Os 40 anos de "The Final Cut", do Pink Floyd

Divulgação Sony
| Por Márcio Grings |

"The Final Cut" não é o melhor disco do Pink Floyd. Inclusive, muitos o consideram o pior. Discordo veementemente. De qualquer modo, numa primeira análise, TFC precisa ser destituído de comparações. Nessa régua, inclusive, ele pode ser visto como uma álbum corajoso e necessário para aquele início de década de 1980, e até mesmo coerente com a obra do Floyd. Num conhecido site de ranqueamento de álbuns (Album Reviews, elencado do pior para o melhor) "The Final Cut" está na 9ª posição da discografia do Pink ( oque até acho um exagero), à frente de discos como "Endless River" (2014), Ummagumma" (1970). "A Momentary Lapse of Reason" (1987), "More" (1969), "The Divison Bell" (1994) e do próprio "The Wall" (1979).   

Veja a live pelo Pitadas do Sal.

 

A âncora temporal com a Guerra Fria e um histórico conflito bélico no Atlântico Sul repousa nos sulcos do LP. Se em 1982/83, a Guerra das Malvinas/Falklands inspiraram o álbum, quatro décadas depois, o confronto entre Rússia/Ucrânia reaviva a temática antibelicista estabelecida na temática das letras de Roger Waters. Particularmente, aos 14/15 anos, esse era o disco do Pink Floyd que falava sobre dilemas comuns ao meu tempo de adolescente. Solidão, insegurança com o futuro, medo e até mesmo o clima barra pesada de um improvável embate entre União Soviética e Estados Unidos. "The Final Cut" foi lançado no mesmo ano de "The Day After", de Nicholas Meyer (Um Século em 43 Segundos, Star Trek), filme que expos o medo de uma guerra nuclear, algo pulsante naquele período, principalmente devido às tensas relações entre os soviéticos e norte-americanos. No longa, utilizando de elementos de ficção, a trama apresenta logo no início uma visão de como eram difíceis (e continuam sendo) as relações entre ambos os países, uma tensão contínua no pós-segunda guerra, reativada devido a vários episódios históricos durante a década de 1970/80. 

O canto do cisne de Roger Waters no Pink Floyd poderia ser o seu primeiro disco solo, caso não houvesse uma obrigação contratual em lançar mais um álbum da banda em que ele ainda integrava (dois anos depois anunciaria sua saída). Coloque esse protagonismo solo do baixista na conta de David Gilmour e Nick Mason, omissos em apresentar uma contrapartida à proposta de Waters. Eles não tinham nenhum pássaro na mão. É fato: em diversas entrevistas e biografias, tanto o guitarrista quanto e baterista já assumiram resignados essa culpa. À exemplo disso, lá por 1978, após a turnê de "Animals" (1977), numa reunião da banda para definir a temática do próximo álbum, Waters apresentou três demos: aquilo que se tornaria "The Wall", um esboço de "The Final Cut"(montado com algumas sobras da obra anterior) e um outro conjunto de canções que se tornaria "The Pros and Cons of Hitch Hiking" (1984), seu primeiro trabalho solo. David até tinha canções novas, mas preferiu lançá-las como uma álbum solo em 1978. Com isso, é inegável afirmar que Roger Waters ainda era o motor que movia intelectualmente o Pink Floyd, uma direção artística forjada inicialmente de forma colaborativa após a saída de Syd Barrett, mas que se ampliou com o passar dos anos. Contudo, movido pela letargia de Gilmour e Mason (Wright já havia sido despedido durante as sessões de The Wall), agora o comando da nave estava apenas na mão pesada de Waters. E ele operava com mão de ferro.  

Reprodução capa interna.
Num raso alinhamento, o disco pode ser visto como um arremedo ao espectro proporcionado por "The Wall". É uma comparação inevitável, pois há canções em TFC compostas sincronicamente a esse período. O fato da guitarra de David Gilmour ficar de fora da linha de frente em muitas músicas passa pelas diferenças entre ele e Waters, no que tange às convicções artísticas e até políticas. Vale relembrar: desde 1974 o baixista tinha assumido a direção artística da banda, muitas vezes olhando para dilemas atuais da sociedade para inspirar-se e levantar uma bandeira artística:

"Vi tudo aquilo ser esculpido, mas era quase o retorno a uma sociedade dickensiana sob o comando de Margaret Tatcher. Senti na época, como sinto agora, que o governo inglês deveria buscar vias diplomáticas, em vez de decidir no calor do momento que sua força-tarefa fosse enviada ao Atlântico", disse Waters anos depois. Detentor de zero orgulho pelo passado colonialista da Inglaterra, Roger ainda declarou que gostaria de ver as Malvinas devolvidas à Argentina. 

"Se essas músicas não eram boas o suficiente para The Wall, por que são boas o suficiente agora?", disse e redisse David Gilmour sobre as canções descartadas, que também não concordava com as críticas pesadas direcionadas a Primeira Ministra britânica Margaret Thatcher.       

"The Final Cut" foi gravado entre julho e dezembro de 1982. O impacto da participação britânica na Guerra das Malvinas, ocorrida entre os meses de abril e junho daquele mesmo ano, pulverizou o disco. Por isso as letras fazem muitas referências diretas a personagens centrais do Conflito, como Tatcher e Galtieri. Anos depois, em 2012, Waters foi recebido pela presidente Cristina Kirchner, e ainda encontrou várias mães de soldados mortos no conflito. O processo de identificação dos restos mortais dos soldados argentinos no cemitério militar nas Malvinas decolou quando a jornalista argentina Gabriela Cociffi enviou um e-mail solicitando ajuda para Waters, que através de suas articulações, conseguiu levá-los até o arquipélago. Esse tema ainda continua caro para o ex-Pink Floyd.  

Reprodução "Music From The Final Cut | A Requiem From the Post War Dream".
Além do LP, a minha geração correu para as locadoras e derreteu o VHS/EP de 19 minutos com canções do álbum — "Music From The Final Cut | A Requiem From the Post War Dream". Lá estavam "The Gunner's Dream", "The Final Cut", "The Fletcher Memorial Home" e "Not Now John". Tudo escrito e produzido por Waters, claro! A direção era do seu cunhado na época, Willie Christie (fotógrafo na Vogue britânica), que também é o responsável pela imagem da capa e pelas artes de divulgação, uma dos poucos projetos gráficos sem a direção de Storm Thorgerson. e da boa, velha e sempre confiável Hipgnosis. 

Aos 39 anos, em "The Final Cut" Roger antecipa sua crise da meia idade alimentado "seu bebê", segundo Gilmour se referia a obsessão do baixista. Além de conceitual, a linhagem progressiva temática está demarcada no LP — todas as faixas estão interligadas, e uma se conecta a outra, quando muitas vezes não percebemos onde começam e terminam as canções. É a representação do álbum por excelência, e ouvi-lo deslocado dessa projeção enfraquece a experiência da audição. Lançado há 50 anos, em 21 de março de 1983, se analisarmos separadamente "The Final Cut" sem compará-lo com nenhum álbum do Pink Floyd, o neném de Roger Waters não é o monstro que foi pintado por muitos. Longe de ser o indesejado Bebê de Rosemary de Gilmour e nem tão próximo de uma obra-prima que nem o próprio Waters concorda não ser. "The Final Cut" é pinkfloydiano, waterista e extremamente coerente com seu criador, um disco que faz jus a trajetória do Pink Floyd, é uma despedida à altura de um de seus principais mentores.

Veja "Music From The Final Cut | A Requiem From the Post War Dream".           

Lado A

THE POST WAR DREAM

A faixa de abertura, "The Post War Dream", começa com um anúncio gravado (como se fosse um rádio ou um  TV ligada num noticiário). O locutor fala sobre o Atlantic Conveyor, um navio abatido durante a campanha das Malvinas.

A morte do pai, tema explorado a exaustão em "The Wall", retorna logo no início de "The Final Cut":  

"Me diga a verdade/ Me diga, por que Jesus foi crucificado?/ Foi para isto que meu Pai morreu?".

E claro, logo de cara ele já bate forte na Primeira Ministra britânica Margaret Thatcher (uma das discordâncias políticas/ideológicas fundamentais entre ele e Gilmour: 

"Maggie, o que nós fizemos à Inglaterra?". 

O tema começa como se fosse uma peça erudita, com arranjo do harmoniun (órgão antigo) de Michael Kamen, o que empresta uma ambiência quase sinfônica, com um naipe de metais dourando os acentos tônicos. Daí, ao final, o trio Waters, Gilmour e Mason resgata a energia do rock and roll. É um belo começo.  

YOUR POSSIBLE PASTS

Não utilizada em "The Wall", essa é uma versão reescrita. A letra faz alusão ao holocausto, revela um mundo cinza e apocalíptico. Parte da letra pertence a uma música antiga de Waters não utilizada no PF, mas gravada por Marianne Faithfull (Incarceration of a Flower Child). O solo de David Gilmour é digno de seus grandes momentos no Pink Floyd. Roger já dá o tom e a ambiência daquilo que ouviremos no ano seguinte em seu primeiro álbum solo. A música é repleta de dinâmicas, intercalando suavidade e energia. Andy Bowl está no órgão Hammond e Ray Cooper reforça as batidas como sua percussão. 

ONE OF THE FEWS

Em pouco mais de um minuto de duração, em "One of the Few", outra música rejeitada de "The Wall", somos apresentados a um herói de guerra de volta de volta a vida civil. Ele é incapaz de relatar suas experiências à esposa, algo que está dramatizado no video/EP "Music From The Final Cut | A Requiem From the Post War Dream". O veterano de guerra é interpretado por Alex McAvoy, o professor carrasco de "The Wall". O violão de aço — com a voz mais falada do que cantada — é uma das digitais intransferíveis de Waters como cantor, muitas vezes criticado pelos seus detratores pela possível ausência de um rigor melódico.       

THE HERO'S RETURN

Baseada numa demo de "The Wall", ela foi reescrita para "The Final Cut", Virou single no Lado B de "Not Now John" e figurou nas paradas. É um dos grandes momentos do álbum, também explorando dinâmicas minimalistas com a energia do rock and roll. O violão de aço novamente triunfa na parte final, como se fosse um medley cíclico com a faixa anterior.        

THE GUNNER'S DREAM

"The Gunner's Dream" discute o sonho do pós-guerra de um mundo livre da tirania e de ameaças terroristas (uma referência a um atentado ocorrido no coração de Londres no início dos anos 1980). O evento, ocorrido em 20 de julho de 1982, foi uma ação do Exército Republicano Irlandês que detonou dois explosivos improvisados ​​durante cerimônias militares britânicas no Hyde Park e Regent's Park. "The Gunner's Dream também reflete os devaneios de um atirador na trincheira de guerra:

"Todas as noites/ Rondando meus pensamentos/ Há um sonho me desestabilizando/ E no esconderijo de algum campo estrangeiro/ Um atirador dorme/ Nós não podemos ainda escrever essa cena final/ Precisamos dar atenção a este sonho". 

O som da explosão de uma bomba é sucedido pelo barulho do vento e das teclas de Michael Kamen, como uma piano song. Logo depois surge um arranjo de cordas e o sax de Raphael Ravenscroft corta um grito de dor de Waters. Em tempo: Ravenscroft é o mesmo músico que você ouve em "Baker Street", clássico de Gerry Rafferty. Essa é uma daquelas músicas que poderiam tranquilamente figurar em "The Wall", tem um espírito semelhante e está ao nível das melhores canções do Pink Floyd dessa fase.      

PARANOID EYES

Fim do túnel, fim de carreira, desesperança. Waters fala de alguém cansado de seguir em frente. 

Novamente é o piano que manda, com arranjos sutis da percussão de Ray Cooper colaborando na climática, além da orquestração com sopros e cordas envernizando tudo com delicadeza. Na segunda parte, o violão e uma pandeirola promovem uma falsa embalada para logo depois retornar ao início. 

"Você acreditou em todas aquelas histórias de fama, fortuna e glória/ Agora você está perdido numa bruma de álcool e da meia idade/ A recompensa no céu não está ao alcance de suas mãos/ E você se esconde por trás de olhos castanhos e mansos"

É uma das minhas preferidas.   

Arte: Willie Christie 
Lado B

GET YOUR FILTHY HANDS OFF MY DESERT

A explosão de uma bomba abre o Lado B e precede um quarteto de cordas e o violão. "Get Your Filthy Hands Off My Desert" lida com os sentimentos de Waters sobre guerra e a invasão. Waters imagina uma reunião entre lideres mundiais. Ela é quase uma vinheta erudita, com uma quarteto de cordas sonorizando essa conferência que, como sabemos, trará qualquer coisa, menos a paz. Um triste violoncelo cola na adesiva na faixa seguinte, reforçando a carga temática do álbum. É a faixa mais curta de "The Final Cut".       

THE FLETCHER MEMORIAL HOME

A canção relata a pura frustração de Waters com estadistas dos quatro cantos do mundo no pós segunda grande guerra, mencionando vários líderes mundiais pelo nome (Ronald Reagan, Alexander Haig, Menachem Begin, Margaret Thatcher, Ian Paisley, Leonid Brezhnev, Joseph McCarthy e Richard Nixon), sugerindo que eles sejam segregados em um asilo-prisão especialmente preparado para eles. Ele rotula os líderes mundiais como "bebês crescidos" e "tiranos incuráveis" e ainda sugere que os mesmos são incapazes de entender qualquer coisa além da violência ou da necessidade de fomentar seus egos. Assim como na música anterior, "Get Your Filthy Hands Off My Desert", "The Fletcher Memorial Home" recorre no erro de dar nome aos bois e assim tatua uma marca temporal no álbum, o datando como temática, apesar dos dilemas geopolíticos seguirem vigentes. David Gilmour triunfa no solo.  

SOUTHAMPTON DOCK

O som das gaivotas nos lembra que estamos em "Southampton Dock", um lamento pelos soldados que se dirigem para uma provável morte. Na Segunda Guerra Mundial, muitos ingleses partiram de Southampton para lutar contra os alemães, desta vez para a Guerra das Malvinas. A canção descreve uma mulher que "acena" para os soldados em um novo adeus. Mais uma faixa onde a voz e o violão se impõem como um preâmbulo no início, para dar lugar ao piano e orquestrações na parte final, abrindo passagem para a faixa título.      

Arte: Willie Christie
THE FINAL CUT

A faixa título fala sobre isolamento, depressão, repressão sexual e rejeição. O personagem fala em suicídio, mas "nunca teve coragem de dar o 'bangornaço' final". O tema é barra pesada, e é na verdade um pedido de socorro. A letra é devastadora: 

"E se eu te mostrasse meu lado escuro/ Você ainda me abraçaria esta noite?/ E se eu abrisse meu coração pra você/ E te mostrasse meu lado fraco, o que você faria?/ Venderia sua reportagem para a Rolling Stone?/ Levaria as crianças embora e me deixaria sozinho?/ Sorriria de uma forma tranquilizadora enquanto sussurra ao telefone/ Você me enxotaria ou me levaria para casa?".  

Impossível não lembrarmos de "The Wall".    

NOT NOW JOHN

"Not Now John" aborda a ignorância da sociedade sobre os problemas políticos e econômicos. É a única música do álbum em que ouvimos a voz de David Gilmour, cantando partes diferentes das de Waters, representando ambiguidades e pontos de vista dissonantes. A velha química está intacta, assim como os vocais de apoio também apontam para "The Pros and Cons of Hitch Hiking". 

TWO SUNS IN THE SUNSET 

O barulho de carros cruzando e o violão puxando o riff com a banda vindo atrás. O álbum termina com "Two Suns in the Sunset", que retrata a iminência do holocausto nuclear.  

"No espelho retrovisor/ O sol está se pondo/ Ele afunda atrás das pontes na estrada/ E eu penso em tudo o que deixamos de fazer/ Sofro com minha percepção/ Confirmo as suspeitas/ O holocausto está próximo".

Nick Mason não participa da faixa, sendo substituído por Andrew Newmark (Roxy Music). Ao final, o sax de Raphael Ravenscroft nos conduz ao final da estrada até o fade out alcançar o derradeiro pôr do sol de "The Final Cut" e de Roger Waters no Pink Floyd.    

Como não houve turnê promocional para "The Final Cut", e este álbum foi totalmente ignorado por Gilmour, Wright e Mason durante as turnês de "A Momentary Lapse of Reason" e "The Division Bell", "Two Suns in the Sunset" nunca foi tocada ao vivo por Pink. Floyd. No entanto, Roger Waters, como artista solo, estreou a música quase 35 anos após seu lançamento em um show da Us + Them Tour, no show na Fonte Nova em Salvador, na Bahia. Lembro que quando fui ao show da mesma turnê, em Porto Alegre, tinha a expectativa de ouvi-la também no Beira-Rio. Só que no final da noite uma chuvarada cai na capital gaúcha e o show precisou ser encurtado.  

Ouça abaixo. Obs.: "When the Tigers Broke Free" não está descriminada na resenha pelo fato de ser incluída posteriormente em novas edições de "The Final Cut".  

Comentários