Review: Planet Waves, de Bob Dylan

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| Por Márcio Grings |

Antecedido por "Pat Garret & Billy the Kid" (1973) e o disco de sobras "Dylan" (1973), "Planet Waves" (1974) é o álbum que antecede "Blood on the Tracks" (1975), um dos clássicos absolutos de sua discografia. Esse é o disco que traz Bob Dylan e The Band novamente juntos, criador e a criatura em forma de grupo que o acompanhou em gravações/ turnês durante a segunda metade dos anos 1960 e primeira metade dos anos 1970. Nesse trabalho, Dylan canta para suas musas (ou para sua musa e suas várias facetas), busca refúgios, fala da passagem do tempo e apresenta ao mundo um de seus maiores clássicos. "Planet Waves" é na verdade o o primeiro álbum de estúdio de Dylan com o Band em ambas as décadas que atuaram juntos, pois "Basement Tapes" (1975), o mais incensado dos álbuns dele com o quinteto, apesar de gravado em 1967, seria lançado apenas oito anos depois. O certo é que Dylan e o Band ainda tinham assuntos inacabados a resolver, artisticamente falando. Inclusive esse retorno os jogaria novamente na estrada, isso apenas poucos meses depois da gravação. "Planet Waves" foi o primeiro LP de Bob Dylan a lhe dar um primeiro lugar nas paradas norte-americanos como álbum mais vendido durante um período.  

Veja a live no Pitadas do Sal.


Se em 1965/ 66, quando Bob recrutou os quatro canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Richard Manuel e Garth Hudson, mais o texano Levon Helm, eles não passavam de meros desconhecidos no cenário norte-americano, em 1974 eles já haviam lançado cinco álbuns de estúdio — "Music from Big Pink" (1968), "The Band" (1969), "Stage Fright" (1970), "Cahoots (1971) e "Moondog Matinee" (1973), agora eram reconhecidos como um dos grupos mais importantes daquele período e, portanto, esse foi um álbum muito esperado pelos fãs. "Planet Waves", inclusive seria o pontapé inicial de uma tríade de álbuns (incluindo o ao vivo "Before the Flood", colocado nas prateleiras apenas cinco meses após o reagrupamento entre Dylan e sua banda). 

Depois de um início reconhecidamente instável nos anos 1970, discos demasiadamente autorais ou equivocados (pelo menos essa era a opinião da crítica) e um troca para a gravadora de David Geffen, "Planet Waves" foi sinal mais evidente de que Bob Dylan ainda era capaz de fazer uma declaração artística significativa, de volta ao seu estado mais flexível e ousado. Trata-se de um álbum dinâmico e consistente, onde um de seus pontos fortes é que não precisamos nos esforçar para apreciá-lo. Se o LP fosse lançado antes de qualquer outro álbum que não "Blood on the Tracks", seria aclamado como um clássico, como sem dúvida hoje ele é considerado. Um detalhe: é curioso pensar que Bob não tenha usado os poderosos vocais de apoio do Band em "Planet Waves", um recurso que ouvimos em apenas uma música — um desperdício! Gosto da capa, pintada pelo próprio Dylan, que meses depois inspiraria a ilustração de "Zuma" (1975), disco lançado por Neil Young and Crazy Horse.  

Dylan e The Band durante o tour de 1974
ONE A NIGHT LIKE THIS

Uma noite de nevasca nas Terras do Norte, um casal aninhado à beira de uma fogueira protegidos nesse refúgio idílico. Violão, uma guitarra limpa bordejando, o acordeom de Garth Hudson emprestando ares rurais e festivos. Recomendo a audição de uma versão do Los Lobos, onde o grupo chicano mescla a letra original em inglês com trechos em espanhol. 

GOING, GOING, GONE

Uma das minhas favoritas, faixa que fala sobre a passagem do tempo e a sensação de que o fim do túnel está próximo. Robbie Robertson dá o tom com sua palhetada inconfundível. Dylan tinha pouco mais de 30 anos quando escreveu "Going, Going, Gone", mas essa é uma daquelas canções em que a temática combina muito com o Bob octogenário de hoje. O recado é: precisamos aproveitar cada pequeno pedaço de tudo, pois a vida voa. Na letra ele diz: "Cheguei num lugar onde o salgueiro não se dobra / Onde não há mais muito a se dizer / É o topo do fim / Estou indo, estou indo, já fui! Estou fechando o livro / Páginas e textos / E não importa o que vem pela frente/ Eu só estou indo, estou indo, indo". Não a toa, Gregg Alman gravou esse tema no fim de sua vida, em "Southern Blood" (2017), álbum póstumo do líder da Allman Brothers Band, pois a letra é emocionante pelo ponto de vista de alguém com a morte à espreita. O solo mastigado de Robbie Robertson e as camadas discretas de teclados são marcas do Band. 

TOUGH MAMA

Um Dylan quase numa pegada Neil Young and Crazy Horse, só que mais ensolarado. Depois de uma faixa reflexiva, o tom de celebraçao retorna. Aqui Dylan corteja sua Tough Mama, una mamacita durona, uma figura rodada que já foi a mulher de outros tantos, mas agora está sendo visitada por ele. "Tough mama", a bruxa que lhe dá guarida até que ele novamente caia na estrada, rumo à fronteira. É uma música que poderia aparecer nos shows, mas não foi usada (só em 1997 conheceríamos uma versão ao vivo dela). O solo bagunçado de gaita, dividindo os espaços com o órgão nos deixa batendo o pé ao ritmo da música até os segundos finais. 

HAZEL

Após uma visita a "Tough Mama, outra mulher (ou outra faceta da mesma pessoa) surge nesse percurso. "Hazel", uma dama doce e pacífica, uma lady com um toque suave: "You've got something I want plenty of/ A little touch of your love" (Você tem algo que eu quero tanto/ Um pequeno toque de seu amor). A harmônica sopra logo no início dessa balada, e ganha um espaço no solo, a guitarra de Robbie está lá, soltando chispas discretas.  

SOMETHING THERE IS ABOUT YOU

Robbie Robertson dá as cartas logo de cara (sua guitarra é uma das marcas do álbum). Repare, não há vozes de apoio do Band como aconteceu em "Basement Tapes" que, apesar de ter sido gravado em 1966, só seria lançado no ano seguinte. "Planet Waves" é um disco de Bob Dylan em que o Band é apenas um coadjuvante, um coadjuvante de luxo. A letra traz outra visão de sua musa, vinda de um passado distante, uma miragem que ainda não se apagou na memória. A gaita de Dylan é constantemente usada nos solos e finais de música, é o caso de "Something There is About You".

FOREVER YOUNG (VERSÃO SINGLE)

"Forever Young" é um dos pontos supremos da obra de Bob Dylan. A letra revela um desejo para que o desgaste dos anos não corroa o melhor de cada um de nós e nos mantenha jovens para sempre:

Que Deus te abençoe e sempre te proteja/ Que todos os seus desejos se realizem/ Que você seja bondoso com as pessoas/ E que permita que as pessoas sejam bondosas com você/ Que você consiga erguer uma escada até as estrelas/ E avançar cada degrau/ E que você permaneça jovem para sempre. 

Que ao crescer você se torne uma pessoa justa/ Que ao crescer você se torne verdadeiro/ Que você saiba sempre discernir a verdade/ E enxergar as luzes que o cercam/ Que você seja sempre corajoso/ Aguente os trancos da vida e seja forte/ Que você permaneça jovem para sempre". 

Dylan escreveu a música para um de seus filhos, Jesse, mas trata-se de um daqueles temas capazes de nos abduzir e nos jogar num transe sonoro como se fosse uma oração. Minha versão favorita está no filme "The Last Waltz" (1978), com Bob e o Band tocando no dia de Ação de Graças em 1976, no ápice de suas forças e, ao vivo, felizmente temos as vozes de apoio do grupo no refrão.   

FOREVER YOUNG (VERSÃO RÁPIDA)

Pra mim a bola fora do disco. A última do Lado A é que vale a viagem. Aqui eu passo adiante. 

DIRGE

O canto fúnebre de uma relação, um amor em decesso, doído, um desespero esmagador que ainda flameja. "Eu me odeio por amar você, preciso superar isso". Apenas o piano e violão são utilizados em grande parte de "Dirge" a mais misteriosa das canções do álbum e uma das joias perdidas do disco. Essa forma de compor, passando pela temática minimalista dos instrumentos até a abordagem da letra, ganharia mais espaço em álbuns futuros como "Oh Mercy" (1989) e "Time Out of Mind" (1997). 

YOU ANGEL YOU

Aqui Dylan fala do triunfo do amor, o deslumbramento com a musa que preenche seu coração e o seu espírito. Instrumentalmente é uma das canções mais The Band do álbum. As camadas de teclados de Garth, o piano de Richard, a batida pipocada e firme da cozinha, Robbie preenchendo os espaços com sua guitarra. 

NEVER SAY GOODBYE

O círculo se fecha e Bob volta ao mesmo lugar onde estava na primeira canção. Um lugar frio, mas confortável, onde esse ambiente sopra ares de um romance em perigo. Eis a única música onde os vocais de apoio do Band são utilizados (mesmo que discretamente), o que empresta um colorido muito bonito ao refrão. A minha guitarra favorita de Robbie no disco está em "Never Say Goodbye", desenhada pela sua palhetada inconfundível. O baixo de Rock Danko também salta fora da moldura e, ao final, o fadeout nos deixa com a sensação de que essa música poderia durar mais 10 minutos.  

WEDDING SONG

Depois de atravessar o mundo e cair nos braços de Hazels, Tough Mamas e outras tantas, Dylan volta para casa e exalta sua vida a dois com Sara. É a única música voz, gaita e violão do álbum, um final já utilizado e que ele voltaria em discos seguintes. Apesar de uma letra ótima, talvez essa faixa caísse melhor em outro álbum ao invés de "Planet Waves". Parece que, ao escrever canções densas sobre relacionamento como "Dirge", ele precisava escrever "Wedding Song" apenas para ter uma sensação de equilíbrio artístico. Músicas como "Dirge" e "Wedding Song" nos fazem pensar que nem sempre um músico precisa escrever sobre si mesmo, assim como muitos romancistas não necessitam estar na pele do personagem central de cada romance, assim como um ator não necessariamente interpreta a si mesmo toda vez que sobe ao palco. Nesse caso, "Wedding Song" soa como uma descrição de sua vida a dois com Sara. 

Ouça AQUI ou confira uma prévia de "Planet Waves" no player abaixo.

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