50 anos de "The Dark Side of the Moon", do Pink Floyd

| Divulgação EMI |
Por Márcio Grings | 

Após ser lançada, a obra-prima do Pink Floyd frequentou a lista dos mais vendidos do planeta durante 741 semanas, um feito nunca mais superado. São números assombrosos: 43 milhões de cópias comercializadas! Contudo, bem além do sucesso comercial ou do usual consumo de massa, eu costumo dizer que uma audição atenta de “The Dark Side of the Moon” é sempre uma experiência impressionante. E complexa. Perceba... o ar ao nosso redor muda enquanto o LP gira no toca-discos. A ambiência fica etérea, e essa imersão nos torna reflexivos, imersos numa densidade sonora única. Por isso, gosto de ouvi-lo com a luz baixa, geralmente quando estou sozinho e disposto a imergir em suas profundidades.

Tudo que há nele continua atual, suas temáticas versam sobre dilemas do mundo contemporâneo não apenas vigentes nos anos 1970, época em que ele foi concebido , mas, sobretudo, o sumo do que é narrado e tocado ali continua valendo e ainda reluz como uma joia verdadeira e atemporal.

Veja a live dos 50 anos de "The Dark Side of the Moon" no Pitadas do Sal. 

Aquilo que ocorreu com os Beatles, em “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band” (1967), todo o longo processo de gravação e o cuidado em empacotar o álbum de rock como um produto artístico de alto quilate, foi seguido e ampliado pelo Pink Floyd em “The Dark Side of the Moon”, que estabeleceu um novo padrão para a música mundial. Nosso primeiro contato com ele já começa com o prisma da capa criado por Aubrey Powell and Storm Thorgerson, uma iconografia conhecida de todos. Abra a parte interna é lá você verá  materializado os batimentos cardíacos e as letras, não como um simples componente alegórico, nas com a força literária de um livro. A experiência táctil do material gráfico faz parte do processo de percepção e integração dos sentidos, por isso me compadeço da geração atual que o conhecerá através de um telefone celular pareado a uma caixinha bluetooth.    

“The Dark Side of the Moon” é também o primeiro álbum do Pink Floyd em que há o domínio conceitual de Roger Waters, que, a partir daí, após o período inicial e pós-saída do membro fundador Syd Barrett, se tornaria o piloto da nave até sua saída (nada à francesa) em 1985. Contudo, apesar da direção musical do baixista, é importante dizer que além dessa condução segura de Waters, o álbum não seria o mesmo sem as vozes e as guitarras de David Gilmour. Os teclados de Richard Wright proporcionam vários highlights em ambos os lados, basta ouvir canções como “The Great Gig in the Sky” e “Us and Them” para compreender a a importância territorial de outros integrantes, assim como a atuação de Nick Mason traduz uma de suas performances mais sublimes — “Time” é um belo exemplo dessa proficiência. E o que seria de toda essa massa musical sem os efeitos criados pelo engenheiro de som Alan Parsons? Além disso, a presença e a inspiração de Syd Barrett permeiam o que está dentro da moldura do LP, pois mesmo fora de cena, distante do estúdio do Abbey Road Studios onde ‘Dark Side’ foi gravado, Syd nunca deixou de atuar inconscientemente no âmago da banda.

Outro elemento importante para entender a evolução do Pink Floyd e "The Dark Side of the Moon" é ouvir "Obscured by Clouds" (veja live no Pitadas do Sal), pois canções como "Mudmen", "Burning Bridges", "Free Four" e "Childhoods End" já davam pistas que o som do grupo estava prestes a tomar uma nova direção.  

Liricamente, “The Dark Side of the Moon” foge do caminho usual da temática romântica ou de amenidades do cotidiano. Conceitual e circular, com início, meio e fim, a obra escancara dilemas, tentações e ansiedades da sociedade moderna: exaustão, a busca por fama e fortuna, o medo, a loucura, a mortalidade, a vida na estrada pelo ponto de vista dos músicos, a pressão contínua, a ganância do homem, a truculência do capitalismo etc. Apesar de tocar em temáticas bem complexas, a carga emocional das letras não é pretenciosa, pois tudo soa translúcido e pode ser facilmente entendido e conectado à vida do ouvinte mais atento. O sentido de ‘álbum’, de uma apreciação conjunta das canções empacotado para ser sorvido conjuntamente, algo que está cada vez mais distantes da atual concepção artística da música pop, encontra um de seus ápices na obra-prima do Pink Floyd. Na era do single, EP e Tik-Tok, percebemos que cada época possui o “The Dark Side of the Moon” que merece. E que força encontramos nesse conteúdo, pois mesmo passado 50 anos, o disco continua aí, brilhando como pedra preciosa.

No fim das contas, esse misterioso lado escuro da lua (ou a face oculta de nós mesmos), de como lidar com obscuridades internas e externas, à luz desse álbum incrível, faz do disco mais celebrado do Pink Floyd, a trilha-sonora perfeita para todos nós, sensíveis à arte e às vicissitudes da existência humana.


Faixa a faixa com informações de "The Dark Side of he Moon | Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd", livro de John Harris editado no Brasil pela Editora Zahar.       

Lado A

SPEAK TO ME (Nick Mason)

A preparação do ouvinte para uma viagem sem precedentes na música pop começa com "Speak to Me", uma colagem de Nick Mason montada com maestria por Alan Parsons. As batidas de coração são simuladas por um loop do bumbo da bateria de Mason (essa sequência também vai encerrar o disco, complementando o elemento circular e conceitual do álbum). Sons de helicóptero, gritos. uma risada frenética e a sensação de perigo e caos antecipando a beleza languida e gelatinosa do próximo tema. 

BREATH  | IN THE AIR (Waters/ Gilmour/ Wright)

O solo de Gilmour logo no início é um dos momentos dramáticos da música. A abertura de "Breath" surgiu de uma jam que alguns sugerem ter sido surrupiada de "Down by the River" de Neil Young. Contudo, certamente a sequência melódica vem do espólio de Rick Wright. Claro que toda essas colagens de outros sons foram adquirindo características próprias e genuínas a partir das repetições e ensaios onde a música evoluiu para aquilo que ouvimos hoje no álbum. O disco começa com força e personalidade. 

ON THE RUN (Gilmour/ Waters)

Elo de ligação entre "Breath" e "Time", o tema instrumental nasceu como com um esboço intitulado "The Travel Section". Fortalecendo o som gélido e eletrônico de bandas como Kraftwerk, o tema foi construído num sintetizador EMS (Synthi AKS). É o típico exemplo de como esse tipo de conexão funciona como conceito de álbum, de cola, mas se ouvida isoladamente perde parte de seu efeito. Há uma voz feminina em um alto-falante, aparentemente vinda de um sistema de som de algum aeroporto. Essa voz diz: "Tenha sua bagagem e passaporte em mãos e siga a linha verde até a alfândega e a imigração. Saídas para Roma, Cairo e Lagos". Sons de passos e elementos que sugerem velocidade e o rock espacial. Também dá sua contribuição Roger "The Hat" Manifold, gerente de estrada do Pink Floyd, que diz: "Viva o hoje, vá embora amanhã - este sou eu", e depois ouvimos uma risada.

TIME (Waters/ Gilmour/ Wright/ Mason)

Logo no início, o som dos relógios, uma engenharia criada por Alan Parsons, traz o clima perfeito do rock progressivo com elementos de efeitos sonoros. "Time" nasceu de uma demo de Waters gravada num violão desafinado. Quando a banda entrou na jogada tudo mudou, e assim o tema ficou sofisticado com destaque inicial para os ratatãs: um conjunto de tambores compactos afinados em notas específicas que dão todo o brilho inicial da música. O dueto de vozes entre Rick Wright e David Gilmour é sensacional, com destaque para a voz central do tecladista. Vale lembrar que uma edição 'cortada' de "Time" foi embalada para rodar nas rádios, o que obviamente fez a música disparar nas paradas. A reprise de "Breath" na parte final traz a sensação de exaustão de uma banda após o final de uma turnê.   

Ao som do Pink Floyd, o diretor de comerciais publicitários Sergi Castella fez um vídeo promocional que traz uma carta de Jack Keroauc, "A Eternidade Dourada", escrita à sua primeira esposa, Edie Parker, que virou curta metragem. "Time" é uma das músicas escolhida para ilustrar o clipe. Vale a viagem.

THE GREAT GIG IN THE SKY (Richard Wright/ Clare Torry)

Inspirado num acorde suspenso específico de Miles Davis em "Kind of Blue", um dos preferidos de Rick Wright. Muitos não se tocaram, mas as falas ao fundo em "The Great Gig in the Sky" faz uma crítica velada ao cristianismo: "A vós, Deus Pai, nós confessamos. Confessamos de todo o coração". O medo da morte também surge em algumas falas, ou melhor: a tentativa de superar esse temor. A ideia de trazer uma cantora para oferecer ainda mais dramaticidade à música é supostamente creditada a Alan Parsons. Clare Torry tinha apenas 22 anos quando gravou sua participação. Recebeu um cachê de U$ 50. A banda não tinha a mínima ideia do que queria fazer naquela parte vocal. Claire improvisou e gravou sua voz em apenas duas tomadas. Gilmour sugeriu uma terceira, mas Claire disse: "Acho que vocês já tem o que precisam". Apesar disso, na cabeça dela, o que fez se assemelhava a uma gata miando  no cio. Ela não levou fá no que fez. Contudo, essa assinatura de Claire Torry se tornou uma das passagens mais avassaladoras e impactantes do álbum, e fecha magistralmente o Lado A. Mais de 30 anos após sua participação em Abbey Road, em 2004, a cantora processou a EMI e o Pink Floyd por não creditar seu nome entre os colaboradores na criação de "The Great Gig in the Sky" (se Alan Parsons fizesse o mesmo certamente também ganharia a causa). Ela saiu-se vencedora, sendo creditada nos discos desde então. 

Lado B

MONEY (Roger Waters)

Tudo começa com um loop de uma caixa registradora e moedas caindo. Uma improvisação sobre um riff cíclico de sete notas criado por Roger Waters gerou "Money", incialmente um blues acústico que foi transformando num incrível balanço rhythm & blues por David Gilmour. Tornou-se um dos riffs de baixo mais marcantes da história do rock. A letra satiriza as pretensões milionárias de uma banda de rock ou do mundo capitalista. É um dos hits que circulou nas rádios e alimentou o sucesso do álbum.     

US AND THEM (Waters/ Wright)

A fusão entre a explosão rock and roll de "Money" com órgão ecumênico de Richard Wright em "Us and Them" nos levam até um dos mais deliciosos passeios do álbum. O tema nasceu como "Violent Sequence", uma faixa composta para o filme "Zabriskie Point" (1970), mas rejeitada pelo diretor do filme, Michelangelo Antonioni. O sax de Dick Parry empresta romantismo onde na verdade ele não existe, pois estamos falando de uma reflexão social. A estrofe de abertura fala sobre ir à guerra, no eterno retorno do baixista até Anzio, em 1944, onde seu pai lutou e morreu em combate. Ainda de acordo com Waters, o segundo e o terceiro verso falam sobre direitos civis, preconceito e racismo. "É sobre passar por um mendigo e não ajudá-lo", disse. O eco na voz de Gilmour é uma das grandes sacadas da música. A explosão do refrão contrasta com o restante da música, uma dinâmica ao estilo da música erudita, emprestando diversas sensações ao ouvinte.   

ANY COLOUR YOU LIKE (Gilmour/ Mason/ Wright)

Rock progressivo da gema, recheado de climáticas e guitarras. Mesmo que em contesto individual a faixa não seja um destaque, é em "Any Colour You Like", outro tema nascido de uma das jams construídas em ensaios, que David Gilmour faz um de seus melhores solos e segura a onda até ela rebater na faixa seguinte. A música ainda foi editada como single, Lado B de "Money". 

BRAIN DAMAGE (Roger Waters)

Se alguém acha que Roger Waters buscou parte de sua inspiração em "Dear Prudence" para fazer "Brain Damage" isso não é nenhum absurdo. A música claramente se refere a demência de Syd Barret, uma presença permanente no Floyd, mesmo após sua saída. Ao final, ela se adesiva a faixa seguinte para concluir magistralmente o Lado B. 

ECLIPSE (Roger Waters) 

"Tudo o que você toca/ E tudo o que você vê/ Tudo o que você prova/ Tudo o que você sente. E tudo o que você ama/ E tudo o que você odeia/ Tudo o que você desconfia/ Tudo o que você salva. E tudo o que você dá/ E tudo o que você negocia/ E tudo o que você compra/ Implora, pega emprestado ou rouba/ E tudo o que você cria/ E tudo o que você destrói/ E tudo o que você faz/ E tudo o que você diz/ E tudo o que você come/ E todos que você conhece/ E tudo o que você desconsidera/ E todos com quem você briga/ E tudo o que é agora/ E tudo o que já passou/ E tudo que virá/ E tudo que vejo sob o Sol está em perfeita sintonia/ Mas o Sol esta coberto pela Lua/ E, na realidade, não há um lado escuro na lua)/ Pois, na verdade, tudo já está escuro".

É o momento mais lírico do álbum, encerrando poeticamente um dos discos mais fantásticos de todos os tempos. 

Ouça "The Dark Side of the Moon.    

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