50 anos de "Wake of the Flood" (1973), do Grateful Dead

Divulgaçao GDE
| Por Márcio Grings |

Falar sobre o Grateful Dead exige complexidades. Da mesma forma que sou cuidadoso ao debater sobre gêneros como jazz e blues ou quando me aventuro pela música erudita — não por desconhecimento, mas por sua transversalidade —, um bate-papo sobre o Dead sempre será algo complexo. É necessário recarregar os sentidos, abrir janelas, virar a página, quebrar vidraças, estar disposto a viajar, é preciso comer a poeira da estrada, ouvir histórias, trocar o pneu com o carro andando e depois voar na contramão. O Dead surgiu na estrada, viajando de um lugar para o outro, pegando uma estrada após outra, e, uma vez nessa highway, nunca se sabia (exatamente) pra onde se estava indo, nem o que iria acontecer quando eles aterrissavam no seu destino.

Confira a live no Pitadas do Sal.

 

"Como eu não pude parar a morte ela parou para mim. A carruagem carrega apenas a nós e a imortalidade". A citação de um poema de Emily Dickinson que abre  "Long Strange Trip" (2017), disponível para os assinantes Amazon Prime, é o epígrafe apropriado que nos induz ao universo de um dos grupos mais idolatrados da música mundial. O documentário não investiga a discografia do grupo, não traz um inventário sobre o conteúdo das músicas nem tenta nos conduzir por uma linha do tempo estritamente cronológica.  Em "Long Strange Trip" acompanhamos a jornada musical do Dead desde os anos 1960, uma banda idealizada e orquestrada pelo homem que não queria ser 'presidente de nada' mas se tornou um dos gurus de sua geração. Jerry Garcia, o professor de todos, o amigo de todos, o sujeito incapaz de iniciar um conflito, o fã de Jack Kerouac que trouxe Neal Cassady, o Dean Moriarty de "On The Road" (1957), para ser o motorista do magic bus na viagem do ácido pelas estradas americanas. 

"Fugindo pelos campos de lírios, me deparei com o vácuo / Ele tremeu e explodiu, mas deixou um ponto de ônibus em seu lugar / O ônibus passou e eu embarquei, foi aí que tudo começou / Lá estava caubói Neal ao volante sem horário para parar a viagem", com diz a letra de Robert Hunter em "The Other One", descrição psicodélica e 'autobiográfica' do ônibus zurzindo de leste a oeste dos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1960.   

O Dead em 1973. 
Repletas de imagens raras, entrevistas e depoimentos, entre eles destaca-se a voz de Sam Cutler, road manager dos Stones contratado em 1970 para pôr ordem numa trupe que chegava a acerca de 50 membros nas turnês — músicos, técnicos de som, roadies, agregados, crianças, namoradas, uma babilônia itinerante que fazia do Dead uma das família mais festivas do rock and roll. 

Outra dica para quem gosta de Grateful Dead é assistir “A música Nunca Parou (The Music Never Stopped - USA - 2011”, filme ambientado primeiramente nos anos 1960, e conta a história de Henry (J.K. Simmons) e Gabriel (Lou Taylor Pucci), pai e filho com pensamentos opostos quanto a gostos musicais, política e a Guerra do Vietnã, mas que acabam encontrando uma conexão através da música do Dead.  

Depois de tudo oque fizeram nos anos 1960, como pivôs de uma geração, e principalmente após entregarem dois clássicos em apenas um ano — “Workinman’s Dead” e “American Beaty” (1970), o Grateful Dead não poderia errar no seu próximo álbum de estúdio. Eles estavam longe das gravações entre quatro paredes desde 1970. Em agosto de 1973, exatos três anos depois, em apenas 10 dias “Wake of the Flood”, o sexto álbum de estúdio do Dead seria finalizado. Esse é o disco que inaugura o selo próprio do grupo (The Grateful Dead Records), com sua ex-gravadora jogando pesado para a derrocada do projeto, pois lançou uma coletânea para competir com o novo álbum. “Skeletons from the Closet: The Best of Grateful Dead”, caiu nas prateleiras apenas quatro meses depois, obviamente prejudicando a vendagem do trabalho mais recente. O selo do Dead durou pouco mais de três anos, outro dos fracassos dos hippies de San Francisco. 

A capa, desenhada por Rick Griffin, um artista de San Francisco e colaborador assíduo da banda (ele é citado por Roger Dean, um dos mais requisitados capistas do rock, como uma de suas principais influências). A imagem é baseada num xilogravura antiga de um homem com um maço de trigo e uma foice. É como se fosse uma reflexão dos ciclos da natureza, com uma mar melvilleniano ao fundo e uma nuvem fantasmagórica a nos avisar sobre a possibilidade de uma nova turbulência. A figura enigmática da capa, com olhar tranquilo, apenas parece fazer o seu trabalho. Na contracapa um corvo crocita entre feixes de trigo (o pássaro também está nos selo do vinil). Griffin disse que sua criação foi inspirada por uma citação do Apocalipse: "E o mar entregou os mortos que nele havia, e a morte e a sepultura entregaram os mortos que neles havia, e foram julgados, cada um segundo as suas obras" (Apocalipse 20:13). Ele acrescentou que "o desenho propõe justapor a Escritura com uma figuração amorosa, uma imagem de uma colheita tranquila e harmoniosa”.  

E se o Dead lançou “Wake of the Flood” (o despertar do dilúvio), Bob Dylan, um confesso admirador do grupo de Jerry Garcia, lançaria dois anos depois “Before the Flood” (antes do dilúvio), um nome obviamente inspirado no disco de seus amigos feito em 1973.  

Alguns perguntam sobre a ausência do baterista Mickey Hart em “Wake of the Flood”. O fato é que seu pai, Lenny Hart, contador e advogado da banda, e o homem escolhido para administrar as finanças do Dead, deu um golpe e roubou uma fortuna dos cofres da banda. Constrangido e sentindo-se culpado, Mickey resolveu dar um tempo. Esse também é o primeiro registro de estúdio sem Ron "Pigpen" McKernan, morto apenas cinco meses antes por problemas relacionados ao abuso de álcool. Keith Godchaux já era um músico contratado nas turnês para as eventuais ausências de Pigpen, e assim foi efetivado, assim como sua esposa, a cantora Donna Godchaux. 

“Wake of the Flood” está entre meus preferidos do Dead, figurando no top 5 ao lado de “American Beauty” (1970), “Workingman's Dead”, “Shakedown Street” e “In The Dark” (1987). É um álbum sem fillers, com apenas sete canções, cinco vindas da parceria de Jerry Garcia e o poeta Robert Hunter, uma composta por Godchaux e Hunter, e uma última faixa escrita por Bob Weir e seu letrista favorito, o poeta e ativista John Barlow. 

MISSISSIPPI HALF-STEP UPTOWN TOODELLO

O álbum começa num vibe bluegrass, com guitarra, piano, uma rabeca e voz de Garcia cantando a letra de Robert Hunter, ainda com o espírito caipira dos dois álbuns antecessores:

"Olá meu amor/ Tchau e gracias/ Meia xícara de pedra e centeio/ Tchau pra ti, e para o céu encardido do Sul/ Estou a caminho, indo/ Se tudo o que você tem para viver é o que você deixou para trás/ Pegue uma carga de pólvora e sele aquela mina de prata/ Na correria, perdi minhas minhas botas, querida/ Uma pilha de couro fumegante/ Recauchutei os meus pés e rezei por dias melhores"

O violino de Vassar Clements (Nitty Gritty Dirt Band, Jimmy Buffet) dá o sabor caipira e joga melancolia em "Mississippi Half-Step Uptown Toodeloo". Clements tocou com Garcia em Old & In the Way, um dos projetos folk do líder do Dead. É uma música que cairia como uma luva em "Workman's Dead", ou seja — "Wake of the Flood" começa de onde o grupo havia parado em 1970. É um belo início, principalmente para os fãs dessa fase com raízes no country. 

Além do time oficial: Jerry Garcia (voz, violão, guitarra e pedal steel), Bob Weir (voz e guitarra), Phil Lesh (baixo), Bill Kreutzmann (bateria), Keith Godchaux (teclados) e Donna Jean Godchaux (voz de apoio), mais 10 músicos participam da gravação. 

LET ME SING YOUR BLUES AWAY

Estreia de Keith Godchaux como compositor e vocalista principal com apenas 25 anos (ele morreria sete anos depois, alimentando a lenda das mortes trágicas dos tecladistas do Dead). O sax de Frank Morin (Sir Douglas Quintet) já entra rasgando logo de cara. Parte da melodia lembra "Take a Whiff on Me" do Byrds, gravada três anos antes, mas na verdade uma canção de 1934, vinda da cepa de Lead Belly, e uma das primeiras letras a fazer referência ao uso de cocaína. Vale lembrar que a cocaína foi isolada pela primeira vez na Alemanha em 1859, sendo comercializada como medicamento nos Estados Unidos em 1889. Na verdade, a semelhança entre ambas está apenas num trecho, pois como um bom blues, "Let Me Sing Your Blues Away" é daquele tipo de música que você acha que já deve ter ouvido antes. A letra de Hunter, sem referências a drogas, é pura nostalgia, passando aquela sensação de liberdade que você sente quanto está na estrada no volante de um carro. 

"Ligue a chave/ Pise na embreagem, deixe as rodas rolarem livremente/ Nem uma nuvem no céu, um dia perfeito/ Dê o play no som/ Vamos querida, deixe-me cantar". 

ROW JIMMY

O coração de tudo é o baixo de Phil Lesh, complementado pelo teclado de Godchaux. No refrão fica claro a influência do gospel, com a voz de Donna Godchaux sombreando a de Jerry. O clima relaxado e deadiano, o solo de slide, é uma das músicas assinaturas do grupo. 

"Nem muito rápido e nem muito lento/ E eu digo rema, Jimmy!/ Você vai chegar lá?/ Não sei".

STELLA BLUE

Faixa a faixa, o Lado A vai esquentando e, quando chegamos no final do Lado A, em "Stella Blue", temos a certeza: chegamos na canção matadora do álbum. O baixo de Phil Lesh, as vozes de apoio, o lap steel, o piano caindo como pétalas são pontos altos da música. É uma música triste, e especula-se que o 'blue' aqui deve ser entendido no sentido do blues, ou seja: de destroçado e machucado. A letra não parece versar sobre amores perdidos, mas sim sobre a transitoriedade e aparente falta de sentido da vida. 

"E quando você ouvir aquela canção/ Chorando como o vento/ Parece que toda essa vida foi apenas um sonho"

Em "Box of Rain, seu livro de letras, Hunter diz que "Stella Blue" foi escrita no Chelsea Hotel em 1970, o que torna o Chelsea um dos "hotéis baratos de luz azul" mencionados na música. É a minha música do álbum e uma das preferidas de toda a carreira do Dead. Willie Nelson a regravou em 2006 em "Songbird", numa versão tão arrebatadora quanto a original de "Wake of the Flood".   

"Todos os anos se fundem como um sonho/ Um anjo de asa quebrada canta através de uma guitarra". 

E, além disso, fechamos o Lado A tendo a sensação de estar ouvindo um grande álbum. Se muitos discos começam bem e vão caindo, "Wake of the Flood" já começa okay, mas vai subindo a régua a cada faixa que avançamos.

HERE COMES THE SUNSHINE

O Lado b abre com uma das canções otimistas do Dead, indo de encontro do bordão popular: após a tempestade vem a bonança (citação bíblica de Matheus), no sentido de entender que o recomeço é sempre necessário, e ele sempre vem, quer queiramos ou não. "Here Comes Sunshine" tem as guitarras de Bob Weir e Jerry Garcia complementando uma a outra, uma das marcas da dupla. Novamente citando "Box of Rain", livro de Robert Hunter, ele inclui uma nota na parte inferior da página para a letra de "Here Comes Sunshine", onde se lê: :

"Lembrando a grande enchente de Vanport, Washington em 1949, morando na casa de outras pessoas". 

Não são muitas as letras que possuem notas anexadas a elas, assim "Here Comes Sunshine" deve ter sido uma música pessoalmente significativa para Hunter. 

EYES OF THE WORLD

Uma das canções favoritas dos deadheads e frequentes nas apresentações ao vivo. Às vezes criticada, liricamente, por ser um utópica e hippie demais, “Eyes of the World” pode ser entendida como uma mensagem de esperança, pensando na consciência humana como algo valoroso para o planeta como um todo. Há referências literárias e musicais, de Blaise Pascal a Ken Kesey. E então, ele aponta para nossas vidas diárias e preocupações com o meio ambiente, com os pássaros, com toques de humor: "Para onde diabos eles vão no inverno?" Reparem o solo de baixo de Phil Lesh na parte final. Absolutamente fantástico. E como não nos deslumbramos com as letras de Robert Hunter quando ele nos diz — “O coração tem suas praias/ sua pátria e seus próprios pensamentos/ O coração tem as suas estações/ as suas noites e as suas próprias canções”. 

WEATHER REPORT SUITE

Tudo começa com o violão espanhol de Jerry Garcia. Depois tudo vai acontecendo, a levada comedida da bateria, os climas do teclado, até Bob Weir fazer seu único vocal principal em "Wake of the Flood", justamente na última canção, e que música!. O nome suíte não é por acaso, e o refrão tem uma forte influência de Crosby, Stills & Nash:

"E como uma primavera desabitada, minha amada vem e abre suas asas/ Sabendo, uma canção nasce para ascender até o céu/ Fluindo, Fluindo até que todos os rios estejam secos/ Amadurecendo o amor em seus olhos".

A música aborda as estações, e sua mudança reflete nosso estado de espírito enquanto refletimos sobre o amor e a passagem do tempo. E há momentos poéticos sublime na letra de John Barlow: "E as estações terminarão em confusa rima e pouca mudança/ O vento e a chuva.”

A primeira parte acaba aos 5min e meio, num clima quase que pinkfloydiano, e aí a música traz outra vibração. 

Ao final, John Barlow, que estudava teologia, pergunta: “O que devemos dizer/ Devemos chamá-lo por um nome?" O nome, aponta, está na terra, e no trovão, que grita sua existência: “Eu sou”, uma referência bíblica direta a Moisés vagando no deserto (Êxodo 3:13-14).  

Ouça. 


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