55 anos de "A Saucerful of Secrets", do Pink Floyd

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| Por Márcio Grings |

Em junho de 1968 o Pink Floyd realizava uma difícil travessia. O grupo estava no meio do caminho entre o leste de seu surgimento e o oeste do seu futuro. Depois de um incensado álbum de estreia, "The Piper at the Gates of Dawn" (1967) | veja live no Pitadas do Sal|, a deterioração emocional e psíquica de Syd Barret, líder e principal compositor do grupo, dava claros sinais de que ele não teria mais condições de ficar à frente do quarteto, o que de fato aconteceu. Mesmo com Syd num estado precário, até que eles tentaram seguir adiante — com a ideia do líder da banda atuar apenas como compositor —, ao estilo Brian Wilson, sem se apresentar ao vivo. Só que logo se percebeu que a ideia iria a bancarrota. De todo o modo, com a entrada de David Gilmour, "A Saucerful of Secrets" é o único LP do Floyd a reunir os cinco integrantes clássicos da banda num mesmo álbum, já que Syd participa de três  temas do disco, sendo que aqui está ainda sua derradeira contribuição como compositor.    

Pink Floyd, quinteto por um breve espaço de tempo. Foto: Divulgação EMI  

Agarrados ao seu passado recente, muitas das canções de "A Saucerful of Secrets" trazem o DNA do disco anterior, como um espelhamento da fórmula que os colocou em evidência nos dois lados do Atlântico. Contudo, instrumentalmente eles claramente já visionam o seu próprio futuro, um mergulho no desconhecido que logo seria nomeado como rock progressivo, abrindo trincheiras para os amplos espaços instrumentais e climáticos. E esse futuro floydiano começa a ser projetado na pela própria capa, a primeira desenhada pelo grupo de design Hipgnosis, liderado por Storm Thorgerson, parceria  que se configuraria numa nas mais extensas e produtivas colaborações gráficas da música mundial. Na capa. o ilustrador produz uma imagem subliminar do Doutor Estranho, ilustração publicada meses antes na revista Marvel's Strange Tales #158. Utilizando-a nas estrelinhas da composição, como pano de fundo de suas colagens, Thorgerson a  mistura sobreposta numa tentativa de representar as visões oníricas e rodopiantes de três "estados alterados de consciência" — religião, drogas e a própria música do Floyd.

Sob o espectro do teste do tempo, "A Saucerful of Secrets" é um disco que envelheceu bem, ganhou status de art rock, percussor do rock espacial, e na verdade se revelou um passo à frente do disco de transição que se propôs naquele período. Apesar de trazer alguns momentos pouco inspirados, outras de suas canções se tornaram célebres e ainda apontaram o caminho para o futuro do Pink Floyd. Em resumo: bye bye Syd Barrett! Roger Waters agora é o líder (velado) da banda; seja bem vindo David Gilmour e salve Rick Wright, o grande destaque desse LP.      

Veja a live sobre os 55 anos de "A Saucerful of Secrets" no canal Pitadas do Sal.  

Lado A

LET THERE BE MORE LIGHT

Escrita por Roger Waters, a primeira faixa de "A Saucerful Of Secrets" é um verdadeira ponte entre o que o Floyd era e o que ele se tornaria. Richard Wright pilota três categorias de teclas (piano, Farfisa e Hammond), Gilmour estreia não apenas como guitarrista, mas sua voz é a que manda no som, com apoio de Roger e Rick. A música começa e termina com mixes, primeiro na explosão do baixo, na abertura, num riff rock and roll que faz um fade out — com um trecho misterioso — onde a melodia principal surge. Na letra, há um referência direta na letra a "Lucy in the Sky with the Diamonds" dos Beatles, lançada poucos meses antes. E ao final, desfaz-se novamente a melodia, primeiramente com a guitarra de David soterrando todo o restante, depois com as camadas de teclados e ruídos abrindo espaço para clima enigmático que encerra a música.  

REMEMBER A DAY

Aqui, numa música escrita por Rick Wright (uma das primeiras que compôs) e com ele no vocal, temos uma das últimas guitarras de Syd no Pink Floyd, que a toca com um slide. "Remember a Day" traz um trabalho de piano invejável, com uma bateria saltitante em alguma partes (por Norman Smith, produtor do álbum), e com a ausência dela em outros momentos, pausas dramáticas em que Norman utiliza apenas os pratos. A letra narra cenas de infância como essa:

Suba na sua macieira favorita/  Tente capturar o Sol/ Esconda-se da arma do seu irmãozinho/ Permita-se viajar nos seus sonhos/ Por que não podemos alcançar o Sol".  

SET THE CONTROLS FOR THE HEART OF THE SUN

Historicamente, "Set the Controls to the Heart of the Sun" é uma música importante, pois aqui o Pink Floyd ajuda a inventar o surto psicodélico no rock. Um curiosidade: esse é o único tema do Pink Floyd onde todos os cinco membros da banda estão juntos, pois o trabalho de guitarras tem a assinatura Gilmour/ Barrett. O baixo é mântrico, o trabalho de teclados é responsável pelo clima espacial (Wright usa um Farfisa, um vibraphone, e um piano celesta), o som das gaivotas traz uma camada de efeitos sonoros/ visuais que seria algo amplamente utilizado na obra do grupo.  

Exceto a linha do título, todo o conteúdo da letra foi extraído (grampeado) com frases soltas de trechos de um livro de poesia chinesa que Roger Waters lia no momento em que trabalhava nessa música. Alguns fanáticos pelo Floyd dizem que parte da inspiração ainda teria vindo de livro "Fireclown", de Michael Moorcock, também conhecido como "The Winds of Limbo", de 1965. A obra aborda vários temas comuns à ficção científica — a confiança na tecnologia, o papel do governo em relação à verdade e o papel da mídia na distorção dessa verdade.

"Set the Controls for the Heart of the Sun" ainda inspirou o autor britânico Douglas Adams a fazer referência à banda em seu livro "O Restaurante no Fim da Galáxia" (1980), onde ele diz que "o grupo mais barulhento de todos os tempos" destrói uma nave espacial direcionando-a para uma estrela". Vale lembrar que o escritor, falecido em 2001, conhecido mundialmente pelo seu "Guia do Mochileiro das Galáxias" (1985), era amigo de Gilmour.   

CORPORAL CLEGG

Essa música cartunesca — e cruel — fala sobre um soldado que perdeu a perna na Segunda Guerra Mundial e sua esposa aparentemente alcoólatra. É a primeira menção à guerra em uma música do Pink Floyd. Nick Mason, cantou parte dos versos, sua primeira e uma de suas poucas contribuições vocais no grupo.

O título "Cabo Clegg" foi escolhido em referência a Thaddeus Von Clegg, o suposto inventor do kazoo, mesmo  instrumento que está nos dois solos da música, que empresta um tom ainda mais satírico ao tema. Na verdade, a versão manufaturada que conhecemos do kazoo foi inventada em Macon, na Geórgia, por von Clegg, porém em colaboração com um ex-escravo chamado Alabama Vest, isso ainda na década de 1840. É importante lembrar que o instrumento, numa forma rudimentar, já era popular em alguns tribos africanas, isso muito tempo antes da data mencionada. 

Roger Waters disse à revista Mojo em dezembro de 2009 que essa é mais uma de suas músicas autobiográficas. Ele explicou: "Cabo Clegg é sobre meu pai e seu sacrifício na Segunda Guerra Mundial. É um tanto sarcástico — a ideia da perna de pau ser algo que você ganhou na guerra, como um troféu". O mais irônico é que o Pink Floyd, difamado pelos punks no final da década de 1970 (lembram da camiseta de John Lydon com a frase: I hate Pink Floyd?), como símbolo de um rock ligado à elite do mainstream, traz em "Corporal Clegg" uma espécie de proto-punk que certamente pode agradar a muitos fãs do gênero.     

Lado B

A SACERFUL OF SECRETS

12 minutos, umas das músicas instrumentais que deu origem ao rock espacial. Dividida em quatro partes, "A Saucerful of Secrets" deu ainda uma direção e significado para o Pink Floyd. "Se você pegar essa música, "Atom Heart Mother" e "Echoes" — todas levam logicamente para "Dark Side of the Moon", disse me uma entrevista David Gilmour. "A Saucerful of Secrets"' nasceu de uma brincadeira de Roger e Nick em um pedaço de papel, desenhando com os dois desenhando aleatoriamente. Compuseram a música com base na estrutura do desenho. Claustrofóbica, dividida em partes específicas, que exploram sonoridades tétricas, ela se assemelha as trilha-sonora dos filmes de suspense. É para iniciados, não apresente Pink Floyd para alguém começando por essa peça instrumental. Rick utiliza cinco tipo de teclas, explora atonalidades, martela referências fora do contesto pop e mostra porque ele é um dos grandes nomes desse levante de mudança, de transição na banda, pois tudo passa pela sua atuação. Ele não economiza recursos e mostra seu talento como protagonista em várias músicas. Dizem que durante as gravações Norman Smith, produtor do álbum, não ocultou seu aborrecimento com esse tema, pois ele não conseguia se conectar ao que ouvia e achava tudo enfadonho e longo demais.   

SEE-SAW

Aparentemente uma canção sobre a perda da inocência, com visões da infância ao estilo de conto de fadas psicodélico numa letra eco hippie que não chega a lugar nenhum, mas abre espaço para múltiplas interpretações. Os dois breves solo de xilofone são belíssimos e inusitados. É uma das canções perdidas do Pink Floyd, muitas vezes defenestrada. O próprio Rick Wright não gostava dela e a criticava acidamente. Contudo, o que Rick faz aqui com seus teclados, o que é construído harmonicamente e artisticamente, não é algo comum. Ele emula o som de orquestras com seu Mellotron, constrói um mundo lúdico e misterioso com essa letra que fala sobre dois irmãos num mundo dadaísta, infantil e pastoral.     

JUGBAND BLUES

Esta é a última contribuição de Syd Barrett para o grupo e a única música do álbum que ele escreveu e cantou. Pouco antes de "Jugband Blues" ser lançada, ele já estava fora do PF. O tema em si revela um autodiagnostico da esquizofrenia de Barrett, explicado pelos versos "É muito atencioso da sua parte pensar em mim aqui/ E estou muito grato a você por deixar claro que eu na verdade não estou mais aqui". Então, ele se pergunta: "Mas quem diabos escreveu essa música?"

Na parte central da faixa há uma contribuição da banda do Exército de Salvação de Londres. Barrett pediu para que eles tocassem o que quisessem. Os 40 segundos finais trazem uma música "secreta" na qual Syd toca violão e pergunta: "O que exatamente é um sonho?" e "O que exatamente é uma piada?". A passagem instrumental do final apresenta uma seção de metais que seria explorada mais tarde em "Atom Heart Mother" (1970). 

Comentários

  1. Amo todos os albuns do PF. E a banda em si tbem, óbvio..Eu não gostava da música Saucerful of Secrets, até ver num vídeo eles tocarem..Depois disso, entendi a musica e hj gosto dela. Ouço rock desde meus 17 anos (hj 66) e PF faz e sempre fará parte de minha vida.

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