50 anos de Dixie Chicken (1973), clássico do Little Feat
Arte da capa: Neon Park |
Muitas vezes o mundo do pop é extremamente injusto. Um bom exemplo está em "Dixie Chicken" (1973), que apesar dos seus méritos musicais, por razões desconhecidas e misteriosas continua fora das listas dos grandes discos do rock de todos os tempos. Estamos falando de um trabalho impecável — da primeira faixa do Lado A a última faixa do Lado B —, "Dixie Chicken" é o 'disco assinatura' do Feat, é o LP que lhes rendeu notoriedade entre os boleiros. A começar pela capa de Neon Park onde temos uma ilustração que faz referência a um verso de "Roll Um Easy", uma das faixas mais celebradas de "Dixie Chicken" — "Toque aquele acordeom/ Seja uma mulher sedutora". Podemos ver um olho extra no topete cinza/ azulado do cabelo da mulher, afora um outro olho que nos encara direto da borda do instrumento, assim como as teclas brancas parecem dentes de um réptil ou algo parecido.
Divulgação |
Na época, apenas 30.000 pessoas se deram ao trabalho de ir a uma loja e comprar "Dixie Chicken". Mas, nada como o tempo e a distância. Como escreveu Bud Scoppa no encarte do box "Hotcakes and Outtakes" (2000): "Com a entrada de Barrere, Gradney e Clayton, chegariam ao fim os dias de Little Feat como uma banda de rock/raiz da Costa Oeste. Quem teria pensado que o Little Feat, a resposta de LA para The Band, de repente se transformaria no The Meters?". Nada fora do tom, pois Payne ouvia Professor Longhair e Clifton Chenier. George gostava de Allen Toussaint e Dr. John.
Os novos integrantes 'chegaram chegando', pois Clayton adiciona vários instrumentos de percussão no molho sonoro, o que passa a ser uma das características no som do grupo. Gradney 'funkea' o baixo valendo, enquanto Barrere responde à guitarra de George com riffs complementares de slide, afora sua guitarra base que sobe um degrau e passa para a linha de frente. Enquanto muito do rock sulista da época foca nas guitarras e jams pesadas, o Little Feat soa tipicamente mais relaxado, embora até ceda (principalmente ao vivo) à tendência do improviso, embora eles nunca se desviassem do tema —principalmente até 1974, quando Lowell George detinha o controle e a liderança da banda, pois após essa fase, Barrere e Payne assumiriam a direção criativa da banda e repaginariam a banda.
Apresentando clássicos como a faixa-título, “Roll Um Easy” e “Fat Man in the Bathtub”, “Dixie Chicken” promoveu um salto na reputação da rapaziada, mas mesmo assim o grupo ainda continuaria à margem do mainstream. Existe até um boato, uma lenda urbana propagada possivelmente por algum fanático do Little Feat, que assim que Mick Jagger chegou a Los Angeles, na época em que mixava e fazia overdubs para montar o clássico "Exile on Main Street" (1972), ele teria levado como referência um LP do Feat (provavelmente Sailin' Shoes). Existem, de fato, várias faixas em 'Exile', como "Shine A Light", "Loving Cup", "Let It Loose" e "Soul Survivor", que têm aquela sensação densa, os vocais de apoio suntuosos, que distinguem a música do bando de Lowell George e já estavam na gema de muitas canções.
"Dixie Chicken" ainda conta com várias participações. O sexteto de vozes de apoio femininas (uma das marcas do álbum) conta com Bonnie Bramlett (Delaney & Bonnie), Bonnie Raitt, Gloria Jones (T-Rex), Debby Lindsey, Tret Fure e Stephanie Spruill, além de Danny Hutton (Tree Dog Night) no coro masculino do backing e destaque em "Roll Um Easy". E ainda temos Malcolm Cecil (sintetizador), Milt Holland (tabla) e Fred Tackett (guitarra), que nos anos 1980 seria efetivado como integrante oficial do grupo. Em suma, o mar sulcado do 3° álbum do Little Feat é um perfeito Shangri-lá para os amantes do bom rock feito nos anos 1970, apresentando aos apreciadores um dos mais saborosos molhos culturais do início daquela década.
DIXIE CHICKEN
O início percussivo já nos deixa satisfeitos logo de cara. A guitarra base de Paul Barrere é um dos motores do tema. No refrão, Bonnie Raitt and Bonnie Bramlett estão nos vocais de apoio. O coro feminino lembra o clima de 'Exile', dos Stones. Além disso, a voz de Lowell George nunca soou tão bem, ajustada para o blues/funk do sul, uma vertente que escorria de cada música.
"Eu vi as luzes brilhantes de Memphis/ E do Hotel Commodore/ E debaixo de um poste de luz, encontrei uma beldade/ Bem, ela me levou até o rio, onde ela lançou o seu feitiço/ E debaixo do luar do sul, ela cantou uma música".
O piano New Orleans de Bill Payne, caindo pelas beiradas, e pipocando habilmente de um lado para outro, é de um balanço invejável. "Dixie Chicken" é puro triunfo, culminando no slide característico de Lowell e a harmônica na parte final que dobra a ênfase no riff das guitarras.
TWO TRAINS
A disputa de uma corrida em busca de uma mesma mulher. O piano e uma guitarra mascada preparam o clima. “Two Trains” se utiliza da rivalidade sexual para também cruzar ritmos costurados pela guitarra base de Barrere. O piano elétrico de Payne bate bola com a bateria de Hayward, com Clayton e Gradney adicionando vários temperos nesse caldeirão. Os slides de George esculpem e arrematam tudo. Os vocais de apoio femininos são um show a parte. Na interpretação de Lowell George muitas vezes parecem que os lead vocals são divididos, mas não se engane: é Lowell George monstrando seus dotes vocais matando todos os leões em apenas uma música.
ROLL UM EASY
A vibe é do folk. "Roll Um Easy" traz poesia e cafajestagem de estrada, além de apresentar Danny Hutton, uma das vozes do Three Dog Night, contribuindo com a harmonia vocal. Ele Acabara de voltar da turnê e estava com a voz esgotada. Lowell estava no estúdio sozinho e disse: "Vamos, bicho! Vamos cantar em harmonia". E assim se deu, em apenas uma tomada, a voz de Hutton soa como a de um ancião, perfeita.
"Eu sou apenas um vagabundo por aí/ O profano rola direto da minha língua/ Jantei em palácios, bebi vinhos com reis e rainhas/ Mas querida, você é a coisa mais bonita que eu já vi.
Você não vai me enrolar facilmente/ Tome minha liberdade/ sem apreensão, sem tensão/ Você é um paraíso ambulante, falante, meu doce paraíso"
Em "Roll Um Easy", a voz e o violão de Lowell George são cuidadosos, seus slides contidos, as harmonias vocais são cruas e delicadas ao mesmo tempo.
ON YOUR WAY DOWN
"On Your Way Down" de Allen Toussaint é remodelada pelo Feat, soa mais sinistra, traduzida por contornos assombrados do sintetizador e da melancólica percussão de Sam Clayton. Essa seria uma das músicas em que o sexteto ampliaria seu kit de ferramentas durante as apresentações. A guitarra solo gelatinosa que costura toda a música é simplesmente sensacional.
KISS IT OFF
O lado A acaba num clima meio Dr. John/ Leon Russel. A lutuosa "Kiss It Off" é uma música dominada principalmente por sintetizadores, com um som que lembra o a ambiência de "No Other", de Gene Clarke, disco do ex-Byrds lançado no ano seguinte.
FOOL YOURSELF
O lado B abre com "Fool Yourself" de Fred Tackett, que participa do álbum como convidado e se tornaria com justiça um membro oficial do Feat nos anos 1980. Os vocais de Lowell são suaves e carregadas de um espírito próprio, indo direto ao ponto com o sombreamento das vozes de apoio. É uma das melodias mais bonitas do disco.
WALKING ALL NIGHT
A cambaleante "Walkin' All Night", de Paul Barrere e Bill Payne, é orientada no blues, com slides molhados de um violão de aço e as congas em destaque. No início o embalo lembra um pouco a energia de algumas canções do Band, mas esse espelhamento logo se dissolve, pois as características do Feat se sobrepõem a qualquer mera imitação. A voz de Barrere afirma que ele pode ser um dos vocalistas do Feat com propriedade, algo que naturalmente aconteceria nos álbuns posteriores.
FAT MAN IN THE BATHTUB
Vocalizações, ótimas letras, piano, slide guitar e uma batida constante fazem desta faixa um dos destaques definitivos de toda a discografia do Little Feat. "Fat Man in the Bathtub" é outra daquelas composições de swamp-funk em que grupo vende naturalidade, sem demover um aparente esforço colossal, com acentos e temperos peculiares fornecidos por ritmos secundários afro-cubanos. As melodias complexas do piano de Payne e os slides (dobrados) são totalmente distintos. Destaque absoluto do álbum e presença definitiva nos shows até hoje.
JULIETTE
"Juliette" tem intervenções de uma flauta (algo inusitado no som do Feat). A guitarra base de Barrere novamente solta chispas, e o andamento das coisas dá uma leve amaciada depois do estrondo da faixa anterior. É a menor das músicas do discos (usando uma régua muita alta).
LAFAYETTE RAILROAD
O disco termina com o refinamento de "Lafayette Railroad", um instrumental deliciosamente relaxado, com a guitarra slide de Lowell contando uma história que só ele poderia contar. A bateria e a percussão não sobem a temperatura e contribuem para a climática até o fade out fechar as cortinas e concluirmos que "Dixie Chicken" se trata de um dos melhores discos feitos nos anos 1970.
Ouça-o na íntegra.
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