The Who "Who's Next" (1971)

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| Por Márcio Grings |

Terry Nelson — do site Albumism — escreveu uma das melhores descrições alegóricas que já li sobre uma banda de rock: "O Who evoca aquele amigo de infância, o encrenqueiro que sempre arrumava confusão e que dava uma surra em qualquer um que te fodesse ou que apenas olhasse feio pra você. Complexo, denso e multicamadas, esse cara bebia demais, era o bêbado que precisa ser expulso do bar pelo garçom no final da noite, mas você sempre acabava se divertindo muito com ele. Mais tarde, você descobre que, sozinho em casa, ele bebia ainda mais, mas por lá, escrevia poesia, pintava girassóis e paisagens bonitas para se divertir". Essas características estão em plena exibição em "Who's Next".

Veja a live no Pitadas do Sal. 

Na linha do tempo, após o lançamento de "Tommy" (1969) e de sua apresentação triunfante em Woodstock, era um desafio importante para o Who dar o próximo passo discográfico. Para isso, Townshend surgiu com um projeto extremamente ambicioso chamado Lifehouse, que pretendia ser uma ópera rock de ficção científica multimídia: um filme/ disco e com outras peculiaridades cheias de ousadia.   

Incialmente, Lifehouse previa o disco como um concerto ao vivo, no qual os dados pessoais das pessoas que estivessem na plateia fossem transferidos para um sintetizador analógico, instigando os fãs a complementarem e interferirem no processo criativo da banda, tudo isso unido a recursos visuais. Se nos dias de hoje o conceito ainda parece ousado, a realização se mostrou impraticável no início dos anos 1970, principalmente devido as limitações tecnológicas da época, gerando desentendimento entre Pete e o produtor do Who, Kit Lambert. 

Confira a edição especial de "Who's Next" que será lançada em 15 de setembro. 

Quando desbravei a biografia de Townsend, confesso que fiquei confuso com o conceito de Lifehouse. E, quando li que o produtor Glyn Johns disse sobre a Lihehouse, mesmo após o guitarrista do Who ter explicado o conceito com minúcias para ele (Glyn disse que não tinha entendido nada), suspirei de alívio. A pressão de ter um LP bem-sucedido pós "Tommy" fez com que Townshend tivesse um colapso nervoso. No final das contas, o projeto foi cancelado, isso após Glyn Johns convencer Tonwsend a gravar um álbum regular, sem conceito. Na verdade o  Who pegou alguns dos restos mortais do projeto e o jogou dentro de "Who's Next". 

O resultado disso gerou um álbum brilhante, um trabalho que permitiu ao Who mostrar um lado mais suave e menos destrutivo de si mesmo. A banda começou a expandir seus horizontes e divaga sobre a angústia, o desespero e desejo de rebelião. Este é um dos discos que demarca a maturidade do grupo. A imagem clicada pelo fotógrafo Ethan Russell traz os integrantes terminando de urinar em um imenso bloco de concreto localizado em Easington Colliery, na Inglaterra. Acredita-se que esse bloco seja uma alusão ao monólito de "2001 Uma Odisseia no Espaço" (1968), filme de Stanley Kubrick. O ato de urinar num ícone pode ainda ser visto como um ato de libertação da banda, de demarcação de território do quarteto como um dos baluartes do rock naquele início dos anos 1970.   

"Who's Next" foi uma triunfal pausa estratégia antes do Who antes de embarcar em seu próximo grande projeto, "Quadrophenia" (1973). Até hoje, o álbum é incensado como uma dos seus maiores êxitos. É meu preferido e três canções do disco estão entre as cinco mais ouvidsd do grupo no Spotify. A revista Rolling Stone o posiciona na 28ª posição entre os melhores álbuns de rock de todos os tempos.  

Lado A

BABA O'RILEY 

Existem canções que soam como orações, "Baba O'Riley" é uma das músicas que me fizeram a aceitar o sintetizador, um épico que está entre as grandes canções do rock em todos os tempos. A luta diária pelo prato de comida, a busca pelo pão de cada dia, a saudade de casa que a distância evoca, a redenção dos erros passados e a eterna busca pela Terra Prometida, além da tão esperada recompensa nos braços da pessoa amada. A música é uma ode ao compositor minimalista norte-americano Terry Riley (que influenciou alguns dos riffs do álbum) e ao guru espiritual de Townshend, o indiano Meher Baba. Assim, Townshend escreveu sua visão do que aconteceria se o espírito de Meher Baba fosse alimentado em um computador e transformado em música. O resultado seria Baba no estilo de Terry Riley, ou "Baba O'Riley". A paixão recém-descoberta de Townshend por sintetizadores é evidente, embora a letra seja uma corporificação “do Daltrey completo”, o conteúdo sugere uma postura dura, mas sem confronto: “Aqui nos campos/ luto por minhas refeições/ volto para minha vida/ não preciso lutar para provar que estou certo/ Não preciso ser perdoado”.  

O vocal de Roger Daltrey é consagrador. Keith Moon está mais controlado que de costume, mas não menos intenso. Quando o The Who toca ao vivo, o órgão processado é tocado a partir de uma gravação. A guitarra não surge até 1min40seg. A parte do violino, no final, foi tocada por Dave Arbus, do grupo East of Eden.          

BARGAIN

Bate de leve no rock progressivo (repare no solo com sintetizador), riffs de guitarra sublimes, uma parte doce e acústica (com Pete como vocalista), outra maior, mais agressiva (com Roger soltando a garganta). "Bargain” captura a própria essência do Who e expõe uma vulnerabilidade nas composições de Townshend, um prenúncio do que seria explorado em sua carreira solo. A letra fala sobre perder todos os seus bens materiais para encontrar a iluminação espiritual. Townshend usou um sintetizador ARP 2500, o mesmo modelo usado para chamar os extraterrestres no filme "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (1977). Outro tema que desfilou nas rádios durante os anos 1970. Aqui Keith Moon solta a mão e dá show com sua bateria saltitante, principalmente no final.    

LOVE AIN'T FOR KEEPING

A canção é a mais curta e uma das mais leves do álbum, a única a não utilizar sintetizadores. Visão riponga do amor físico e da necessidade de vivermos o agora. Um violão (que bate na trave do country) bem na linha de frente, para mim é uma das pérolas esquecidas do álbum. As vocalizações acenam para o som dos Byrds e das bandas com inspiração caipira, mas de um jeito inglês e townsheniano.      

MY WIFE

A seguir vem “My Wife”, escrita e cantada por John Entwistle, que estava originalmente prevista para seu álbum solo. Baseado em um incidente da vida real entre o baixista e sua esposa, ele acrescenta alguma leviandade necessária ao que foi vivido: “Minha vida está em perigo / Vou ser assassinado a sangue frio/ Estou em casa desde sexta à noite / E agora minha esposa está vindo atrás de mim".  É uma música forte, combinante com as cores do álbum. Os metais no final colaboram com a dramaticidade e o tom irônico da letra. 

THE SONG IS OVER

O Lado B termina com “The Song is Over” e um piano de Nicky Hopkins falseando algo mais tranquilo. Pete está no vocal no início. Ele lamenta o fim de uma fase de sua vida, enquanto deixa a porta aberta para o futuro. Roger, novamente solta a voz no recorte mais agitado da música.   

Lado B

GETTING TUNE

Aquele naipe de canção que fala sobre nada e sobre tudo ao mesmo tempo. O piano novamente está na parte inicial, como um balada. Roger a canta magistralmente. Depois ela sobe a temperatura e fica tipicamente uma Who song. As vozes combinadas de Pete e Roger estão entre os grandes momentos da música. John também está na voz de apoio e baixo brilha nos instantes finais.   

GOING MOBILE

Férias, pegar um carro e sair por aí sem destino. Era algo que Pete Townshend gostava de fazer. Mais uma parte do espólio de "Lifehouse". Para o solo, Townshend passou sua guitarra pelo Envelope Follower, um tipo de filtro distorcido produzido por sintetizador que fazia parecer como que ele estivesse tocando debaixo d'água, com o instrumento soando como se fosse um bicho. Outra vez o violão está na cara em grande parte da música, fazendo um par mais apimentado com "Love A'int For Keeping" que está do outro lado. 

BEHIND BLUE EYES

Da mesma forma que "Knockin' on Heaven's Door" é frequentemente creditada ao Guns N' Roses, o Limp Biskit é visualizado por alguns como pai de "Behind Blue Eyes". Culpa do cover lançado em 2003 no álbum "Results May Vary", no qual alguns trechos da letra original foram alterados, e outros retirados. Essa releitura revela a força e atemporalidade desse tema escrito por Pete. Pensada para o projeto Lifehouse, “Behind Blue Eyes” deveria ser cantada por um personagem chamado Jumbo e foi melhor descrita por Townshend como “realmente excêntrica porque era uma música cantada pelo vilão da peça (Jumbo), o fato que ele sentiu na história original que foi forçado a aceitar a vilania, enquanto se sentia um cara legal". Um encontro com uma groupie teria inspirado essa letra sombria. Novamente o jogo de climas se impõe, pois a parte com o violão é soterrada e a música é acelerada no solo, um recurso dinâmico que o Who sempre soube explorar com maestria.      

WON'T GET FOOLED AGAIN

Ciclicamente, "Won't Get Fooled Again" retorna de onde o disco começa, com o sintetizador abrindo as cortinas, mas aqui sendo usado como pano de fundo, pois é a guitarra que manda nessa faixa. É uma música política, moldada como hino revolucionário. Um alerta para que fiquemos atentos e não sejamos enganados, seja pelos políticos ou por qualquer cafajeste desse mundo injusto. "Conheça o novo chefe, igual ao antigo chefe". Poderia ser o início de um dos lado do LP, mas foi escolhida como faixa de encerramento, o que empresta a audição uma sensação de que devemos recomeçar a ouvir o disco novamente. Keith e John constroem uma cozinha poderosíssima, e Pete fica livre para armar seu  wind mill. Ao vivo, sempre foi um dos grandes momentos do Who, com destaque para a performance de Roger, lançando o microfone como boleadeiras.       

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