John Wesley Harding, de Bob Dylan

Divulgação Columbia
| Por Márcio Grings |

"John Wesley Harding, de Bob Dylan, é um álbum de segredos revelados pela metade, sussurros abafados, escrita ilegível e páginas faltando. É preto e branco granulado. Tem a sensação de antiguidade assentada sobre ele, como décadas e décadas de acúmulo de silenciosa poeira. É lindamente anacrônico e indescritível. É duro, arenoso, aparentemente impenetrável. É incrivelmente complexo e gratificante. Tudo isso para dizer que é o clássico Bob Dylan" fonte original (POP MATTERS) 

Na curva do tempo, "John Wesley Harding" (1967) é o álbum que faz Bob Dylan trocar a anfetamina pelo capim loucura. Se "a estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria", como diria William Blake, aqui, é como se Bob desse um passo atrás, longe das turnês após o break forçado (ou não) pelo acidente de moto em 1966. Residente em Woodstock, com a bíblia aberta na mesa da sala e as canções de Hank Williams no toca-discos, ao lado da esposa e dos filhos, ele cria galinhas, caminha entre os liquidâmbares, respira o ar pastoril, compõe novas músicas e novamente volta os seus olhos e ouvidos para o folk/ country, uma escolha que seria confirmada no LP seguinte, "Nashville Skyline" (1969). Assim, "John Wesley Harding" oferece a calmaria após a tempestade elétrica de "Blonde on Blonde" (1966). Distante e oposto às ideologias do Verão do Amor, Dylan funde a mitologia do Velho Oeste com o Antigo Testamento. 

"Ele trocou seus óculos escuros por lentes bifocais; sua juba selvagem jogada para o lado agora está limpa e aparada; seu comportamento desafiador foi substituído por o de uma pessoa mais sábia, mais velha e barbuda; Em suma, como Dylan havia feito muitas vezes antes e faria outras tantas, ele se reinventou"fonte original (POP MATTERS). Lembro que Bob Dylan tinha apenas 26 anos em dezembro de 1967 quando "John Wesley Harding" aportou nas lojas.    

Veja a live comemorativa aos 55 anos de "John Wesley Harding", lançado em dezembro de 1967. 

Além de Bob (voz, violão — piano em duas músicas — e gaita de boca), apenas dois músicos estão ao seu lado no estúdio: Charlie McCcoy (baixo) e Kenneth Buttrey (bateria), session musicians de Nashville. A produção (quase sem meter a mão) é de Bob Johnstone. Aqui ouvimos um LP com apenas uma canção onde a guitarra surge, além de Pete Drake colaborar com seu pedal steel na mesma faixa (Down Along the Cove) e na última música do Lado B (I'll Be Your Baby Tonight). Numa linha evolutiva ao som que fez nos anos 1960, "John Wesley Harding" pode soar como um retrocesso para alguns, pois não recorre à pretensões intelectuais ou tecnológicas, é na verdade um disco de realinhamento com convicções, uma busca pela simplicidade poética e musical. Em "John Wesley Harding" o instrumento solista é a harmônica, assim como o baixo de McCoy é o coração pulsante em todas as canções, com a bateria de Buttrey se restringindo a um instrumento de acompanhamento. De todo o modo, não estamos operando aqui no abecedário country, é o folk rock que triunfa em "John Wesley Harding", mas é um folk diferente daquilo que Dylan fez nos seus primeiros discos, pois não há um vínculo com a tradição de Woody Guthrie, por exemplo. Com isso, avesso ao sincronismo e modismos de 1967, as canções não apontam para o futuro (por mais que preconize o rock californiano dos anos 1970), pois da temática das letras à sonoridade, "John Wesley Harding" se debruça sobre o passado. 

A foto da capa, que para entendimento de muitos, traz os músicos que o acompanham no LP, na verdade apresenta dois integrantes de um grupo de músicos de rua chamado Bauls of Bengal, que estavam hospedados na casa de Albert Grossman, empresário de Bob. O quarto personagem da imagem é Charlie Joy (e não Charlie McCoy), um carpinteiro local. 

Nada de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Blake ou Arthur Rimbaid, aqui Dylan busca inspiração no vernáculo bíblico — "there a family bible on the table" — como narra uma canção escrita por Willie Nelson 10 anos antes. A prosa ecumênica está borrifada nas letras, mas de uma maneira pagã, interpretada pelas visões de um viajante e não de um teórico, sem um sentido gospel ou religioso, pois padres e pistoleiros estão em equivalência na visão de Dylan. Em pleno ápice de psicodelia, o compositor traz à lembrança os Estados Unidos das imagens esboroadas pela ação do tempo, dos ambrótipos da segunda metade do século XIX, um ambiente rural, esfarelado, bucólico, violento e aventuresco. Há apenas duas canções de amor no disco, uma escolha que torna "John Wesley Harding" o menos românticos dos álbuns de Bob Dylan.     

Fonte: Uncut
Lado A

JOHN WESLEY HARDING

A história do fora-da-lei que batiza o disco apresenta um personagem criado por Dylan, mas inspirado numa figura real. Filho de um pregador, o verdadeiro John Wesley Hardin (sem o G) tornou-se um criminoso temido na segunda metade do século XIX, sendo condenado e preso pela morte de um xerife. No cárcere, estudou advocacia e teologia e, ao sair da prisão, 17 anos depois, ironicamente foi morto por um xerife em El Paso, no Texas. Subvertendo os fatos, Dylan transforma John Wesley Harding (com G) numa espécie de Robin Wood em busca de justiça social. A música dá o tom do disco: baixo, bateria, violão na linha de frente e harmônica como instrumento solista, assim como nos apresenta um Dylan mais cronista e empático a fabularia, mais um contador de histórias do que um poeta.

"John Wesley Harding era amigo dos pobres/ Viajava com um arma em cada mão/ Abriu muitas portas/ Mas nunca magoou um homem honesto". E completa que, apesar de procurado pelos seus supostos crimes, nunca foi encontrado. "A música tem um clima de terra sem cercas, de lama endurecida nas botas", disse Robert Shelton, um dos biógrafos de Dylan.   

AS I WENT OUT ONE MORNING

Aqui Dylan cita Tom Payne, filósofo inglês que influenciou os revolucionários americanos. Abolicionista, ele é um dos precursores do pensamento liberal. Payne, que certa vez proclamou ter sua mente como igreja, morreu em Nova York em 1809. A letra fala da animosidade com uma mulher, um letra enigmática que nos leva a várias interpretações. "Com a vivacidade do verso elisabetano" (como disse Gordon Mills na Rolling Stone em 1968), Dylan expressa a beleza de um conceito diferente de amor: em seu conhecimento, ele só pode recusar o mão desta "mais bela donzela", como ele deve. Esta donzela escravizada de olhos tristes, à procura de respostas, encontra apenas rejeição. Em seu pedido, ela se condena: "Vou aceitá-lo secretamente e juntos voaremos para o sul". Dylan a deixa seguir seu próprio caminho. Essa mulher que parece ter sofrido alguma espécie de violência ou está contrariada, quando amparada pelo protagonista, traz o próprio Tom Payne na última parte da letra como seu protetor. Alguns estudiosos sugerem que Dylan esteja falando de Joan Baez e da resistência de Dylan em acompanhá-la nas suas convicções filosóficas e políticas.   

I DREAMED I SAW ST. AUGUSTINE

Uma letra em que relata a presença de Santo Agostinho: "Sonhei que vi Santo Agostinho". Assim como "Gates of Eden", gravada três anos anos em "Bringin' It All Back Home" (1964), "I Dreamed I Saw St. Augustine" preconiza a incursão pela religiosidade, no caso das citadas aqui, de uma forma menos ecumênica, mais alegórica e poética. Essa profundidade na fé cristã seria ampliada nos anos 1980, principalmente em "Saved" (1980), um dos contestados álbuns da fase cristã de Dylan.    

ALL ALONG THE WATCHTOWER

É a canção mais rock and roll do disco. O riff do violão, a batida circular da bateria, a harmônica estridente (quase fora do tom) — e uma letra que faz referência direta a Isaías 21:5-9, que prevê a queda da Babilônia, mostra visíveis adaptações deste trecho.    

"Oh Deus, sobre a torre de vigia estou de pé durante o dia/ E estou no meu posto de vigilância durante toda a noite", está escrito no livro de Isaías. "Ao longo da torre de vigia/ Príncipes guardavam a paisagem". Ou "Comam e bebam! Levantem-se ó príncipes" que inspira Dylan a escrever "Os homens de negócio bebem o meu vinho". O compositor traz um sentido mundano ao texto, ampliando o teor apocalíptico da mensagem, o que também empresta uma atemporalidade ao que é dito. A versão de Jimi Hendrix para "All Along the Watchtower" fez tanto sucesso, que muitos ainda se surpreendem ao saber que a música não foi escrita pelo guitarrista. O próprio Dylan a considera como uma das melhores versões feitas para uma de suas canções.       

THE BALLAD OF FRANKIE LEE AND JUDAS PRIEST

Essa é a música que batizou o grupo de metal Judas Priest. De acordo com o primeiro vocalista da banda, Al Atkins, o nome foi sugerido pelo baixista Bruno Stapenhill, que fez parte do grupo entre 1969 e 1970. Ao estilo balada folclórica, é a mais longa faixa do álbum, uma parábola sobre a amizade entre o Padre Judas e Frankie Lee, com direito a mensagem final no último verso:

"A moral desta canção é que nunca se deve estar onde não se pertence/ Assim, quando vires teu vizinho a carregar alguma coisa/ Ajude-o com o farde dele/ E não andes por aí a confundir o paraíso com a casa do outro lado da estrada".  

Ele também usa a expressão midnight creep, um termo costumeiramente usado pelos bluesmen norte-americanos, que pode ser interpretado como "ir à caça".    

DRIFTER'S SCAPE

A eterna luta do bem contra o mal. Mas será que as posições não estão invertidas? Um vagabundo prestes a ser condenado por algum tipo de crime é salvo por um raio que destroça o prédio do tribunal, em pleno julgamento (enquanto a multidão do lado de fora se ajoelha e reza). É uma da melhores canções do disco, fechando o Lado A apenas com voz, violão, harmônica, bateria e uma só voz. Para quem acompanha Ken Parker, herói das HQs criado por Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, essa poderia sido a trilha-sonora da fuga de Ken quando estava prestes a ser enforcado por um crime que não cometeu em "A Balada de Pat O'shane". Basta trocar o raio por Pat, sua salvadora.  

Fonte: Music Connection Magazine
Lado B

DEAR LANDLORD

Ray Charles poderia ter gravado "Dear Landlord", abrindo o Lado B com o piano de Dylan, acompanhado apenas pelo baixo e bateria, sem violão ou harmônica. O minimalismo do arranjo amplia o recado direto ao empresário de Bob na época, detentor de uma natureza dominadora, possível alvo do mensageiro. Soa como súplica, quase uma oração, um pedido de pausa após tanta movimentação:

"Caro senhorio/ Por favor não rejeito o meu caso/ Não estou prestes a discutir/ Não estou prestes a me mudar para outro lugar". Mas Dylan se mudou, pois pouco tempo depois o cantor entrou num imbróglio financeiro com Albert Grossman, rompendo os laços com o empresário que foi um dos seus guardiões nos anos 1960.         

I AM LONESOME HOBO

"Sou um vagabundo solitário/ Sem família nem amigos/ Onde a vida de outro homem podia começar/ É onde termina a minha".  Dylan se colocando no papel de andarilho vagabundo, um de seus personagens favoritos e mais utilizados.  Um música sem refrão, que abre espaço para a harmônica brilhar. É como se o Drifter da última faixa do Lado A, relembrasse seus crimes antes de cair fora estrada adentro.   

I PITTY POOR IMMIGRANT

Baseada num canção escocesa, "Tramps and Hawkers". Novamente a Bíblia é fonte de inspiração, só que aqui é o livro de Levítico, capítulo 26. O imigrante da letra é exposto pelos dois vieses, pelas suas conquistas e realizações, mas principalmente pelo lado nefasto do progresso, muitas vezes afeito a mentiras e a violência. É quase um resumo da conquista do Oeste pelo olhos de um derrotado, ou por alguém que consegue visualizar a dilapidação sem escrúpulos:      

"Lastimo o pobre imigrante/ Que pisa através da lama/ Que enche a boca de riso/ E constrói sua cidade com sangue/ Cujo sonhos ao final/ Se estilhaçam como vidro/ Lastimo o pobre imigrante/ Quando ele está feliz".        

THE WICKED MESSENGER

O mensageiro malvado: "Se não puder trazer boas novas/ Então não traga nenhuma". Possivelmente inspirada em Provérbios 13:17: "Um mensageiro perverso faz cair o mal/ Mas o embaixador fiel traz a saúde", a versão do Faces levou "Wicked Messenger" para outra direção, direto para os braços do rock and roll. Possivelmente ele esteja falando do poeta como detentor da verdade, doa a quem doer.

DOWN ALONG THE COVE

Primeira das únicas faixas românticas do álbum, "Down Along the Cove" busca no blues a malandragem e a moldura de um encontro entre um homem e uma mulher. Ao longo da enseada, esse casal vive o amor, onde, enquanto ele descortina o seu tesouro, ela o agradece por ser seu homem. Há uma guitarra base, a única do disco (não encontrei referência de quem a toca, possivelmente seja Charlie Daniels), além do pedal steel de Pete Drake.  

I'LL YOUR BABY TONIGHT

O compasso valseado e o pedal steel de Pette Drake nos conduzem direto para o berço da autêntica country music. O encontro romântico prossegue, agora eles não estão na enseada, mas sim num quarto. Ele pede a sua amada par que feche os olhos, pois ela vai ser o seu amor, nem que seja apenas por essa noite. Pede para que ela apague a luz, pois uma lua gigante vai brilhar como uma colher de prata. Ele reforça: pede para que ela tire os sapatos, aproxime àquela garrafa de bebida junto a eles, pois eles vão ter uma noite juntos. Agora sim, sejam bem vindos ao céu azulado de Nashville.     

Ouça "John Wesley Harding"

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