Trilha-sonora: 30 anos de "Cães de Aluguel", de Quentin Tarantino

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| Por Márcio Grings |

Há 30 anos, "Cães de Aluguel" (1992), primeiro longa dirigido por Quentin Tarantino ganhava o mundo. Antes da explosão com "Pulp Fiction" (1994), "Reservoir Dogs" já trazia as digitais que o tornariam uma referência no cinema internacional dos últimos 30 anos. A violência coreografada e tratada com elementos poéticos (requinte pinçado de escolas como a de Sam Peckinpah); a tão exaltada narrativa não-linear (um dos desfechos já se dá na cena inicial); a ação focada no controle dramático, e não na ação em si; diálogos repletos de frases de efeito e citações; além de uma trilha-sonora onde Tarantino muitas vezes relembra — ou nos apresenta — canções antológicas, muitos delas esquecidas na linha do tempo da cultura pop. 

Veja a live sobre os 30 anos de "Reservoir Dogs" no Pitadas do Sal (c/ Sal e Luana Neres).

 

Em "Cães de Aluguel" os personagens se chamam Mr. White (Harvey Keitel), Mr. Brown (Tarantino), Mr. Blue (Edward Bunker), Mr. Orange (Tim Roth), Mr. Blonde (Michael Madsen) e Mr. Pink (Steve Buscemi), e são apresentados durante uma divertida discussão sobre "Like A Virgin" de Madonna, durante o café da manhã numa lanchonete. Eles ainda tem um papo filosófico sobre dar ou não dar gorjetas (onde a personalidade de cada um é desenhada). Apesar das diferenças, todos apreciam a voz de K-Billy (Steven Wright), um radialista que pontua diversas cenas (apenas em áudio) com breves comentários sobre ao temas que toca durante seu programa de rádio, o K-Billy’s Super Sounds Of The Seventies Weekend. A música escolhida para os créditos iniciais é "Little Green Bag", o grande hit do grupo holandês George Baker Selection. Nesse preâmbulo, uma espécie de videoclipe traz a trupe caminhando em câmera-lenta ao som da música. Em tradução livre, a letra é um jogo de palavras que amarra essa tomada:

"Dando um bico lá atrás, na pista, procurando por um punhado de dólares/ Preciso encontrar ou estou ralado/ Disfarçado o tempo todo/ Dando um bico lá atrás, na pista, vou fazer do meu jeito/ Espiando lá atrás. 

Esperando por algum tipo de felicidade/ Mas é só solidão que eu encontro/ Pulo para a esquerda, viro para a direita/ Olho para cima, olho para trás/ Procuro por algum tipo de felicidade/ Mas é só solidão que eu encontro". 

Se o diretor queria capturar à atenção do espectador, ele consegue de cara.

 

Na trama, os seis delinquentes são contratados para roubar uma joalheria por Eddie (Chris Penn) e Joe (Lawrence Tierney), todos desconhecidos entre si (por isso os codinomes), só que as coisas não saem como planejado. E o grupo desconfia que há um traidor entre eles. .

É óbvio que o momento mais impactante do filme é a cena da tortura de um policial em "Stuck in the Middle with You", dos Stealers Wheels, responsável por jogar luz não apenas em Michael Madsen e sua atuação, mas também no grupo escocês formado por Gerry Rafferty e Joe Egan. Mr. Blonde liga o rádio num galpão abandonado, já sintonizado na rádio certa, e K-Billy anuncia: 

"Joe Egan e Gerry Rafferty eram a dupla Stealers Wheel quando fizeram essa música ao estilo de Bob Dylan em abril de 1974 que chegou ao 5° lugar nas paradas. O som de K-Billy nos anos 1970 continua". E, numa tradução livre, a letra é propícia para a cena:   

"Bem, eu não sei por que vim parar aqui esta noite/ Eu tenho a sensação de que algo não correu bem/ Temo cair cair dessa cadeira/ E eu estou pensando como vou descer as malditas escadas. 

Palhaços à minha esquerda!/ Coringas à direita!/ Cá estou, preso no nesse rolo com você". 

A cena é terrível, pois o policial é torturado e uma de suas orelhas é arrancada. Tudo isso acontece num clima de diversão e picardia promovido pelo Senhor Blonde. 

      

Na trilha, ainda temos o grupo sueco Blue Swede (Hook on A Feeling), o southern soul de Joe Tex (I Gotcha), a banda norte-americana Bedlam (Magic Carpet Ride e Harvest Moon), Sandy Rogers (Fool for Love) e nos créditos finais Harry Nilsson (Coconut). 

A trilha-sonora lançada pela MCA inclui as falas de K-Billy, infelizmente não disponíveis na versão em streaming, possivelmente por alguma encrenca por direitos autorais. E essa narração fleumática, lacônica, monocromática, grave e nasalada, temos uma vinheta vocal que abre e fecha diversas cenas do filme. O grande barato da trilha é que ela n]ao está no filme apenas para apreciação alegórica das cenas ou dos espectadores — essa música está sendo ouvindo pelos personagens, ela faz parte integral da trama. A trilha também oferece um  contraponto a violência, da mesma forma que Stanley Kubrick fez em "Laranja Mecânica" (1971), onde um personagem dança, canta a saltita ao som de "Singin' in the Rain", isso enquanto violentamente tortura um casal e estupra a esposa durante uma invasão domiciliar. "Stuck in the Middle With You" traz um efeito semelhante, forjando um combo bastante perturbador.  

   

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