The Piper at the Gates of Dawn, o início de tudo para o Pink Floyd

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| Por Márcio Grings |

Os mais de 100 decibéis nos alto-falantes do UFO, casa de espetáculo londrina onde o Pink Floyd embrionário se apresentou nos seus primeiros dias, potencializado pelo show de luzes vigente no palco, transformaram a banda numa das grandes atrações daquele final de 1966, início de 1967. Estamos falando do ápice da psicodelia e, "The Piper at the Gates of Dawn", álbum de estreia do Floyd, gravado no mesmo Abbey Road Studios — e durante o mesmo espaço de tempo — em que os Beatles conceberam "Sgt Peppers", não coincidentemente se tornaram obras que ampliaram os horizontes da música pop. Assim, esse movimento sincrônico mudaria o rock para sempre.  

Veja a live no Pitadas do Sal. 

"The Piper at the Gates Dawn" é o pulo do gato do Pink Floyd, o álbum que materializa o pensamento de seu líder — e principal criador até então —, Syd Barrett. 

Roger Waters, Richard Wright e Nick Mason, naquele gênese, não passavam de coadjuvantes. Letrista, compositor, guitarrista e vocalista, Syd era o maluco que pegava pesado nas drogas, o leitor voraz que trazia os livros para a sua música, ex-estudante de artes, o responsável por materializar a estética e a plástica do Pink Floyd, sendo ele quem deu nome a banda e liderou o quarteto na gravação do primeiro álbum. Syd, principal vetor, o homem que colocou o Floyd no mapa, numa época em que merecidamente alcançou o status de ser um dos mais inventivos músicos do cenário britânico.

Impulsionado por músicas como “Arnold Layne”, que não está em "The Piper at the Gates Dawn", mas foi o single que antecipou a chegada do álbum, Syd bemolizou a estética do rock, assim como sua poética revolucionou e inspirou centenas de artistas. E como um Arthur Rimbaud  do rock, criou uma nova linguagem musical e um espectro imutável em suas visões. 

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"O assombro do mundo, a beleza e força, as formas das coisas, suas luzes coloridas e sombras, tudo isso eu vi. Procure também por tudo isso enquanto a vida", diz o escritor Denys Watkins-Pitchford em um dos trechos de "The Little Grey Men" (1942), obra literária com importante influência na curta carreira de Syd. A história é situada no interior da Inglaterra, e apresenta as aventuras de quatro gnomos vistos como os últimos de sua raça. Ao mesmo tempo, apresenta a vida no campo durante a passagem das estações. Produzido por Norman Smith, engenheiro de som das primeiras gravações dos Beatles, "The Piper at the Gates of Dawn" teve ainda seu título extraído de um capítulo de outro livro infantil, "O Vento nos Salgueiros", de Keneth Graham, publicado em 1908. A história traz quatro personagens antropomorfos — com aspecto idêntico ao do ser humano —, numa Inglaterra bucólica, onde estão presentes valores como misticismo e a camaradagem.  

Filho de um médico, Dr. Arthur Barret, Syd herdou do pai o amor pelas artes, numa casa onde a música sempre esteve presente no ambiente familiar. Seu pai também desenhava e pintava. Como muitos jovens de seu tempo, Syd curtiu a música de Elvis, mas amadureceu com Booker T & The MG's e Bob Dylan, instrumentista, aprimorou a técnica na guitarra com um amigo chamado David Gilmour. Leitor voraz, também mergulhou nos escritores beats do outro lado do Atlântico, sendo um leitor dos poetas Gregory Corso e Allen Ginsberg, além de se declarar fã de Jack Kerouac e da Bíblia de geração beat, On The Road. Por esta ligação, na faculdade não protestou quando os colegas o chamavam de "Syd-the-beat". Ainda em Cambridge, no verão de 1963 formou sua primeira banda de blues, mas em 1964/65, quando se mudou para Londres, começou a usar LSD, a droga da moda (além de usar toneladas de maconha e haxixe), mesmo ano em que se juntou a Roger, Rick e Nick, naquilo que se transformaria no Pink Floyd. E, foi em 1966, num curto espaço de tempo, que Syd construiu praticamente todo o seu espólio musical, material que está dividido entre os dois primeiros LPs do Pink Floyd e seus três LPs solo.   

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Lançado em 5 de agosto de 1967, as canções de "The Piper at the Gates of Dawn" tem um certo ar de inocência; evocações da infância; letras ligadas à memória britânica dos contos de fada; de Hobbits, elfos, anões, Pan e o espírito da floresta despertado pelo flautista no amanhecer; de Lewis Carroll; de Flash Gordon. A guitarra de Syd Barrett cria bipes, guinchos, sons de insetos, gritos produzidos pelo deslizar do isqueiro Zippo utilizado como slide.     

Mas... comecemos pelo single que antecipou o álbum:    

ARNOLD LAYNE

Lançado em 11 de março de 1967, "Arnold Layne" é suja, obscena, indecente, imoral, inteligente e irônica. Temos aqui uma fuga nas letras comuns de amor. O poeta Pete Brown, letrista do Cream, a considera um marco na indústria pop:

“Puta que pariu! Era a primeira música autenticamente inglesa sobre o modo de vida inglês e com uma tremenda letra. Certamente, abriu portas e tornou possíveis coisas impensáveis até aquela época”, disse o colaborador do Cream. 

"Arnold Layne" tornou possível coisas impensáveis, colocou a banda no programa de TV Top of the Pops,  numa letra que fala de um antigo costume dos  homens ingleses de se vestirem de mulher. A música é inspirada numa história verídica do grupo nos tempos de Cambridge, cidade localizada a pouco menos de 80 quilômetros de Londres, e berço de três membros do Pink Floyd: Syd Barrett, Roger Waters e David Gilmour. “Tanto a minha mãe com a mãe de Syd tinham estudantes como hóspedes porque existia uma faculdade de meninas lá perto”, disse Waters. “Por causa disso, constantemente, havia muitas calcinhas e sutiãs nos nossos varais. Arnold, seja lá quem for, roubava algumas peças do varal”.

“Eu estava em Cambridge quando comecei a escrever essa música. Peguei a ideia de Roger, porque ele tinha um varal enorme no quintal da sua casa. Então, pensei que Arnold deveria ter aquele hobby e a música surgiu daí. Arnold Layne simplesmente gostava de vestir roupas de mulher. Muitas pessoas fazem isso, então vamos encarar os fatos”, disse Barrett em uma entrevista na época.

A música colocou o Pink Floyd no top 20 da parada britânica. “Pode parecer um tema estranho, mas isso de deve ao fato dos letristas [na época] serem muito conservadores. Não há nada de doentio ou incrível nisso e a música representa uma mudança nas intermináveis letras de amor”, disse David Paul, do Morning Star, logo após a música figurar no ranking das paradas de sucesso.

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"The Piper at the Gates of Down"

Lado A

ASTRONOMY DOMINÉ

Comunicação interestelar? Um pedido de socorro vindo em código Morse? Guitarras exasperadas, tons hiperativos, dinâmicas que alternam as climáticas, breques de som e logo um ar dos filmes de terror quando a banda desaparece. Essa dominação da astronomia, uma viagem intergaláctica pelos planetas, repleta de cores e texturas é pura viagem de ácido. Syd buscou informações e inspirações no "Time Atlas of the Planets". É uma música tão forte, que até mesmo David Gilmour a incluiu no repertório de seus shows no século seguinte, mesmo que ele não tenha relação alguma com o tema, mas certamente pode ser considerada uma homenagem ao seu amigo de Cambridge. A banda brilha num todo e abre o álbum de uma forma triunfante.   

LUCIFER SAM

O gato de Syd batizou "Lucifer Sam". O refrão a lá Beatles, bordões de blues, um solo na escola de Dick Dale. Um par de maracas mixadas acima do volume normal sacode a música. O trabalho de guitarras é louvável — gravações invertidas, sobreposições, efeitos, é o Pink Floyd Sound em seus primeiros dias.    

MATILDA MOTHER

Com vocal principal de Rick Wright e Syd Barrett,  uma criança à beira de adormecer, desesperada para ouvir o fim da história. Traz uma citação explícita a Hilaire Belloc no livro "Cantionary Tales": "que contava mentiras e morreu na fogueira". Outra canção que lembra o clima vocal dos Beatles, campos harmônicos que colam no orientalismos e o teclado ora está na linha de frente, ora faz camadas que brincam de se esconder nos buracos.     

FLAMING

Começa com o ulular de almas penadas e o grito de socorro de um pesadelo. Uma canção fabulária, violões, farfisa e uma leve lembrança de "Not to touch the Earth" (teclados), que o Doors gravaria um ano depois, em 1968. Sons de cuco e sinos de bicicleta. Uma percussão fora da música, um piano maluco, uma guitarra aleatória, cada um vai para um lado, mas todos convergem para um caminho em comum.      

POW R. TOC H.

Uma das minhas preferidas. O clima cinzento é ampliado pelo crocitar de corvos (emulados por vocais tétricos como se fosse uma tribo indígena com tacapes em punho), vozes, piano jazzy limpo e bateria abafada. Nick Mason é um dos destaques com sua bateria, assim como o caos instrumental dos segundos finais nos leva a desconstrução da música pop. Se o purgatório existe, e tem uma trilha-sonora, é uma canção desse naipe que deve tocar por lá.     

TAKE UP THY STETHOSCOPE AND WALK

Tenho certeza que o Buffalo Springfield buscou inspiração no riff de bateria de "Take Up Thy Stethoscope and Walk" para o início de "Good Time Boy" do álbum "Buffalo Sprigfield Again" (1967), lançado três meses depois. A única música escrita por Roger Waters (e primeiro trecho de vocal cantado por ele) tem um baixo hipnótico e arrojadas mudanças de andamento (novamente o teclado me traz a lembrança dos Doors). É Roger compondo no estilo de Syd, claramente imitando-o no esquema "follow the leader".  

Lado B

INTERSTELLAR OVERDRIVE

Baseada numa progressão de acordes de "My Little Red Book" do Love,  é um trabalho conjunto da banda, com Syd  no seu ápice ao estilo anti-guitarrista. A guitarra cacareja, o teclado sombreia tudo e vira qualquer coisa. Novamente temos mudanças de andamento, cruzamentos instrumentais arrojados. O recado do rock progressivo, do punk e do hard rock já de declara por aqui. Em uma parte específica, o riff do baixo de Roger Waters já antecipa o clima de "Let There Be More Light", faixa de abertura de "A Sacerful of Secrets" (1969), segundo disco do Pink Floyd.   

THE GNOME

"Gnome" vem colada a faixa anterior, numa música que conta histórias de Gnomos que comem, dormem, bebem vinho num encontro festivo. Seguramente inspirada em Tokien. Clima onírico, com violão na linha de frente, o que também antecipa o modus operandi dos discos solo de Syd. É o único momento de baixa do álbum, mas funciona muito bem no espectro do álbum e no contexto geral dos acontecimentos.   

CHAPTER 24

Baseada no Capítulo 24 do I-Ching, e a maioria das palavras vieram diretamente do texto. Já que John Lennon havia aberto essa janela em "Tomorrow Never Knows", Syd também pegou carona nessa onda. Só as vozes, se fosse um tema à capella, já fariam de "Chapter 24" uma bela música. 

THE SCARECROW

O futuro exílio de Syd Barrett é antecipado em "The Scarecrow".  

"O espantalho preto e verde/ Como todo mundo sabe/ Mantém um pássaro no seu chapéu/ E palha por todo lado/ Ele não liga/ Ele está num campo onde a cevada cresce/ Sua cabeça não funfa, seus braços não se movem/  Exceto quando o vento sopra/ E ratos correm pelo chão/ Ele está num campo onde o milho cresce/ O espantalho preto e verde é mais triste do que eu". 

BIKE

"Bike" tem um tom de fábula, onde temos um camundongo chamado Gerald, uma bicicleta com campainha para circular pela cidade num passeio idílico, um ala cheia de melodias e um alquimista que gira um boneco de corda capaz de tocar todos os tons. É uma música que simboliza o espírito criativo e "infantil/ ingênuo" de Syd Barrett. A coda presciente de um mecanismo de relógio já antecipava "The Dark Side of the Moon".

Ouça.  

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