principalmente na parte inicial do solo, extremamente 'pageana'). Contudo, não estamos falando de um jogo de imitação, pois trata-se de uma espécie de Norte mítico, uma direção a ser perseguida, pois nascidos anos luz após a era triunfal desses gigantes, a Hurricanes consegue com rara propriedade materializar a presença corpórea do melhor do hard rock feito nos anos 1970

Veja o clipe de "The Bird's Gone". 


Já DEVIL'S DEAL tem o quilate do british rock dos anos 1960. Falo do rock britânico imantado pelo blues e suas confluências, matéria-prima em que as bandas inglesas transformaram o gênero dos afro-americanos em algo seu até o final daquela década, migrando para um outro lugar. É o que acontece aqui, numa viagem circular com retorno ao riff inicial de Leo Mayer. No solo o guitarrista se afunda ainda mais no blues, explorando as dinâmicas e esquentando a ambiência. Ao final, as vozes de Julia Danesi (coautora da canção) e Lucille Berce surgem como o backing soul que engole a voz principal. 

Mesmo sendo ambíguas, THUNDER IN THE STORM traz como primeira lembrança o Free de Paul Rodgers e Paul Kossoff, mais propriamente "Be My Friend" (pelo menos na visão deste resenhador), e não vejo problemas, pois estamos ouvindo uma outra música. Na falsa balada que nunca avança para o sobrepeso, temos um dos cartões de visita da voz de Rodrigo Cezimbra, assim como a sofrência da guitarra bluesy de Leo Mayer nos leva para lugares onde já estivemos antes, mas nunca nos importamos em retornar.  

Veja o clipe de "Thunder in the Storm".
   

Com sua mensagem positivista da vida que se renova após períodos nebulosos: "Waiting for the sun/ Waiting for the rainbow/ Waiting for my love", WAITING tem o carimbo do hard rock revival dos anos 1990, em outra parceria da dupla Cezimbra/Mayer com colaboração da cantora Julia Danesi (que também assina a arte da capa). A guitarra slide brilha em HOW DO YOU LOVE?, numa levada glam chumbo-grosso. No solo a música se pacifica, para novamente pesar a mão na parte seguinte. Daí caimos num buraco escuro, voltando no tempo até chegarmos ao coda mais blues do álbum, com direito a voz-reverber-de-lata e harmônica com cheiro de válvula, numa sonoridade que emula os antigos bluesman

FLOWERS é a grande balada dessa estreia, início só voz e violão, chamuscada pelo country e salpicada pelo southern, tornando-a uma faixa passível de figurar em qualquer rádio rock do planeta. WEARY HEARTED BLUES é etérea, climática, com o baixo de Henrique Cezarino soando borbulhante e gelatinoso, tudo em plena comunhão com a guitarra sombreada pelas blue notes. E, se bandas como Greta Van Fleet e Rival Sons são celebradas como deflagradoras de uma nova onda de classic rock 70, coloque PURPLE CLOUDS e a Hurricanes nesse mesmo pote, pois se você não soubesse que trata-se de um grupo brasileiro nesse páreo (sem a ajuda do photo finish), possivelmente você cairia do cavalo em qualquer jogo de adivinhação.

Veja o clipe de "Purple's Cloud". 

Para muitos, por escrever canções em inglês, pode parecer ilegítimo fazer rock no Brasil e mirar na 'gringa' (ou soar como tal), como se isso fosse um simples arremedo ou apenas uma utopia estúpida. A Hurricanes parece não se importar com impressões rasas como essa, pois sua inegável qualidade musical está resenhada por eles com extrema clareza em uma estreia impecável e sem deslizes, onde eles passam o rodo em toda e qualquer torcida de nariz. Ao apostar suas fichas na profunda herança anglo-americana produzida na conjunção dos anos 1960/70, o grupo brasileiro nos oferece uma ponte-aérea sem escalas até um dos períodos mais mágicos da música mundial. O rock and roll agradece. 

Ouça uma prévia no player ou o álbum completo no link.


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