Os 50 anos de "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player", 6º álbum de estúdio de Elton John

Foto da capa: Ed Caraeff 
| Por Márcio Grings |

Ao final de 1972, Elton John, como bem sabemos, só tinha olhos para a América, seus discos de vinil de capa dupla e os letreiros de neon eram o que faziam os olhos dele brilharem. Só que justamente neste ano, Elton começa novamente a olhar para sua terra natal. A ascensão do glam rock na Inglaterra colocou o velho continente novamente no centro do universo da música pop, e também da cultura de massa, moda, costumes e afronte ao establishment. A epifania teria vindo após Elton assistir David Bowie e o show de Ziggy Stardust, com abertura do Roxy Music. Era um ponto de virada, de rever e estabelecer novos padrões, algo que Elton já vinha fazendo, mas não com tanta coragem e transgressão como Bowie. No topo das paradas britânicas naquele final de 72 estava Marc Bolan e seu T-Rex, suprassumo do glam repleto de lantejoulas, pose e solos de guitarra. "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player", assim como seus álbuns anteriores, é ainda americano até a medula em suas temáticas, mas agora é a Inglaterra que lhe dá o tom de ousadia. Seu próximo álbum seria um ensaio de orquestra para algo ainda mais ousado, um álbum duplo, que chegaria às lojas no final de 1973. Mas aqui, neste LP específico, Elton já começa a tornear algo diferente, uma evolução de tudo que havia sido feito até agora. Essa transição entre passado e futuro novamente o colocaria no topo das paradas, e faria de 73 um dos melhores anos de sua carreira. 

Veja a live no Pitadas do Sal sobre os 50 anos de "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player".

Para começar, o nome do álbum traz a lembrança dos faroestes, dos matinês e da figura do pianista num saloon do velho oeste. Nesses bares, quando o clima se exaltava e alguém puxava uma pistola, era comum encontrar uma placa ao lado pianista dizendo: "Don't shoot the piano player" (não atire no pianista). Tratava-se de um aviso de que os músicos não se envolviam nos tiroteio e, quando a confusão parasse, se o pianista ainda estivesse são e salvo, continuaria a martelar as teclas do piano e animar o público presente. Claro que o livro de David Goodis, "Don't There (Shoot the Piano Player" também pode ter trazido à lembrança para esse batismo. E tudo se conecta quando durante uma festa em Malibu (CAL), em que Elton conheceu o humorista norte-americano Grouxo Marx, ele levanta os braços e diz: "Não atire em mim. Eu sou apenas o pianista". Elton guardou essa ideia a a utilizou no batismo conceitual do próximo LP.

Design: Michael Ross e David Larkham
Sobre as referências da primorosa arte do álbum, trata-se uma visível homenagem à década de 1950. Na imagem vemos um jovem com brilhantina no cabelo acompanhado de uma garota diante da bilheteria de uma sala de cinema. Acima deles o letreiro anuncia o nome do filme (no caso o título do álbum). À direita do casal um cartaz do filme "Go West/ No Tempo da Onça" (1940), dos irmãos Marx, uma dica de onde veio o título. Nesse embalo, a Rolling Stone, com matéria assinada por Stephen Holden disse: "O coração do disco é uma sequência de fantasias cinematográficas americanas cujo objetivo principal é encantar quem ouve (...) Entretenimento de qualidade e um passo adiante na carreira de Elton John. "Ultrapop", como definiu o próprio cantor. "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player" teve um sucesso transatlântico, levando o LP a figurar no topo das paradas dos Estados Unidos e Inglaterra. 

Ainda sobre a arte original do álbum de capa dupla, na parte interna, um libreto com 12 páginas está lá, recheado com quase 30 fotos de Elton, Bernie e da banda. A arte é assinada pelo fotógrafo Michael Ross e pelo designer David Larkham, dois assíduos colaboradores de Elton John nos anos 1970. A foto da capa é de um mais talentosos fotógrafos de rock daquele período, Ed Caraeff. Autor da foto de Jimi Hendrix queimando a guitarra no festival de Monterey — ele tinha apenas 17 anos e já era freelancer da Rolling Stone — ele fez imagens para mais de 200 álbuns (Bee Gees, Dolly Parton, Little Richard, Neil Diamond, Tom Petty & the Heartbreakers, Cheech & Chong, Steely Dan, Marvin Gaye, Carly Simon, Tim Buckley, são alguns dos seus clientes). Na minha opinião, Ed Caraeff materializou uma das mais belas capas não apenas da discografia de Elton, mas da arte ligada ao rock em todos os tempos, unindo na mesma moldura universos que sempre convergiram. Em 2020 a capa de "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player" foi lançado numa versão quebra-cabeças licenciada por Elton e Bernie. 


A produção do álbum é assinada por dois colaboradores assíduos de Reg — Gus Dudgeon,  arranjos de metais; e Paul Buckmaster, arranjos de cordas. dupla responsável pelo refinado acabamento que ouvimos no disco. "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player" foi gravado no lendário Château d'Hérouville, mesma casa/ estúdio onde foi concebido o álbum anterior, um castelo próximo ao local onde Vincent Van Gogh pintou o quadro "Trigal com Corvos". A edificação, situada a quarenta quilômetros de Paris, inspirou Honoré de Balzac num trecho do livro "Modesta Mignon", além de ser utilizado como um dos refúgios do casal formado pelo músico polonês Frédéric Chopin e pela escritora francesa George Sand. Elton John gravaria ainda mais um álbum no local, que também foi utilizado por artistas/ bandas como Grateful Dead, Jethro Tull, Sweet, Big Star, David Bowie, Pink Floyd, Cat Stevens, entre tantos outros. O disco poderia ter lançado "Don't Shoot Me I'm Only a Piano Player" no final de 1972, mas, por sugestão de Elton, a gravadora atrasou o lançamento para não bater com outros títulos graúdos daquele período. Ele estava certo, quando o LP saiu, voou solitário direto para o topo.

No próximo dia 22, em alusão ao Record Store Day, "Don't Shoot Me I'm Only a Piano Player" será lançado em edição dupla, com demos, novos mixes e takes alternativos das canções do álbum. 

Lado A

DANIEL

"Daniel" foi inspirada numa reportagem da revista Time sobre um veterano da Guerra do Vietnã que foi parar numa cadeira de rodas, é um tributo a quem prefere a tranquilidade de uma vida rural à badalação dos grandes centros. Alguns a viram como uma canção sobre disputa familiar ou ligada a temática gay, mas na verdade era uma história de irmão para irmão, como Bernie disse anos depois. E o letrista sempre recorreu a temática do homem de sucesso que prefere se internar no meio do nada como um bicho do mato, algo frequente em suas letra é essa fuga à badalação dos holofotes e dos grandes centros. Há também uma referência pessoal de Bernie, sobre seu irmão, que na época havia se mudado para a Espanha. "Daniel" é uma canção sobre alguém que foi embora para encontrar paz de espírito em outro lugar. Até hoje é uma das baladas mais lembradas de Elton, e virou um dos seus maiores sucessos inclusive aqui no Brasil. Elton John signature. A música é também um dos maiores sucessos em single do músico, que na época comprou briga com a gravadora, que achou a música muita lenta para figurar nas paradas. Como sabemos, eles estavam errados e o cantor repleto de razão, pois "Daniel" chegou ao número quatro na parada britânica e ao número dois nos Estados Unidos. 

TEACHER I NEED YOU

A letra de "Teacher I need You" fala da paixão de um estudante por sua professora. A música evoca o o espírito das canções dos anos 1950, mas também tem as credenciais de Elton, se tornando uma das canções populares do álbum, e frequentemente figurando entre as escolhidas em suas turnês. O músico disse que tinha o voz de Bobby Vee em mente quando gravou a voz. Piano, baixo e bateria são o tour de force que move a música inicialmente, com destaque para os backings e vocalizes da banda pontuando parte da música. Pop até a medula, apesar do piano emular em alguns momentos certos elementos e dramaticidades da música erudita.      

ELDERBERRY WINE

Aqui o funk rock bate no cartão no disco. Davey Johnstone ronca alto com sua guitarra. Taupin tem Elton cantando da perspectiva de um homem acomodado relembrando os bons tempos em que sua esposa atendia a todos os seus caprichos, inclusive fazer o seu vinho de caseiro, uma bebida alcoólica feita do suco fermentado da fruta do sabugueiro. Taupin meio que zomba da vida sulista, zoando com aquela elegância e sutileza britânica. O título da música veio de uma placa que ele encontrou em uma loja de velharias durante uma de suas viagens aos Estados Unidos, e mostra como a pena de Bernie estava sempre afiada para satirizar a vida americana. 

BLUES FOR BABY AND ME

Um casal de jovens parte para o oeste americano de ônibus para viver sua história de amor, desafiando a fúria e os xingamento do pai da garota. É a joia perdida de "Don't Shoot Me I'm Only a Piano Player", uma das melhores baladas de Elton com um brilhante — e complementar — arranjo de cordas e sopros de Paul Buckmaster, com destaque para um inusitado citar tocado por Davey Johnstone.   

"Seu pai ficou louco quando eu disse lhe disse que estávamos de partida/ Ele  se enfureceu e praguejou olhando pro teto/ (...) Ele vai lhe colocar em apuros, eu sei disso/ Estes vagabundos são todos iguais.

Tem um ônibus lá fora nos esperando/ Então dê adeus, temos de ir pro Oeste/ (...) O ônibus está sacudindo e o rádio está tocando um blues para o meu amor e pra mim.

E a estrada está perfeita/ Deus, parece tão agradável e liberta de tudo/ Eu vi suas mão tremendo, seus olhos abertos, tomados pela surpresa/ 40 graus à sombra, querida, e não há uma nuvem no céu/ Eu lhe chamei de minha garota, e disse: Meu bem, agora é a nossa vez/ Somos apenas nós dois e estou feliz por estar em casa outra vez".

As cordas, flautas e trompas tem um efeito dramático em "Blues For Baby and Me", construindo um clímax denso e emocionante. Mesmo que sutil, o trabalho de guitarra wah-wah de Davey Johnstone também eleva esse tom, assim como o citar empresta um charme sessentista que pra mim dá o toque final na música. É a minha preferida do álbum. Há uma edição na  internet com trecho do filme "Esta Mulher é Proibida", de Sidney Pollack, com Natalie Wood e Robert Redford, em que essa música foi adicionada compondo um videoclipe. Assista AQUI    

MIDNIGHT CREEPER 

É o único deslize do disco. Se Elton tentou emular o som dos Stones (como declarou) o fracasso foi rotundo. Logo no início Bernie escreve: "Walk a mile in my tennis shoes/ Tina Turner gave me the highway blues". Há uma referência clara a um sucesso de Joe South regravado por Elvis, "Walk a Mile in My Shoes". O certo é que canções que ficaram de fora do álbum como "Screw You (Young Man's Blues" e "Jack Rabitt" cairiam muito melhor nesse final de álbum. 

Lado B

HAVE MERCY ON THE CRIMINAL

O riff de guitarra lembra "Layla" de Eric Clapton. É a música onde a orquestração pega mais pesado, mas funciona muito bem nesse blues carregado de emoção. "Have a Mercy on the Criminal" reapareceu no álbum ao vivo gravado com a Orquestra de Sidney em 1986, Elton chamando a atenção para o arranjo de Paul Buckmaster. Traz o melhor solo de guitarra de Johnstone no disco, possivelmente a melhor interpretação vocal de Elton. A letra descreve a vida de um prisioneiro fugitivo. Phillip Norman, um dos grandes biógrafos musicais, diz que algumas imagens da música vem dos filmes B aos quais Taupin viu no cinema quando jovem.     

I'M GONNA BE A TEENAGE IDOL

Essa tem como inspiração o amigo de Elton, Marc Bolan, de menino prodígio com um violão ao astro pop içado a guitar hero daquela geração. Bolan morreu apenas quatro anos depois, aos 27 anos, num acidente de carro. "I'm Gonna Be a Teenage Idol" traz um pouco da climática do álbum anterior, "Honky Château", com destaque para o naipe de sopros que empresta parte dessa vibe New Orleans, uma das tônicas daquele trabalho, com ênfase no piano característico de lá, ao estilo da pegada de Dr. John, por exemplo, um músico admirado por Elton.        

TEXAN LOVE SONG

"Texas Love Song" é puro country, entraria bem em "Tumbleweed Connection" (1970), por exemplo. Outra crítica social de Bernie aos sulistas. A letra fala da tolice dos que são cegamente "patrióticos" e culpam os "hippies" por um mundo menos regrado (como nos velhos tempos). "Texas Love Song" continua relevante no mundo de hoje. O bandolim de Davey Johnstone nos atrela diretamente ao som caipira do sul, mas também tem o poder melódico das boas canções de Elton,.    

CROCODILE ROCK

Puro entretenimento e matinê. "Essa canção é sobre todas as canções de rock and roll dos anos 1969", disse Elton em uma apresentação. Ela é propositalmente grudenta, brega, uma reverência ao rock com sabor de tutti frutti, com brilhantina nos cabelos e saia rodada com detalhes em petit-pois. O título satiriza a música de Bill Haley "See You Later Alligator". O gancho da música — lá, lá, lá, lá, lá — foi chupado de uma música de Pat Boone, "Speedy Gonzales" (e realmente guarda semelhança com ela). Elton foi processado por isso, resolvendo a questão com um acordo fora dos tribunais. "Eu queria que fosse uma homenagem a todas aquelas pessoas que eu via quando criança. É por isso que usei os vocais do tipo Del Shannon e aquela parte de 'Speedy Gonzales' de Pat Boone", disse em uma entrevista nosso amigo Eltinho.     

HIGH FLYING BIRD

"High Flying Bird" sugere uma amor perdido por um fim trágico. O álbum chega ao fim e ouvimos outra das grandes músicas de "Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player". Melodia de hino, favorita de Bernie e, ao contrário de "Crocodile Rock" e "Daniel", não foi superexposta nas rádios e no palco. É "um cruzamento entre Crosby, Stills & Nash e Irma Franklin", disse Elton. A amante de Bernie, seu "pássaro voador" que "voou de meus braços" confunde afeto com controle: "Ela pensou que eu queria prejudicá-la/ Ela pensou que eu era o arqueiro". É um tema que também lembra as boas canções de Van Morrison.  

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