“FUGA” (1990)
| Reprodução 100 GAdRG | |
| Por Márcio Grings |
Surgida na virada dos anos 1980/90, a banda Fuga é uma das pérolas escondidas do rock feito no Sul do país. Você não sabia da existência dela? O livro "100 Grandes Álbuns do Rock Gaúcho" (compre AQUI), de Cristiano Bastos e Rafael Cony, foi lançado para corrigir equívocos históricos como esse. Fui convidado pela equipe de produção da obra (ao qual ainda participei da curadoria) para escrever o texto da Fuga. Publico aqui uma versão extended play do material que foi enviado para a publicação.
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Se não tivesse fincado raízes em Santa Maria, certamente a Fuga seria mais celebrada em outras praças. De todo o modo, nascida da fusão de três bandas – Thanos, Banana Explícita e A Bruxa, com o autointitulado Fuga (1990), o grupo marcou seu lugar na história. O quinteto santa-mariense atuava numa frequência diferente do rock gaúcho, pois havia um certo distanciamento com o pop instantâneo feito naquela virada de década. Culpa de seus flertes com o metal, das conexões com a ala progressiva, do hard encardido na linha de frente e dos amplificadores no volume máximo — elementos que definiram as singularidades dos seus sete anos de existência (novembro de 1988|janeiro de 1996). Ganhadora da etapa de Santa Maria do Circuito de Rock — festival promovido pela RBS no final dos anos 1980 —, a Fuga partiu para a grande final do evento. Direto da Usina do Gasômetro, com transmissão ao vivo pela TV, milhares de lares em todo o Estado sentiram a porrada de “Sentimento Perdido”. A Fuga não levou o caneco, mas fez bonito e figurou no casting do LP.
Depois do teste de fogo, eles estavam prontos para gravar
o disco de estreia. Nos deslocamentos de
Santa Maria até a capital, a Fuga viajava espremida no Chevette do pai de Gonçalo.
No exaustivo bate e volta, outras vezes, banda e seu entourage, seguiram até lá
socados no Corcel II de Seu Edson Domingues (pai do produtor da banda). Tudo
pelo álbum, juntos pelo rock and roll. Gravado nos estúdios da EGER em Porto
Alegre, as sessões de gravação resultaram em
cerca de 150 horas, quase uma semana convivendo com o temido efeito REC. No
comando das gravações, Renato Alscher (Cheiro de Vida, Marina Lima). E, além
da formação clássica — Pylla Kroth (voz), Rafael Ritzel /
Zezinho Cacciari (guitarras), Gonçalo Coelho (baixo e voz de apoio) e Pipoca
(bateria), o álbum conta com participações de Ricardo Freire
(teclados), Renato Molina (voz de apoio) e Denise Fontoura (saxofone). A capa é
obra do artista santa-mariense Geraldo Markes, com supervisão artística de Heron
Domingues, produtor executivo do grupo.
6 de setembro de 1990, o show de lançamento teve como palco o Clube Caixeiral, em Santa Maria. Som e luz de primeira linha, banda na ponta dos cascos, staff alinhado, lotação máxima (muitos fãs ficaram do lado de fora) — e a apoteose no palco. Depois a Fuga cai na estrada, levando a tiracolo todos aqueles penduricalhos e excessos que o rock and roll costuma alimentar. O grupo passa por Porto Alegre, Florianópolis, Passo Fundo, Uruguaiana, Santiago, São Borja, Itaqui, Soledade, São Luís Gonzaga, Três Passos, Santana do Livramento, Tapera, Tupanciretã, Espumoso, Júlio de Castilhos, Não me Toque, Ibirubá, Cruz Alta, Santo Ângelo, São Vicente do Sul, Santo Augusto, Jaguari, Restinga Seca, Cachoeira do Sul, Agudo, Faxinal do Soturno, Silveira Martins, Salto do Jacuí, entre outras cidades, pois foram centenas de shows pelo RS, uma jornada com muitas pernas, turnê que se estendeu até julho de 1992. Poucas bandas e artistas daquele período tocaram tanto quanto eles. Houve uma apresentação que merece ser mencionada — inverno de 1992, na Boca do calçadão em Santa Maria. A Fuga fechou duas ruas do centro da cidade, protagonizando uma manhã memorável para os seus fãs, algo impensável para os dias de hoje, Há uma foto dessa apresentação que volta e meia circula pelas redes sociais, prova do saudosismo que a banda ainda provoca no seu público.
| Reprodução 100 GAdRG | |
“Jogos de Imagens”
e “Laranja Mecânica” trazem um dos
carros chefes do grupo — as
guitarras de Rafael Ritzel e Zezinho Cacciari. A letra de “Jogos de Imagens” está
sintonizada ao espírito galhofeiro da juventude e do próprio rock and roll: “Beba
uma cerveja / Acenda aquela bomba / Queime o seu filme”, já “Laranja Mecânica” busca
inspiração no título do filme de Stanley Kubrick para nos mostrar um autêntico
heavy metal dos anos 1980, com Pylla imprimindo sua inconfundível digital. Duas
faixas nos conduzem ao universo da vida noturna: “Dama da Noite” — que nomeou o primeiro show do
grupo, em 1989 — trazendo à tona a simbologia da aparente menina frágil e
inofensiva, mulher fatal à noite. Ao vivo, essa espécie de fusion-punk se
tornaria um dos grandes momentos das apresentações da Fuga. “Guetos”, no
início emula um trânsito com o rock progressivo — coloque
na conta do teclado de Ricardo Freire—, mas, ao
final, revela um duelo das guitarras que toma conta de praticamente metade da
música.
O Labo B começa com “O
Outro Lado”, um rock and roll que tem um pé nos anos 1970 e outro no hard
rock daquele final de década. A balada “Sem Medo” teve um videoclipe histórico,
exibido no programa Sul em Canto da RBS TV. No enredo da filmagem o diretor
Sérgio Assis Brasil ficciona uma relação homoafetiva entre duas meninas, um
tema ainda inexplorado para um programa natalino a ser exibido em horário nobre
na televisão. ”Teu Mistério” é o recorte menos inspirado do álbum, mas
já na faixa seguinte a Fuga se recompõe em “Trocando Palavras”, que
chega a conter dropes de metal extremo, sentimento amplificado na velocidade e
no martelar da bateria de Pipoca. E a despedida encontra em “Tentando Esquecer”
elementos de uma autêntica balada heavy (ao estilo da Fuga), com Gonçalo Coelho
lembrando os inconfundíveis galopes do baixo de Stevie Harris, líder do Iron
Maiden. E quando nos aproximamos do final, o sax de Denise Fontoura nos conduz
até os segundos finais do disco.
Depois de “Fuga”, o álbum de estreia, três anos depois “Crime ao Vivo” traria músicas como a faixa título, “Peças de Desilusão”, “Políticos”, números com o inconfundível DNA que os consagrou. Décadas após sua dissolução, a Fuga ainda permanece viva no coração de seus fãs. Pylla Kroth mantém uma carreira solo ativa e nunca deixou de incluir sucessos do grupo em seus discos e shows, sendo um dos grandes responsáveis pelo quinteto santa-mariense continuar conquistando novos adeptos. Se alguém disser que não sabe o que você está falando, mostre este livro e coloque LP de estreia da Fuga para girar no toca-discos.
AH, SAUDADE!
“O amor é a coisa mais triste quando se desfaz”, nos diz Vinícius de Moraes como alerta do sentimento provocado pelo fim de uma relação. Existem músicas destinadas a nortear lembranças — ponto cardeal, rosa dos ventos, trilha-sonora, hino oficial de uma nação ou apenas de um singelo coração. “Saudade” é uma pátria em forma de canção — é a love song definitiva da Fuga. Quantos já emularam a voz de Pylla Kroth cantando: “Confusão de sentimentos / Tristeza no Olhar”. A música nasceu em 1989, inspirada num prelúdio de Bach e no fim de um namoro do guitarrista Rafael Ritzel, o criador da letra e da música. O baixista Gonçalo Coelho colaborou com uma nova frase na parte B — “A única certeza é a incerteza do teu amor”. ”Hey Jude está dentro de Saudade. Os mesmos acordes, a mesma tonalidade, a disposição dos arranjos: piano, violão, voz e strings”, diz o guitarrista. Não deu tempo de finalizá-la para o LP de estreia da Fuga, o fruto estaria maduro e no ponto para ser devorado só em 1993. Assim, quando a agulha do toca-discos cruza em 33¹⁄₃ rotações pela última faixa do Lado A de ”Crime ao Vivo”, sua presença epifânica é invocada.
BEATLES, BACH, VINÍCIUS, ÉRICO, LED E O ROCK BRASILEIRO
Pipoca, o baterista, é totalmente responsável por acelerar o andamento na parte final, quando podemos traçar uma analogia com o que John Bonham fez em “Stairway to Heaven”, maior sucesso do Led Zeppelin. O solo de guitarra de Zezinho Cacciari traz a essência de uma conexão com o espírito turbulento do rock. E o que dizer da voz que dá o play em nossa lembrança? “Ele me deu a música da minha vida — ou melhor, das nossas vidas”, nos diz, Pylla. Curiosamente, Ritzel nunca se sentiu confortável pela primeira frase da música, justamente o bordão mais marcante de “Saudade”: “Confusão de sentimentos”. “Sempre que refletia sobre a letra, havia um desconforto com esse início. Até que certo dia, lendo uma antiga matéria sobre Érico Veríssimo, descubro que ‘confusão de sentimentos' era o que Érico sentia ao finalizar a escrita de um livro, incapaz de definir se realmente gostara ou não da trama que construíra”, revela o guitarrista. Assim é “Saudade”, ao falarmos dela, falamos um pouco de Beatles, Bach, Vinícius, Érico, Led, do rock brasileiro dos anos 1980/90, ou da simples onipresença da música da Fuga em nosso imaginário, fundamental ao ser cunhada com uma bonita palavra da língua portuguesa — saudade, a dor de uma ausência que temos prazer em sentir!
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