The Beatles e o lançamento de "Revolver", em versão expandida e remixada

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Por Márcio Grings

Pra começo de conversa: "Revolver" é um dos meus três álbum favoritos dos Beatles. Dentro da revolução comportamental, estética e musical promovida por John, Paul, George e Ringo, comecemos pela capa: é a primeira do grupo a não trazer uma foto posada, mas sim um desenho com uma colagem de fotos feitas por Klaus Voorman, amigo alemão de Hamburgo, e futuro integrante de bandas de apoio de John e George. É o rock ganhando  conceito de arte, um tratado artístico que começa pela embalagem do pacote, e que seria profundamente ampliado no LP seguinte. Em "Revolver", musicalmente, os Beatles não mais se preocupavam em reproduzir o que compunham no palco, eles querem explorar o estúdio como ambiente criativo e usufruir de todas as suas possibilidades. 

A palheta de cores de "Revolver" é a mais diversa até então: música indiana, rock, psicodelia, experimentalismos, tanta coisa... e mesmo assim falamos de um álbum acessível às massas. Num contexto de álbum, é um disco perfeito, sem fillers (faixas descartáveis) e só por um trabalho deste nível, qualquer banda teria seu lugar garantido na história. No sentido democrático, minhas três faixas preferidas (uma tarefa difícil) são: "Got to Get Into My Life" (Paul McCartney), "Tomorrow Never Knows" (John Lennon) e "I Want to Tell You" (George Harrison). E, claro — até a zoação de "Yellow Submarine" funciona na composição metabólica da obra. Mas como não falar de "Eleanor Rigby", uma peça sinfônica num álbum pop; uma balada matadora como "Here, There and Everywhere"; um lado A que começa com uma música como "Taxman; um lado B que traz um senhor rock and roll como "Good Day Sunshine"; além de várias joias espalhadas nessa arca, músicas como "I’m Only Sleeping", "Love You To", "She Said She Said", "And Your Bird Can Sing", "For No One" ou "Doctor Robert", que sempre imaginei ouvir ao vivo.  

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Sobre a edição especial de "Revolver" — Super DeLuxe [5CDs (ou 4 vinis) + um livro de 100 páginas | remixagens e takes alternativos], só nos resta celebrar essa joia perdida (ou guardada a sete chaves) que foi revelada na última sexta-feira (28). Dos 5 CDs, um vem com novo mix, outro ganha versão em mono, e os outros 3 CDs trazem tomadas alternativas das gravações, o que nos permite mais uma vez uma imersão pelo processo criativo dos Beatles, ouvir eles e George Martin conversando no estúdio e debatendo as possibilidades de cada composição. Entre os destaques, obviamente é inevitável falarmos das duas demos com John Lennon cantando "Yellow Submarine"; a versão de "Got to Get Into My Life" com uma guitarra fuzz no lugar dos metais e com a voz de apoio de George em destaque; além da demo de "She Said She Said", com John ao violão. No cômpito geral, tudo o que encontramos nessa edição especial de "Revolver" é pura delícia. O disco original é o único revólver que eu tenho na minha prateleira, uma arma potente que credencia os Beatles com justiça entre as maiores, pra não dizer a maior banda de todos os tempos. 

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TAXMAN

Henry David Thoreau, autor de "Desobediência Civil", primeiro manifesto do anarquismo mundial, escreveu um livro quando foi preso por sonegação de impostos. "Sob um governo que aprisiona qualquer um injustamente o verdadeiro lugar para um homem justo é também uma prisão." Sardônico, Thoreau não media as palavras quando, em 1849, explicava as razões da sua decisão de não aceitar ser um financiador do exército dos EUA em guerra com o México. Nos Beatles, George, — o menos materialista do grupo, algo que se ampliaria justamente nessa curva do tempo —, escreveria uma canção/protesto contra o pagamento de imposto ao governo britânico. Em "Taxman", ele inclusive cita o nome do Primeiro Ministro inglês à época, James Harold Wilson, e se coloca na posição do cobrador de impostos. A letra é repleta de ironia: "Se você dirigir um carro/ Cobrarei pela rua/ Se você tentar sentar/ Cobrarei pelo seu assento/ Se você ficar com frio/ Cobrarei pelo calor/ Se você fizer um passeio/ Cobrarei pelos seus passos". Numa letra em que John colaborou, mas não foi creditado por George (o que gerou uma mágoa entre os amigos), e num solo de guitarra em que Paul está no lugar de George, mesmo assim, a primeira faixa de Harrison a abrir um álbum dos Beatles é um avanço importante no seu status como compositor — e mais do que isso — é um pontapé na porta! Se precisámos de um início rumoroso e fora da curva, o álbum começa com os dentes cerrados. Há ainda o primeiro som de alguém tossindo na música pop (bem antes de Sweet Leaf, do Black Sabbath)   

ELEANOR RIGBY 

Uma peça sinfônica com ares renascentistas (quatro violinos, duas violas e dois cellos). Jane Asher, namorada de Paul na época,  tinha acabado de apresentar Vivaldi a ele. A letra soturna de "Eleanor Rigby" evoca o passado, mas é um passo à frente na forma de uma banda orientada pelo rock and roll expor seu ponto de vista numa canção. A letra também traz antiguidade, como uma remontagem teatral, as cenas são descritas visualmente e os personagens comovem o ouvinte: uma mulher solitária junta restos de arroz arroz de um casamento; um padre que costura uma meia furada e escreve um sermão que ninguém (ou poucos) irão ler. Ela é tão significativa como peça da obra de Paul (apesar de ter sido escrito com sugestões dos outros Beatles), que até hoje é frequentadora assídua do setlist dos shows de McCartney. 

I'M ONLY SLEEPING

Depois de George e Paul, chega a vez de John nos apresentar sua primeira canção. Uma elegia aos não madrugadores, a quem se arrasta para acordar e que procrastina o ímpeto para sair da cama. Traz um solo invertido de George (9h de estúdio teriam sido consumidas apenas nessa passagem), o primeiro processo dessa linhagem no álbum, e que será amplificado na faixa final do Lado B. "I'm Only Sleeping" está alinhada à psicodelia vigente naquele período, com o jogo de vozes dos Beatles funcionando a todo o vapor. 

LOVE YOU TO

Se em "Norwegian Wood" o citar foi adicionado como uma alegoria excêntrica, "Love You To" foi pensada e composta com o instrumento indiano como peça central. Além do citar, uma tabla tocada pelo músico indiano (residente em Londres) Anil Bhagwat reforça o orientalismo da composição de George Harrison. Os outtakes lançados na versão especial dão uma perspectiva de como ela foi construída numa linha melódica minimalista, tântrica e monocromática, escolhas que ampliam essa ligação com a música indiana e com Ravi Shankar, mestre de Harrison nesse universo.    

HERE, THERE AND EVERYWHERE

Inspirada inicialmente em audições de "Pet Sounds" dos Beach Boys, o resultado dessa intenção resulta numa balada tipicamente mccartniana. É romântica, pop e consequentemente radiofônica, mas quase bate no blues, provavelmente pelo riff da guitarra limpinha, sem nenhum efeito. Temos o coro de vozes de apoio com John e George, e uma bateria discreta com breves ataques e quase toda sustentada apenas no chipô. Apesar Muitos a consideram a melhor canção de amor dos Beatles, eu a considero um dos momentos menos interessantes do disco. .  

YELLOW SUBMARINE

Sempre vi "Yellow Submarine" como uma brincadeira que deu certo. Uma composição de Lennon/ McCartney (mais de McCartney, pelo que a literatura nos diz), feita sob medida para Ringo cantar (e ele a canta bem), com um coro poderoso dos rapazes. A canção que ainda inspiraria um filme de animação. As duas versões lançadas na edição especial de "Revolver" revelam uma naked version com Lennon cantando, possibilidade de entendermos de onde "Yellow Submarine" veio e pra onde ela foi. 

SHE SAID, SHE SAID

Uma das guitarras mais marcantes do álbum, numa música que nasceu como ideia numa festa em San Diego (Cal), durante uma conversa entre Peter Fonda, George Harrison e John Lennon, onde Fonda disse a fatídica frase que inspirou Lennon: "I know what it's like to be dead" (Eu sei como é estar morto). Uma das melhores canções de John Lennon nos Beatles, uma letra que permite múltiplas interpretações (o que muito me agrada), com um som de bateria e uma ginga impressionante de Ringo. A forma como as vozes foram mixadas, com Lennon sobrepondo frases e camadas — é um retrato desse novo mundo de possibilidades que os Beatles encontraram no estúdio. 

GGOD DAY SUNSHINE

O Lado B Abre com mais uma canção de Paul. O riff de baixo no início (reforçado pelo piano) e o refrão cantado logo no início são marcas de "Good Day Sunshine", uma canção que vibra muito bem nesse novo início. Destaque para George Martin e seu piano honky tonk. Influenciada talvez por "Daydream", do grupo norte-americano Lovin' Spooful, sucesso nas rádios inglesas durante a gravação de "Revolver", "Good Day Sunshine" faz a música dos Spoonful parecer letárgica. 

AND YOU BIRD CAN SING

O cruzamento das guitarras de John e George é o grande destaque de "And You Bird Can Sing", além da típica harmonização das vozes tipicamente beatle. John Lennon a detestava, considerando-a um dos filler do álbum. Eu acho ela divertidíssima, tanto pelo clima das cordas quanto pelas vocais. Paul ainda dá de letra no final com uma demonstração de sua habilidade como baixista nos segundos finais.   

FOR NO ONE

Com um solo de trompa e um clavicórdio, o tom barroco é uma das marcas de "For No One", que aborda o tema do final de uma relacionamento com extrema sensibilidade:

"Ela desperta/ Se maquia/ Ela não tem nenhuma pressa/ E já não precisa mais de você/ E em seus olhos você não vê absolutamente nada/ Nenhum sinal de amor por trás das lágrimas/ Choradas por ninguém/ Um amor que deveria ter durado anos".  

É a grande balada triste do álbum.  

DOCTOR ROBERT

Essa é uma daquelas músicas que eu certamente gostaria de poder ouvir numa versão ao vivo. É uma antecipação do clima relaxado do rock dos anos 1970. Lennon inspirado, a voz pontual de Paul sombreando algumas partes ao estilo dos clássicos da música negra. A letra homenageia o Dr. Robert Freymann, um médico de Nova Iorque que prescrevia remédios alucinógenos para seus clientes.     

I WANT TO TELL YOU

Mais uma de George, e seu melhor momento no álbum. Anos depois, essa seria a música escolhida para abrir o fabuloso "Concert for George" (2002), com Jeff Lynne no vocal principal. Melhor som de bateria de Ringo no disco. Também gosto muito da linha de baixo de Paul, reta, bem timbrada e eficiente em levar a música numa pulsação firme. Bem no final, as vozes dão um recado orientalista nas bemolizações. 

GOT TO GET INTO MY LIFE

O que, à primeira vista, parece uma declaração de amor a uma garota, na verdade é uma homenagem a paixão de Paul pela maconha. Os metais (três trompetes e dois sax), quando ouvi pela primeira vez, aos 14/15 anos, me lembravam uma vinheta musical dos desenhos do Scooby Doo. Até hoje quando ouço "Got to Get Into My Life" penso nela como trilha-sonora de animação da Hanna-Barbera. Na verdade, é a música soul que inspirou Paul a compô-la, mais propriamente a influência da Mottown. É um dos grandes êxitos do disco. Eu fico pensando o que Paul sentiu ao ouvir a versão de "Got to Get into My Life" com Ella Fitzgerald, Supremes, Thelma Houston, The Beat Bugs e Lou Ralws? Sim, ele chegou onde queria chegar com essa música.                      

TOMORROW NEVER KNOWS

Eu sempre penso: "Imagina pra quem ouviu isso em 1966?". Se Harrison é o grande orientalista dos Beatles, John Lennon é o responsável pela canção mais transgressora e enigmática desse quilate em "Revolver". A letra e o espírito do tema trazem elementos no Livro Tibetano dos Mortos, num dos temas em que os Beatles apontam a direção de como o rock pode — e deve — se comportar à partir de então. "Desligue sua mente, relaxe e flutue. Isso não é morrer". Lennon disse ao engenheiro de som Geoff Emerick que queria que sua voz soasse como se fosse o Dalai Lama pregando no alto de uma montanha. Os loops invertidos parecem pássaros se debatendo em fuga. Esses loops, uma ideia de McCartney, vieram após audições do compositor alemão Karlheinz Stockhausen. Aqui há também há uma tumbura e um citar, instrumentos indianos tocados por George, obviamente. Primeiro tema composta nas sessões de "Revolver", é uma das músicas que forneceu a base para a inventividade dos Beatles, os levando a compor temas como "A Day in the Life", música que encerra "Sgt. Peppers". Para quem ouve na sequência a versão em streaming desse "Revolver 2022", a sensação é sensacional, pois o take 1 de "Tomorrow Never Knows" que está no disco 2, de outtakes, vem colada, como se fossem um só. Não pude deixar de abrir um sorriso quando ouvi pela primeira vez. E ainda temos uma terceira versão em mono logo depois.      

Veja a live sobre a edição especial de "Revolver" no Pitadas do Sal (c/ Gilvan Moura, Romero Carvalho, Alexandre Carvalho, Sal Jr e o autor desta postagem.  

Parte 1. 
Parte 2. 
Parte 3

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