Review: The Rolling Stones "Hackney Diamonds"
| Foto: Mark Seliger | |
Eu desconfio de unanimidades. Entretanto, qualquer pessoa que goste de rock and roll certamente teve motivos para celebrar o gênero no último dia 20. Eu, por exemplo, decretei feriado. "Hackney Diamonds" difere-se em alguns aspectos de qualquer lançamento dos Rolling Stones nos últimos 40 anos. Em breve retrospecto, só "Voodoo Lounge", de 1994, pode fazer sombra ao novo disco, mas "Hackney Diamonds" – com 12 minutos a menos –, é mais consistente. "Steel Wheels" e "Bridges to Babylon (1997) tem ótimo momentos, mas são irregulares. O primeiro, soa datado (ah, os anos 1980!), o segundo, é uma colcha de retalhos. Pergunto: algum fã dos Stones irá celebrar os 40 anos de "Undercover" (1983)? "Dirty Work" (1986), imprensado entre álbuns solo da dupla Jagger/ Richards – e salvo por Ronnie Wood – é repleto de tapa-buracos. Nos anos mais recentes eles nos deram singles, clipes, uma onda de relançamentos baseados em efemérides (o que também celebro), salvo um ótimo disco de releituras, "Blue & Lonesome" (2006), mas nada com a consistência de um novo trabalho de inéditas. Depois de certa decepção em "A Bigger Bang" (2005) – com 16 minutos a mais que o atual – que contém a ótima "Rain Fall Down" (veja o clipe), Mick e Keith nos mostram que podem fazer mais do que nos dar apenas mais um ou dois hits. E, apesar de você ouvir por aí frases do tipo "Os Stones não precisam provar nada para ninguém", todos nós que vivemos o universo do rock precisávamos desse disco, principalmente os próprios Mick, Keith e Ronnie.
Como grupo, eles sempre foram bois de piranha do rock, abridores de brechas e desafiadores do senso comum. Os Stones nos entregaram clássicos nos anos 1960/ 70, inventaram as turnês como as conhecemos hoje, sobreviveram as drogas, passaram no teste do tempo e transmutaram-se década após década, driblando as crises (nunca de identidade), muitas vezes nos oferecendo sua alma nesses incríveis 60 anos de atividade! Anti-heróis natos, ainda hoje os vejo como fonte de inspiração. Você não acharia incrível estar ativo e produtivo aos 80 anos? "Hackney Diamonds", o primeiro trabalho sem Charlie Watts (ele está no álbum em duas músicas), e primeiro com seu sucessor, Steve Jordan (nomeado pelo próprio Charlie), não só estará na lista dos melhores discos de rock and roll de 2023, mas é forte candidato a se tornar um dos álbuns da década. Assim, não é exagero dizer que temos o melhor trabalho do grupo nos últimos quarenta anos. Esqueça a capa e as artes utilizadas na obra, que além de ruins, parecem ter sido plagiadas de um tal de Ryan Henwood, que lançou ano passado um álbum chamado "Lovers Dark" (obrigado pelo toque, Cristiano Radtke). Veja AQUI
| Divulgação RS | |
A presença do jovem produtor norte-americano Andrew Watt (Justin Bieber, Miley
Cyrus, Ozzy Osbourne, Pearl Jam, Iggy Pop), deu o acabamento plástico de "Hackney Diamonds", sonoridade que até nos faz pensar no passado – o que não poderia ser diferente –, mas também soa moderna. Não vejo problemas no som que ouvi no streaming (ainda não tenho o LP), e também não percebo uma mão pesada na mix como alguns estão falando. Afinal, esse é um disco feito em 2023, tempos em que grande parte das pessoas irá ouvir "Hackney Diamonds" pelo smarphone (por mais triste que isso pareça). Não percebo traços de que "o verniz escorreu" nessa mix/ máster. Inclusive, vejo neste álbum credenciais para recrutar novos devotos, pois, apesar de ser um disco de rock and roll (quem ainda ouve rock?), ele possui credenciais para seduzir a garotada de hoje. Essa intenção pode ser simbolizada na própria campanha publicitária de divulgação, uma das maiores (se não a maior) protagonizada pela banda inglesa.
Divulgação |
Ao nos determos no conteúdo lírico do álbum, sempre tive uma impressão de que grande parte das letras da dupla Mick e Keith, autores das 12 canções (três faixas foram feitas em parceria com Watt), muitas vezes carecesse de profundidade. É como se ainda fossem jovens inconsequentes e despreocupados, pois em dados momentos não há resquícios de que são compositores rodados por trás das letras. Diferente de outros veteranos (e aqui, para colocar o sarrafo nas alturas, relembro a tradição literária de Bob Dylan), uma parte das letras dos Stones escritas para o novo álbum não se diferem do que já ouvimos nos seus trabalhos nos último 40 anos, pois versam sobre tudo aquilo que já foi exaustivamente falado. A exemplo desse ponto de vista, "Hackney Diamonds" novamente traz as corriqueiras histórias sobre desentendimentos e romances desgatados, roteiros recorrentes não apenas em sua discografia. Mas eles avançam em alguns sentidos, pois também falam de solidão, das redes sociais e de isolamento voluntário. Dessa vez há até mesmo reflexões sobre o passar do tempo, como no caso de "Get Close", "Depending on You", "Tell Me Straight" e "Sweet Sound of Heaven". A jornada do herói que percorre os temas está repleta de momentos sombrios e de breves fachos de sol, o que também não é novidade na obra do grupo, como ainda reflete o mundo obscuro em que vivemos.
Ao colocar o álbum para rodar, basta 15 segundos de audição e você já sabe – "Angry" é puro Stones! Primeiro single liberado, impulsionado por um videoclipe com Sydney Sweeney – a atriz aparece passeando pelas ruas de Los Angeles num Mercedes conversível –, enquanto outdoors projetam imagens do grupo, o início não poderia ser melhor. Se a tropa de choque – do 'politicamente correto' – achou dissonante a escolha de uma garota em trajes menores se contorcendo no banco de trás de um automóvel, lembro que o grupo usualmente utiliza a sensualidade feminina e atrizes em seus clipes. A exemplo, "Like a Rolling Stone" (com Patricia Arquette), "Anybody Seen My Baby" (com Angelina Jolie), "Doom and Gloom" (com Noomi Rapace), "Ride 'Em On Down" (com Kristen Stewart) e "Criss Cross" (com Marina "Guindilla" Ontanaya), atestados comprobatórios dessa linha editorial. Esqueça a letra, pegue carona no riff e se divirta. O fato é que "Angry", uma espécie de "Star me Up" do século XXI, certamente será carimbada nos futuros setlist ao vivo. Confesso, ouvi-la na íntegra pela primeira vez me fez concluir o quanto precisamos de uma nova canção dos Stones. O solo de guitarra com hand-claps me arancou um sorriso. Há até um aceno para os fãs brasileiros, pois Mick Jagger canta: “I’m still taking the pills and I’m off to Brazil“ — Eu continuo tomando comprimidos e estou indo para o Brasil“ —, uma constatação de que o país continua vivo no seu imaginário e no radar dos Stones.
O estreante Steve Jordan é o responsável por disparar "Get Close", uma batida diferente desse discípulo de Charlie, mas que não decepciona. Logo no início ouvimos: "I walk the city at midnight with the past strapped to my back" — Ando pela cidade à meia-noite com o passado amarrado nas costas —, em outras letras ele voltará a falar sobre isso. O refrão é pop e cola de cara. Elton John está no piano, o solo de sax é de James King – ao melhor estilo Bobby Keys – o que revive o clima de canções como "Slave" (gravada pelo jazzista Sonny Rollins), com as bases de guitarra similares, o que oferece uma cama confortável para os sopros. Mick está em ótima forma, e citá-lo como um dos destaques do álbum é quase uma redundância. Em "Depending On You", a primeira balada em ordem cronológica de audição, Ronnie Wood dá o ar da graça com seu slide pontuando sutilmente os espaços vazios. Benmolt Tench (Tom Petty and The Heartbreakers) aparece no pano de fundo atrás do órgão Hammond. Mick diz: "Now I'm too young for dyin' and too old to lose" — Agora sou jovem demais para morrer e velho demais para fracassar —, o que traduz a própria dicotomia dele ainda estar fazendo esse trabalho após 60 anos. O vocalista parece responder tardiamente o Who em "My Generation", quando Roger Daltrey canta "I hope I die before I get old" — Espero morrer antes de envelhecer —, pois diversos personagens envolvidos nas duas músicas envelheceram e continuam nos palcos. Perceba o vai e vem entre Keith e Ronnie em "Depending On You", um ponto forte da dupla, cada qual dentro de um espaço musical, complementares e sem se rivalizar, às vezes alternando os papeis e o protagonismo, mas nunca em desfavor do tema.
Divulgação RS |
A festeira "Bite My Head Off" é punk (letra e música). A presença de Paul McCartney no baixo não é protocolar. Longe disso! Paul utiliza um modelo Hofner – que ganhou de presente de Watt. Mick diz a Paul antes do solo: "Come on, Paul, let’s hear something" — vamos lá, Paul, deixa eu ouvir algo — e, atolado de saturação, o baixista transborda fuzz no solo, mesmo efeito que usou em "Think For Yourself", de "Rubber Soul" (1966). Em 2023 chegamos aos 60 anos da gravação de "I Wanna Be Your Man", primeiro encontro discográfico entre Beatles e Stones, uma canção de John e Paul lançada por ambas as bandas.
Luz novamente nas guitarras da dupla de espadachins, pois "Whole Wide World" soa moderna e pesada e, até o refrão, não parece um tema do grupo. Bem no início ouvimos a frase: "And everywhere I'm lookin'/ There's memories of my past" — Em todos os lugares que eu olho/ Há vestígios do meu passado — outra reflexão sobre a passagem do tempo. Já "Dreamy Skies" flerta sem atalhos com o country, algo que os Glimmer Twins sempre souberam fazer com propriedade. Ronnie brilha no dobro e Keith ponteia a guitarra. O vocal de apoio oferece um encaixe perfeito no blend do encontro das vozes de Mick e Keith (lembro de algo parecido em "Sweet Black Angel e outras tantas) —. Em tempo: Keith Richards tem uma das melhores segundas vozes do rock, com sua garganta estragada de tanto Jack Daniels, cigarros e nenhum cuidado específico. A sensação é de que essa música foi gravada ao vivo (sabemos, não foi). A gaita de boca do vocalista faz sua primeira aparição, frases simples e bem coladas. É a melhor letra de "Hackney Diamonds", que lembra trechos dos escritos de Bernie Taupin no início dos anos 1970, a exemplo do refrão de "Goodbye Yellow Brick Road", que também fala de fuga da badalação dos grandes centros e cita o som de animais campestres: "And I wont hear the sirens or maddenin' crowd/ Just the bark of a fox ant the hoot and the hoot of an owl/ I ain't got no connections or a satellite" — E não ouvirei sirenes ou a multidão enlouquecida/ Apenas vou curtir o regougo da raposa e o pio da coruja/ Não tenho conexões nem telefone —, canta Mick em "Dreamy Skies".
Esse escapismo retratado num lugar idílico abraça ainda mais o passado quando ele cita um dos mestres da música caipira norte-americana: "I'll be choppin' up wood, I'll be splittin' the halves/ An old damn radio is all that I've got/ It just plays Hank Williams and some bad honky-tonk" — Vou cortar e separar a lenha/ Um maldito rádio velho é tudo o que tenho/ Ele só toca Hank Williams e uns sons caipiras" —. Lembro que há mais de 20 anos 'Keef' participou de um tributo a Hank e cantou "You Win Again" – ouça AQUI. Essa parte da letra deve ter vindo dele. Coloque "Dreamy Skies" numa seleção ao lado de temas como "You Got the Silver", "Sweet Virginia", "Dead Flowers", "Far Away Eyes", entre outras tematizadas pelo capim loucura da música caipira norte-americana. Fiz uma playlist - ouça AQUI
Foto: Mark Seliger |
"Mess It Up" é uma das músicas que trazem o charme e a ginga de Charlie Watts de volta à vida. A bateria foi gravada em 2019, e é um de seus últimos registros. Numa batida disco, somos jogados num piscar de olhos direto para o final dos anos 1970. A letra narra a relação tóxica de um casal estremecido. Nesse embate, telefones podem ser clonados, senhas são roubadas e fotos íntimas compartilhadas – nada mais atual. "Live by the Sword" conta com a presença ilustre do baixista fundador do grupo, Bill Wyman, além da segunda invocação espírita de Charlie Watts, o que remonta a cozinha clássica dos Stones. Talvez seja o momento menos inspirado de "Hackney Diamonds" (a letra é terrível). Contudo, temos a salvaguarda da reunião derradeira entre Bill e Charlie, além da nova visita de Elton John, saltitando seus dedos nas teclas ao estilo de Ian Stewart. A audição sobe um degrau em "Driving Me Too Hard". Tímbrica setentista com acordes semelhantes a "Tumblin' Dice" –, mas sem se avizinhar melodicamente ao tema gravado no álbum "Exile On Main Street" (1972), pois é uma viagem que segue noutra direção, onde o futuro encontra o passado sem soar como um simples arremedo.
Foto: Mark Seliger |
A próxima faixa fala em visões opacas do amanhã, "Is my future all in the past?" — Meu futuro está no passado — justifica Keith em "Tell Me Straight". O sempre esperado momento solo do guitarrista não decepciona. No refrão, me parece que é Andrew Watt no backing (coloca mais essa no currículo, Andy!) — ou seria Mick ou o próprio Keith dobrando sua voz? Maldito streaming, onde está a ficha técnica? A música evoca à lembrança de outras tantas que ele espalhou pela vasta discografia dos Stones e de sua carreira solo. E são muitas... Ouça uma
playlist apenas com baladas de KR AQUI
Foto: RS |
Com Stevie Wonder nas teclas (piano, Fender rhodes e moog). e Lady Gaga dividindo os vocais com Mick, "Sweet Sounds of Heaven", segundo single divulgado de "Hackney Diamonds", é o pico mais elevado do álbum, e um dos pontos centrais de conexão com novos públicos, principalmente pela participação de Gaga. Trechos da apresentação surpresa em Nova York, ocorrida no último dia 19, foram exaustivamente compartilhados nas horas seguintes ao evento. O clima gospel/ soul resgata o espírito de muitos temas clássicos dos Stones, com sabor da virada dos anos 1960/ 70 (o que certamente atende à expectativa dos fãs da velha guarda).
A letra traz boas reflexões: "Let no woman or child go hungry tonight/ Please, protect us from the pain and the hurt, yeah" — Que nenhuma mulher ou criança passe fome esta noite/ Por favor, proteja-nos da dor e da mágoa —. E, logo depois, Mick nos entrega uma das grandes pérolas do álbum, quando parece resumir o sentimento de estar no palco aos 80 anos fazendo o que bem sabe: "Let the old still believe that they're young" — Deixe os velhos ainda acreditarem que são jovens —. O mesmo homem que um dia disse que não queria chegar aos 40 anos cantando "Satisfaction", cruzou o dobro desse tempo fazendo exatamente isso. E, após o falso final de "Sweet Sounds of Heaven", para o nosso deleite, temos mais dois minutos de Mick e Gaga se dividindo nos vocais. É a faixa mais longa do álbum com seus 7 minutos e 22 segundos. É também um dos novos clássicos do grupo.
Veja os Stones ao vivo no último dia 19 no Racket, em Nova York, tocando "Sweet Sounds of Heaven" ao lado de Lady Gaga.
Caso você não saiba, os Rolling Stones nasceram como uma banda de blues, batizada por Brian Jones, inspirado em "Rolling Stone Blues", de Muddy Waters: "Well, my mother told my father/ Just before, I was born/ 'I got a boy child's comin/ He's gonna be, he's gonna be a rollin stone'" — Minha mãe disse ao meu pai/ Pouco antes de eu nascer/ 'Tenho um menino chegando/ E ele vai ser uma pedra rolante —. "Hackney Diamonds" fecha suas cortinas no clima acústico, a faixa mais curta do disco, com 2 minutos e 41 segundos de autenticidade pura, apenas com Mick na voz e harmônica, mais as chispas metálicas do violão Gibson de Keith nos levando de volta às origens do blues e do próprio grupo. A pergunta é: como que "Rolling Stone Blues" ficou de fora de "Blue and Lonesome", o disco de blues dos Stones lançado em 2016? O certo é que ao relê-la na última página de "Hackney Diamonds", tudo parece se encaixar, mesmo que esse não seja o final de tudo.
Me parece que ainda há algo mais a ser oferecido logo à frente, pois está muito claro a necessidade de ainda termos os Rolling Stones por perto, eles e suas canções, principalmente nesse mundo distópico de hoje. Com Mick, Keith e Ronnie na ativa, no mínimo, tudo fica mais divertido.
Foto: Mark Seliger |
Sensacional! Onde assino? Hackney é o bom e velho Rolling Stones fazendo o que sabe fazer de melhor, Música, com "M" maísculo e ainda se divertindo e nos divertindo no meio do caminho! Não é um final, é um novo recomeço! Vida longa aos Stones!
ResponderExcluir...matou a pau, MG!!
ResponderExcluir