The Velvet Underground & Nico e o nascimento do art rock


Por Márcio Grings

Parece exagero, mas não é. Além dos Beatles, nenhuma banda na história do rock and roll teve maior influência sobre bandas mais jovens do que o Velvet Underground. Essa influência durou mais de três décadas, sendo responsável direto e indireto na construção artística de David Bowie, Roxy Music, Sex Pistols, U2, Joy Division, New Order, REM, Nirvana e, mais recentemente, The Strokes. O Velvet Underground lançou apenas quatro álbuns, mas esses quatro discos cobrem muitas facetas musicais e temáticas: rock and roll com status de arte, pronto para a experimentação, à procura de redenção, repleto de crueza, força literária, disposto a celebrar e cair da gandaia.

Veja a live dos 55 anos do álbum epônimo do The Velvet Underground & Nico

VU em sua primeira formação.

Lançado alguns meses antes de “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, no início de 1967, mas gravado quase um ano antes, The Velvet Underground & Nico, junto com ‘’Sgt. Pepper’, induziu o rock não só à vida adulta: é o gênese  do álbum conceitual. A capa do LP dos Beatles inovou nessa intenção, enquanto The Velvet Underground & Nico representava o lado pós-moderno, com a banana de Andy Warhol, arte figurante em qualquer lista das grandes capas de todos os tempos.

Por outro lado, se os Beatles levaram meses para gravar uma de suas obras-primas, Lou Reed (guitarrista, compositor e vocalista), John Cale (multi-instrumentista), Sterling Morrison (baixo e guitarra),  Maureen Tucker (baterista) e Nico (voz), precisaram de apenas US$ 1,5 mil dólares e um dia no estúdio, tudo pago por Andy Warhol, produtor do álbum? Quase isso...

VU and Nico

O disco traz uma combinação de ruído branco (sinal aleatório com igual intensidade em diferentes frequências), rock and roll clássico, um pouco de música negra numa versão pálida e influências folclóricas, um som difícil de ser categorizado. Muitas vezes afável aos ouvidos, outras tantas rumorosa e dissonante, invariavelmente perturbadora e até cacofônica, como na parte final, The Velvet Underground & Nico estavam à frente de seu tempo, e ainda hoje, quando ouvimos o disco, ele soa fresco e impressionante.   

Alguns podem argumentar o LP da banana não é um álbum conceitual, mas se levarmos em conta as letras de Lou Reeed, os detratores dessa visão caem por terra, pois é perceptível o fio condutor entre as histórias, como Lou Reed energizado pela literatura beat, ao estilo dos livros de William Burroughs como Junk”, “Naked Lunch” e “The Soft Machine”, com os personagens das suas histórias passeando irresponsáveis pela sedutora e perigosa cidade de Nova York.

Criador e criaturas. 

SUNDAY MORNING

Tudo começa com “Sunday Morning”, quando acordamos após a devassidão de uma noite de excessos, meio com medo de lembrar o que aconteceu nas últimas horas. E ao acordar desse pesadelo em plena manhã de domingo traz uma ‘lullaby’, uma espécie de ritmo ao estilo das canções de ninar, trilha sonora de uma manhã pardacenta e melancólica.

“Domingo de manhã e estou afundando”.

I ‘M WAITING FOR THE MAN

“Eu estou esperando o cara [o traficante], Vinte e seis dólares na mão”. "I'm Waiting for the Man", com sua batida pulsante pelas guitarras distorcidas de Tucker e Reed e Morrison, retrata a jornada de um morador de Manhattan, no Harlem, em busca de um pouco de heroína. Assim como William Burroughs fez em “Junkie”, livro de 1953, em que um dos percursores da literatura beat descreve a rotina de um viciado, Lou Reed faz o mesmo:

“ A primeira coisa que a gente aprende é que sempre tem que esperar”.

Como bom ladrão, 20 anos depois, Renato Russo da Legião Urbana roubou uma parte de “I’m Waiting for the Man” e enxertou em “Mais do mesmo”, do disco “Que país é este” (1987):

“Hey White boy, you chasin’ our Woman around?” (Ei, menino branco, está atrás das nossas minas?).

Se quatro meses depois, os Beatles diriam que tudo o que precisamos é de amor (All You Need is Love), Lou Reed avisa que só precisa de outra dose de heroína, sua musa em 1967.  

FEMME FATALE

A estreia de Nico no álbum como vocal líder, cantando como se fosse Morticia Adams com um garrote no pescoço, na visão de Andy, o que era absolutamente perfeito para o Velvet. Uma balada assassina, de uma mulher fatal que usa um pobre coitado e depois o descarta. Nico é a própria femme fatale, com seu sotaque europeu, gelado, os backings potencializando essa reverência à cantora.

VENUS AND FURS

Universo hedonista, pecaminoso, sadomasoquista, chicotes, botas de couro, é um dos grandes momentos do álbum e combina com a chancela de Andy Warhol e o universo libertário da Factory. Enquanto o galês John Cale toca um viola elétrica, Sterling Morrison repete a mesma linha de baixo de dois compassos e Maureen Tucker bate nos tons. Um dos melhores casamentos de rock e jazz modal já gravados. É disparado a minha preferida.

“Castigue-o, minha senhora / Para que seu coração seja curado”.

O título de “Venus and Furs” é inspirado num livro do escritor austríaco Leopold von Ritter-Masoch (1836-1895), sobrenome de onde se originou o termo “sadomasoquista”.      

RUN, RUN, RUN

Essa é mais uma que poderia ser trilha-sonora de uma adaptação de “Junkie” de Burroughs para o cinema. Toda a confusão em busca de drogas, fuga dos traficantes por dívidas não pagas e um cenário de caos e desilusão. O shuffle ao estilo Bo Diddley em "Run Run Run" foi novamente explorado em canções de personagens sem-teto como "Teenage Mary", "Seasick Sarah" e "Beardless Harry

“Os anjos todos gritaram quando ela ficou azul”, isso é uma clara descrição de uma quase over pelo consumo de heroína.

ALL TOMORROW’S PARTIES

Nico está de volta. A narrativa de uma menina sem roupas adequadas para circular nas festas descoladas doas anos 1960 é patética. O riff boogie-woogie do piano de Cale conduz faz a ambiência dessa garota festeira e vazia. A cena é desoladora:

“E que roupa a pobre menina vestirá nas festas do amanhã”. É um futuro sem perspectivas que encontramos nessa narrativa de Lou Reed.

HEROIN

Num ritmo acelerado e lento baseado num acorde da viola de Cale, o que parece ser um conto de advertência, um discurso pró-drogas; é apenas mais uma representação em primeira pessoa de uma cena, potencializado na poética de Lou Reed.  Usando elementos semelhantes a “Junky” de Burroughs e “Requiem for a Dream” de Hubert Selby Jr, o compositor muitas vezes doura a pílula do uso de entorpecentes com a poesia, mas não é o que acontece em “Heroin”

“Quando sinto o pico na minha veia, vou te contar, nada mais é a mesma coisa”.

Autodestrutivo, ele aponta para um caminho trágico:

“Heroína, seja a minha morte, minha esposa e minha vida”.

Barra pesada mesmo.

THERE SHE GOES AGAIN 

“There She Goes Again” rouba o riff de abertura de “Hitch Hike”, de Otis Redding, enquanto o narrador misógino decide chegar aos extremos com sua mulher infiel:

“É melhor você bater nela”.

De todo o modo, Lou nos oferece um pouco de esperança, apesar da personagem da letra estar na pior, parece que ela tem força para recomeçar e dar a volta por cima:

“Olha só, ela não tem lágrimas nos olhos, feito um passarinho, você sabe, ela vai voar”.

I’L L BE YOUR MIRROR

Nico está de volta e nos empresta um pouco de otimismo, num dos momentos mais vitoriosos e poéticos do álbum:

“Vou ser teu espelho, vou te refletir. Caso você não saiba quem é, vou ser o vento, a chuva e o pôr do sol, à luz a tua porta, para te mostrar que está em casa”.

BLACK ANGEL’S BLACK SONG

A representação do lado mais sombrio da psicodelia, narrativa e fraseado dylanista, mas sem a ginga e a proficiência de um Bob Dylan: é o pior momento do álbum, numa letra nonsense que também leva a lugar algum. É como se Lou Reed a tivesse escrito durante uma viagem de ácido.

EUROPEAN SONG

Um frenético festival de ruídos de uma mesa raspando no chão do estúdio e vidro quebrando, fecha o álbum. Soa como uma demo, uma canção inacabada. E o pior: ela tem quase oito minutos!   

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