30 anos de "Good As I Been to You", de Bob Dylan

| Divulgação Sony |

| Por Márcio Grings |

Todos temos nossas obsessões. Bob Dylan não é diferente. Além de compositor e detentor de uma das obras mais significativas da canção popular internacional, Bob é um estudioso da canção popular. Quem o acompanhou na série de programas da rádio — que ele fez entre 2006 e 2009 pela XM Sirius —  sabe que no seu Theme Time Radio Hour até de Elis Regina ele falou, chamando-a inclusive pelo seu apelido: Pimentinha. Essa fixação do velho pelas histórias, pela literatura musical, uma espécie de compulsão em penetrar a alma de cada canção, resulta em várias coisas, entre elas está o seu último livro, "The Phylosophy of Modern Song", uma publicação em que ele relata — de uma forma muito pessoal — essa relação íntima dele com várias canções e artistas que tocaram seu coração, falando da experiência musical em primeira pessoa, compartilhando com o leitor visões de artista ambíguos como Elvis Costello, Frank Sinatra, Allman Brothers, The Who, Eagles, The Clash e até o mais anárquico e antigrupo dos Estados Unidos, os The Fuggs, entre tantos outros (são 66 músicas relatadas no livro). A publicação infelizmente ainda não foi lançada no Brasil, mas já o temos em PDFs da vida circulando entre os fãs mais vorazes. 

Outra das conhecidas obsessões dylanistas — essa mais recente (pelo menos em discos) — está na fixação por Frank Sinatra, algo que gerou três  álbuns, um deles triplo. Bem antes disso, quando, no final dos anos 1980, o judeu Dylan se declarou um cristão renascido, outros três álbuns encapsularam essa jornada ecumênica. Do mesmo modo, no início dos anos 1990, dois trabalhos acústicos renovaram a crença do músico no blues e no folk, uma busca assertiva em resgatar o passado como porta de entrada para o futuro de sua música. A partir daí, não haveriam mais tentativas de se ajustar às movimentações do tempo presente, de ceder aos modismos etc. Os discos que marcam esse F5 em sua carreira são "Good As I Been To You", que neste ano completa 30 anos e, seu sucessor, "Word Gone Wrong" (1993). Em plena explosão do rock de Seattle e de uma retorno do rock às paradas de sucesso nos já longínquos anos 1990, Dylan voltaria ao básico, só voz violão e harmônica, tocando uma pá de canções desconhecidas, relendo-as como um tipo de reconexão com suas maiores crenças como compositor, um workshop que certamente forneceria a confiança para seu retorno triunfal em "Time Out of Mind" (1997), disco que lhe renderia três prêmios Grammy e incensado por muitos como um dos mais vitoriosos de uma carreira repleta de láureas. 

Produzido por Debbie Gold (a única mulher a produzir um álbum de Bob Dylan), com Micajah Ryan (Guns N' Roses, Megadeth), na mesa de áudio, em "Good As I Been to You" Bob revisita diversas canções de domínio público, muitas delas das décadas de 1920/30 (e até antes desse período), temas que o músico aprendeu ou conheceu com várias pessoas que cruzaram no seu caminho, ou que ouviu em LPs antigos e shows, entre elas "Jim Jones", "Canadee-I-O", "Sittin' on the Top of the World", "Tomorrow Night", "Arthur McBridge" (uma canção irlandesa da década de 1840!), "Diamond Joe", "Froggie Went A Courtin'" e "Little Maggie", temas que já eram conhecidos em vozes de cantores/ artistas como Carter Family, Mick Slocum, Nic Jones, Mississippi Sheiks, Big Joe Williams, Tom Paley, Blind Boy Fuller, Lonnie Johnson, Elvis Presley, Paul Brady e Cisco Houston. Ainda há músicas escritas por Mississippi John Hurt (Frankie and Johnny), Stephen Foster (Hard Times, composição datada de 1854!), Blind Blake (You're Gonna Quit Me)  e Sam Goslow e Will Frosz (Tomorrow Night).  

Na época, o álbum não foi recebido com muito entusiasmo pela crítica. Muitos o viam como uma bengala, um álbum estepe, o tapa buracos enquanto novas canções autorais não surgiam. “É muito perverso”, disse David Wild na Rolling Stone, “que o maior compositor da era do rock tenha escolhido gravar um álbum inteiro de músicas de outras pessoas”. Convém lembrar que bastaria Dylan recorrer ao seu próprio espólio de canções descartadas para reaquecer o mercado, algo que já havia feito um ano anos com sua primeira trinca de Bootleg Series, esse sim um sucesso comercial naquele início de década. Alguns jornalista acharam sua atuação preguiçosa, pouco interessada, protocolar, sem trazer algo novo para essas versões. Outra queixa é que sua voz havia piorado, estava mais áspera, espinhenta, desgastada pela ação do tempo e soando ainda mais velha aos 51 anos, o que amplia a sensação de melancolia do álbum. Vale lembrar que no repertório de seus shows, com o Never Ending Tour, nesse mesmo período e ainda no final da década passada, Bob já pegara essa onda de revisitação de canções antigas, mas pouco ou quase nada das músicas tocadas na estrada estrariam no tracklist de "Good As I Been to You"

Ouça Good As I Been to You e as canções que inspiraram Dylan.    

Mas nada como o tempo para nos oferecer novos pontos de vista, um distanciamento muitas vezes necessário para compreendermos aquilo que muitos não compreenderam na época. "Good As I Been to You" é um disco sombrio, apocalíptico, mas nos oferece algo orgânico, humano. A voz do cantor está mais áspera sim, mas soa apropriada ao álbum, assim como seu violão de aço é muito bem tocado (vale lembrar que ele sempre foi um grande violonista tratando-se de folk music). As letras falam de amor, vingança, deportação, amantes em fuga, solidão, ecoam tempos difíceis, trazem sexo, violência  e até sátira social e política. 

O tempo realmente fez bem para "Good As I Been to You" e, afeiçoado a ele desde os anos 1990, ainda hoje o ouço com muito prazer, pois esse Dylan que ouvimos aqui é um Bob Dylan preambular de discos como "Love & Theft" (2001), "Modern Times" (2006), além do já citado "Time Out of Mind". Não deixe de ouvir com atenção faixas como "Frankie & Albert" (é um bom início e de cara já temos o tom do LP), "Jim Jones", "Hard Times", "Sittin' on the Top of the World" (a gaita de boca num contesto de blues está ótima) e "Tomorrow Night". No ano seguinte, "World Gone Wrong" reforçaria a crença de Bob nesse espectro de composições e no passado remoto da música pop como fonte de inspiração. 

Ouça "Good As I Been to You".          

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