Os 50 anos de "Goats Head Soup" (1973)

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| Por Márcio Grings |

Gravado num estúdio em Kingston, na Jamaica, "Goats Head Soup" está prensado entre o ápice discográfico de "Exile on Main Street" (1972) e o ótimo "It's Only Rock 'N' Roll" (1974). É o disco que sucede o tour de 1972 nos Estados Unidos, marcando o retorno aos palcos no território onde os Stones eram recebidos como reis. Aqui está "Angie", uma das baladas mais radiofônicas do grupo. Apesar disso, há certo apelo antipop no álbum, com letras barra pesada e um clima funesto. 

Veja a live no canal Pitadas do Sal. 

A jornada lírica de "Goats Head Soup" fala de uma incursão pelo submundo, uma viagem que começa numa junção com o oculto, para logo depois seguir com destino incerto e passar uma sensação de que precisamos bater no fundo do poço para levantar. O álbum relata a violência policial, mergulha na perdição das drogas pesadas e joga luz na falência do amor. Há sedução nas luzes brilhantes da cidade, no caso Nova Iorque, mencionada em três faixas (Dancing with Mr. D, Doo Doo Doo Doo (Heartbreaker e Star Star) e os letreiros de neon despencam como estrelas cadentes vendendo o sexo das groupies. Eventualmente, há em "Goats Head Soup" um delay tardio da psicodelia do final dos anos 1960 e, quando piscamos os olhos, despencamos pelas bordas da primeira metade dos anos 1970, rumo as terras do hedonismo. Em apenas uma das músicas (Winter) há um respiro — uma pausa — um toque de esperança, um pouco de normalidade frente ao caos e o ciclone daqueles dias. 

O tempo fez bem para o álbum, principalmente se você ouvir a versão remixada de 2020, repleta de takes alternativos, com destaque para "Scarlet", uma faixa gravada meses depois do lançamento de "Goats Head Soup" (mas antes das sessões de "It's Only Rock 'N' Roll", e incluída no disco bônus), que conta com participação de Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin.   

A sensação de ouvir o 13º álbum dos Stones, principalmente se essa audição estiver deslocada de referências 'antes de' e 'depois de' avançamos num trabalho corajoso, espontâneo, sem forçação de barra, como letras que beiram o desleixo punk e vendem uma sensação de perigo constante. Do mesmo modo que já havia acontecido em "Sticky Fingers", quando Keith Richards não aparecia no estúdio, Mick Taylor não apenas dava conta do recado como ainda nos presenteava com seu show particular, aqui, no caso, em duas músicas (Winter e One Hundred Years Ago) onde ele faz todo o trabalho de guitarras e encanta pelo seu talento. No fim das contas: os Stones sempre dão um jeito, sempre cumprem sua missão, e não foi diferente nesse álbum. "Goats Head Soup" é um dos discos que menos ouvi desse período, talvez pela própria confusão que ele evoca, talvez porque aos 20 ou 30, eu não tivesse a maturidade dos 40 ou 50 e poucos pra sacar a jornada do herói percorrida pelo ser mitológico que protagoniza as histórias do álbum. Contudo, hoje, tua soa atemporal, canônico, com temáticas que permanecem vigentes e relevantes. Os Stones como o nosso boi de piranha, chamuscando as canelas com as chamas do inferno e entornando o caldo dessa sopa de cabeça de bode. E quanto ao som que vaza pelas caixas, temos um disco com cheiro de Jack Daniels e Coca-Cola, ou seja: um álbum como o mais puro DNA dos Roling Stones. O disco marca a última colaboração entre os Stones e o produtor Jimmy Miller.                

Lado A

DANCING WITH Mr. D

Mister D seria o próprio 'devil' ou a morte 'death'?.  A letra é sinistra: 

"Lá no cemitério, onde marcamos o nosso encontro/ O ar ora cheira bem, ora cheira mal/ Ele nunca sorri, sua boca apenas se contorce/ O ar em meus pulmões é viscoso e grosso/ Mas eu sei seu nome, ele se chama Sr. D/ E qualquer dia desses ele vai te libertar/ Crânios humanos pendurados em seu pescoço/ As palmas de minhas mãos estão pegajosas". E na parte final esse demônio vira uma sedutora mulher diabólica: "Os olhos em seu crânio queimavam como brasas/ Senhor, tenha piedade, fogo e enxofre/ Eu estava dançando com a Sra. D". 

A letra pode ter isod inspirada num ensaio do escritor norte-americano Harlan Ellison, "The Day I Died", publicado pela primeira vez en 1973. Nele, Ellison especula sobre uma série de cenários em que ele pode morrer, tentando prever o futuro. "Será veneno em meu copo?/ Será uma morte lenta ou rápida?/ A mordida de uma cobra, a picada de uma aranha", como nos diz a letra de "Dancing with Mr. D". Um início macabro de LP. Um a curiosidade: reza a lenda que um dos engenheiros de som e o produtor Jimmy Miller adoeceram durante a gravação da música.       

100 YEARS AGO

Stones com time completo e participações + Jimmy Miller na percussão e de Billy Preston no clavinete. Depois do clima de vodu da faixa de abertura, agora é como se um casal percebesse que tudo o que rolou antes em "Dancing with Mr. D" talvez tenha sido uma bad trip produzida por uma droga muito forte, daí, pra transparecer, a dupla faz um passeio pastoral pelo campo enquanto o barato de uma viagem de ácido (ou marijuana) bate ainda mais fundo na mente:

"Mary e eu, nós sentaríamos em uma ponte/ Apenas para ficar admirando o dragão no céu". Mick Taylor toca todas as guitarras que você ouve, colocando mais esta música na galeria das faixas em que Taylor deu conta do recado enquanto Keith estava envolto em suas confusões.           

COMING DOWN AGAIN

O clima pesado retorna. Agora a viagem parece ir para outro lado. Não se trata de uma canção de amor, é a mais pura sensação de que quando estamos caindo, só nos resta bater no fundo e, só assim poderemos voltar a tona, e novamente respirar. Keith Richards faz a voz principal, Jagger se junta a ele no refrão.  

"Deslizei minha língua na torta de alguém/ O gosto é mais intenso a cada nova lambida/ Ela ficou verde e quase chorei/ Estar faminto nunca será um crime/ Vindo abaixo de novo, vindo abaixo de novo/ Todo o meu tempo sendo desperdiçado, vindo abaixo de novo".  Em 2002, Richards disse: "Gosto muito das que fiz quando estava usando heroína. Não teria escrito 'Coming Down Again' sem isso. Sou uma estrela do rock milionária, mas estou na sarjeta. Isso me manteve em contato com a rua, no nível mais baixo", disse. 

Nicky Hopkins toca piano nesta faixa. "Coming Down Again" Também apresenta Bobby Keys e Jim Horn nos saxofones.     

DOO DOO DOO DOO (HEARTBREAKER)

Um garoto confundido com um bandido é morto pela polícia. Uma menina de 10 anos morre de overdose. Estamos num bairro barra pesada de Nova Iorque — em plenos anos 1970 — num território parecido com os filmes de Charles Bronson ou de Dirty Harry. A guitarra com wah-wah de Mick Taylor chora a cada tragédia anunciada pela letra. Naipe de sopros por Jim Price e Bob Keys. O baixo fica por conta de Keith Richards, que também dividiu as guitarras com Mick Taylor, além de Chuck Findley (B.B King, George Harrison) toca o trompete.       

ANGIE

A letra teria um endereço: Angela, mulher de David Bowie, denunciando publicamente um possível caso entre Jagger e e esposa do Camaleão. O fato nunca foi confirmado. Finalmente uma canção de amor... mas... trata-se de uma relação fadada ao fracasso:

"Angie/ Quando todas estas nuvens irão sumir?/ Angie, e agora, para onde vamos?/ Sem amor em nossas almas/ E sem dinheiro em nossos casacos/ Você não pode afirmar que estamos satisfeitos/ Mas, Angie/ Você não pode dizer que nós nunca tentamos". 

Embora nenhuma evidência concreta de envolvimento de Mick com o Sr. ou a Sra, Bowie tenha surgido, Angela alegou ter uma vez voltado para casa dos Estados Unidos de madrugada e encontrou Mick dividindo a cama com seu marido. Bowie disse posteriormente que qualquer suposto relacionamento homossexual com Mick era 'fantasia absoluta'. Já o outro envolvido na história declarou ser uma 'bobagem total'. No entanto, a dupla parece nunca ter desencorajado a especulação, existindo inclusive uma foto com os dois aninhados num sofá. O que podemos afirmar é que "Angie" é uma canção nascida inicialmente de rascunhos de Keith Richards,  Inclusive, foi ao som dessa canção tocada em um órgão de igreja tradicional , que Keith conduziu sua filha Angela para o altar em 2003. 

A música foi gravada pela formação completa dos Stones (Mick, Keith, Taylor, Bill e Charlie), além da colaboração de Nicky Hopkins no piano, com arranjo de cordas de Nicky Harrison.


Lado B

SILVER TRAIN

Johnny Winter teria sido a inspiração para "Silver Train", que lançou sua versão meses antes dos Stones a lançarem. Em 1969, Winter fez o show de abertura para a lendária apresentação dos Stones num dos parques mais tradicionais de Londres. O lado B começa num clima mais festivo e similar ao inventário de canções que ouvimos em "Exile On Main Street", por exemplo. Mick Jagger está muito bem na harmônica, explodindo seus bends num amp valvulado ao estilo dos gaitistas de blues de Chicago. A letra dá a entender que essa entidade vestida de prata pode ser uma garota de programa colorindo a noite de alguém:

"Chuva de prata caindo/ Caindo ao redor da minha casa/ Sinos de prata tocando/ Tocando ao redor da minha casa (ding, dong)/ E eu nem sei o nome dela/ Mas eu curti o jeito com que ela riu e pegou a minha grana".      

HIDE YOUR LOVE

Clima de jam. Um homem reclamando que sua mulher não demonstra amor. Ele rala toda a semana pra levantar uma grana, para satisfaze-la, e essa mulher sem sentimentos parece que se esconde e é a parte de um quebra-cabeças que não encaixa. O único blues do álbum, num clima de percussão e com um ótimo trabalho de guitarras. Bob Keys está no saxofone.    

WINTER

Finalmente um respiro, uma canção com a temática mais amena, menos barra pesada e que joga um toque de esperança no álbum. 

"Foi um inverno duro e difícil/ Meus pés se arrastam pelo chão/ E tenho esperança que será um verão longo e quente/ E o amor brilhará radiante". E há gestos de carinho com frases como: "Sim, eu vou colocar meu casado em torno de você".   

No DVD "Havana Moon", lançado em 2016, na cena em que o show em 2 de março do mesmo ano é relembrado (em imagens) — o show dos Stones em Porto Alegre , "Winter" é a canção escolhida para ilustrar esse momento. É possível dizer que é uma canção gêmea de "Moonlight Mile", faixa final de "Sticky Fingers" (1971), seja pelo arranjo de cordas de Nick Harrison ou pela ausência de Keith Richards. Todo o trabalho de guitarras é de Mick Taylor. As teclas estão com Nicky Hopkins e Billy Preston.       

CAN YOU HEAR THE MUSIC

Uma letra viajandôna que poderia ter figurado em "Satanic Majesties" (1967). A gravação inclui flautas e sinos orientais, alguma percussão e uma linha de guitarra baqueada por uma caixa Lesley o que consagra o som raspado e gelatinoso que ouvimos como base. Teclas por Billy Preston e Nicky Hopkins.  

STAR STAR

Riff chuckberiano empurando todo o resto e uma letra censura 18 anos. Uma groupie star fucker que usa frutas durante o sexo, faz barbaridades na cama e passa o o rodo até em astros de Holywood da nova geração Steve McQueen (Ali McGray ficou brava com você por ter se oferecido para o Steve McQueen) e da velha guarda John Wayne (Eu aposto que você vai pegar John Wayne antes dele morrer). Grupos feministas ficaram indignados com o retrato negativo das mulheres. Mick Jagger não se desculpou, dizendo que estava apenas descrevendo o que viu.   

Bonus track de destaque:

SCARLET

"Fui convidado para fazer uma sessão na casa de Ronnie Wood (The Wick), em Richmond. Era outubro de 1974. Fui informado que Keith Richards e Ian Stuart estariam lá. Parecia uma boa oportunidade para conversar com meus velhos amigos. Eu e Keith dividimos as guitarras, Rick Grech tocou baixo e um baterista (Bruce Rowland | Grease Band, Fairport Convention) e um engenheiro de som (Jimmy Miller) que eu não conhecia. Keith deu o pontapé inicial e comecei a moldar um riff em torno de sua parte de guitarra para ampliar o arranjo inicial. Ele começou a se encaixar instantaneamente e todos nós conseguimos um take bem-sucedido naquela noite. Eu me diverti trabalhando com Keith. Foi dito que eles continuariam na noite seguinte no Island Studios, em Londres. Eu me comprometi a fazer alguns solos mais. Cheguei cedo e fiz a minha imediatamente em poucas tomadas. Fiquei com a sensação de que o material gravado estava bacana. Em 2020, Mick Jagger entrou em contato comigo e finalmente pude ouvir a versão finalizada. Parecia ótimo, um material sólido. Estou feliz que eles escolheram lançá-la como parte do álbum "Goats Head Soup" na versão que saiu em 2020. É uma aparição ultrarrara minha fora do Led Zeppelin durante os anos 1970", disse Jimmy Page em seu Instagram.

Ouça "Scarlet".

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