O prazer de ouvir "Don't Mask It Low", último trabalho de Rodrigo Ardais

| Rodrigo Ardais. Foto: Fabiano Dallmeyer |
| Por Márcio Grings

Nem sempre a história cultural de uma cidade faz jus ao seu legado. Contudo, o nome desta plataforma não se intitula Memorabilia apenas pelo elemento estético da palavra. Mesmo que muitos não lembrem, desconheçam ou tenham perdido a memória, como guitarrista de blues, Rodrigo Ardais fez história por aqui. Falo com conhecimento de causa: eu e Rodrigo fomos parceiros musicais, pois esse uruguaianense que escolheu Santa Maria como lar, foi um dos fundadores da Red House, grupo ao qual trabalhamos juntos por quase uma década. Figura carimbada nos bares locais, a Red House registrou três álbuns independentes — "One More Drink, One More Night" (2004), "BluesMachine" (2006) e "It's Not Raining Yet" (2010), além da coletânea "Greatest Rotten Hits" (ouça no player abaixo).

 

Fora da odontologia (sua profissão) ou do blues e do rock (algumas de suas paixões musicais), Ardais reapareceu alguns anos depois do fim da Red House com "Encephalophonia" (2014), um álbum repleto de ruídos, batidas descompassadas, experimentos com rádio em ondas curtas, fusões de diferentes faixas sincronizadas, repleto de afinações sinistras, escalas atonais e colagens. Após esse reinício, seguiu nesse caminho — ou próximo dele , e, seja individualmente ou através de parcerias, gravou mais oito trabalhos. 

Confira o perfil do músico no Bandcamp e ouça sua discografia.  

Capa de "Don't Mask It Low". Arte: Rodrigo Ardais
A última cruzada de Ardais é "Don't Mask It Low" (2022), obra disponível apenas em streaming (merece um disco físico) onde tudo que ouvimos foi feito e gravado por ele em seu home studio (inclua a capa neste pacote). No conjunto de oito faixas o ouvinte irá se deparar com uma sonoridade algumas vezes propositalmente desleixada — esteticamente falando — o que invariavelmente pode nos jogar sem aviso no pós punk e no rock garage da virada dos anos 1970/ 80. É o que ouvimos em "Better Come Home""Gone and Gone" e "Mama Take It", onde as letras são apenas outra camada de cores entre a babilônia de coisas que a audição nos evoca à memória. Destaque para "Old Than All", uma autêntica soundtrack próxima ao universo caótico dos filmes de David Linch (Alô, David! Eis uma ótima trilha para o seu próximo projeto!). O trêmulo na guitarra de "All Delight" é puro surf music dos anos 1960, mas a voz a entoar a melodia corporifica o deboche de Iggy Pop. Já o minimalismo de "Dig A Pic" faz saltar as chispas elétricas do rock industrial e as faíscas do noise.

A guitarra distorcida de "The One Love" parece anestesiada pelos diálogos de um casal acordando após uma noitada de excessos, e o caminho de retorno a realidade está no dedilhar de um violão que surge entre a névoa anômala. "Don't Mask It low" termina com o clima hard de "Don't Come Me Low", onde as guitarras se enovelam sem se tapear, ao mesmo tempo em que há uma disputa entre os dois guitarristas que na verdade são apenas um. 

Nos cerca de 25 minutos de audição de "Don't Mask It Low" somos levados a uma  breve epopeia musical onde cada esquina apresenta uma nova surpresa. O grande barato no som de Rodrigo Ardais é justamente se ver enredado nessa teia de citações e inspirações que reaquecem o prazer da experiência musical. E, quando qualquer nova descoberta ou viagem é intrigante e provocativa, certamente tudo fica mais divertido.

Arte sobre foto de Ronai Rocha

Comentários