Salve, Corto Maltese!

| Divulgação Trem Fantasma |

| Por Márcio Grings |

"Quando quero relaxar, leio um ensaio de Engels, quando quero ler algo sério, leio Corto Maltese", certa vez disse o italiano Umberto Eco. Surgido em 1967, Corto Maltese se tornou um dos personagens mais amados dos quadrinhos mundiais. O criador do mito, Hugo Pratt, nos deixou em 1995, aos 68 anos. Pouco antes de sua morte, o quadrinista italiano disse ser favorável que as aventuras de Corto fossem escritas e desenhadas por outros autores. Demorou, mas vinte anos após a morte de Pratt, em 2015, o roteirista Juan Díaz Canales e o ilustrador Rubén Pellejero — ambos espanhóis — tocam (e não desafinam) essa difícil empreitada. E, sete anos depois da edição europeia, a Editora Trem Fantasma finalmente disponibiliza a versão nacional de uma das publicações mais esperadas dos últimos tempos. 

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Ainda falando sobre lendas, se o bluesman norte-americano Robert Johnson escreveu só 29 canções, Hugo Pratt nos deixou apenas 29 aventuras em HQs protagonizadas por Corto Maltese (a última escrita em 1992), o necessário para outorgar um imenso séquito de fãs, grande parte deles sedentos pelo retorno do bucaneiro europeu. Para esse tão aguardado trigésimo episódio, "Sob o sol da meia-noite", os novos autores fazem jus à tradição e aos costumes do personagem. Lá está o homem libertário, anarquista e sardônico — o marinheiro mais amado dos quadrinhos materializa-se em sua velha forma, fidedigno ao preceitos de quem o forjou. Por exemplo: as ligações literárias sempre foram gatilhos e fios condutores nas tramas de Corto, um aventureiro obstinado em percorrer as mesmas trilhas amassadas pelas botas puídas de Joseph Conrad, Hermann Melville, Jack London e Robert Louis Stevenson. É fato — essa conexão continua sólida neste retorno protagonizado por Canales e Pellejero. Em "Sob o sol da meia-noite", Corso cruza com Waka Yamada, ex-prostituta japonesa afamada pela luta dos direitos das mulheres, além de ter o próprio London — uma aura onipresente na história —, o mesmo amigo Jack que lhe empresta um refúgio e lhe confidencia seus segredos e dilemas em cartas. Corre o ano de 1915, e o autor de "O Lobo do Mar" está na estrada rumo ao México, determinado a entrevistar o revolucionário Pancho Villa. No desencontro, Corso parte na direção contrária rumo a uma viagem repleta de perigos e ameaças. Para quem conhece Ken Parker, o anti-herói do faroeste spaghetti criado por Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo (que certamente beberam na fonte de Pratt), reconhecem na trama de "Sob o sol da meia-noite" as aventuras de Ken pelo Grande Norte, pois cá estão requintes gráficos e textuais que deliciosamente nos aproximam dessa memória.      

Da San Francisco dos aventureiros, ao Alaska dos exploradores e facínoras, "Sob o sol da meia-noite" é puro deleite, promovendo um resgate espiritual do universo criado por Hugo Pratt, que numa improvável inversão, pode sim apresentar Corto Maltese a uma nova geração de leitores e adoradores dos quadrinhos. E, ao nos deparamos com o epílogo do episódio, quando o marinheiro abdica de uma festa burguesa para vagabundear com um desconhecido ancião sem teto pelas ruas de Seattle, constatamos um dos traços mais sedutores da personalidade de Corto — sua atração pela mais desmedida aventura humana, prova de seu compromisso e irmandade com os vagabundos iluminados da literatura.   

Em tempo: o material clássico do personagem foi lançado no Brasil pelas editoras L&PM, Ediouro/Pixel Media e Autêntica/Nemo, porém, alguns álbuns ainda permanecem inéditos no país (alguma editora se habilita?)  


      

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