Uma esquina que traz o mundo

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Por Márcio Grings

Em primeiro lugar, como gaúcho, preciso dizer que “Clube da Esquina”, o álbum que colocou Minas Gerais no mapa mundial da música pop, combina com meu Estado. Vou explicar essa vã tentativa de trazer o assado para a minha brasa: como estamos na ponta de baixo do mapa, praticamente isolados do resto do país, irmanados com Uruguai e a Argentina, aqui onde o frio e a distância do centro do país torna o gaúcho diferente e desigual em humores e situações, “Clube da Esquina” apresenta a sonoridade perfeita para se ouvir em dias de outono e inverno. Ele é um álbum que chama o frio. 

Veja a live no canal Pitadas do Sal sobre os 50 anos de "Clube da Esquina"

Eu me vejo em volta de uma fogueira, numa cabana no meio do mato e com roupas quentes quando o ouço, inclusive no verão. Até as músicas que evocam o mar, algo tão declamado em nossas letras, no caso do Clube, essas canções vendem melancolia, afinal, Minas não tem mar. Entre tantas ausências, essa ambiência torna as canções pardacentas, verde-escuras, com cheiro de pinheiro, chuva e serra. 

O Clube.Divulgação 

Não por acaso, aqui na minha cidade, Santa Maria/ RS, uma loja de discos em especial, o Sebo Camobi, do meu camarada Antônio Medeiros, possui permanente cerca de 10 LPs lacrados de “Clube da Esquina” no seu acervo — tanto pela procura quanto pela improvável negligência (no caso dele) de não ter um exemplar disponível para os futuros compradores, o que segundo Antônio, ele não se perdoaria caso se isso ocorresse.

Por outro lado, ainda em comparação com o RS, geograficamente Minas Gerais está muito próxima ao grande palco dos acontecimentos no país, o que a coloca em vantagem nesse grande palco cultural que é o Brasil. Nessa linha de pensamento, em paralelo com o Sul, vejo que “Clube da Esquina” de forma indefectível gerou faíscas e abriu a porteira para a música dos Almôndegas, Pery Souza, Raul Elwanger, Vitor Ramil, Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro, entre tantos outros daqui. E, se a música popular gaúcha muitas vezes não ganhou os grandes centros, essa é outra história, mas também é o que nos difere como um “país” dentro de outro país distante, apartado por essa "Estética do Frio", como nos diz Ramil. Há uma inexplicável subsistência local que nos mantém vivos e ainda criativos. Já “Clube da Esquina”, que não tem nada a ver com isso, ganhou o mundo, se tornando um dos mais representativos conjunto de canções da MPB, muitas vezes exaltado como o melhor de todos. Vejo a esquina das ruas Divinópolis com Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte — mais do que um simples cruzamento, ela é um portal que nos leva ao mundo — um esquina que é um marco geográfico no coração de seu membros! E dos fãs... 

E como estrangeiro, não mineiro, posso dizer que “Clube da Esquina” sempre esteve no meu radar, claro que eu conhecia as canções e já havia escutado o LP várias vezes, mas o disco só foi bater de verdade em mim nos últimos meses. Músicas como “Cais” são lembranças da infância, por exemplo. Recentemente, eram meados de 2021, em visita a Porto Alegre e, hospedado na casa de um amigo, lá estava o vinil original de 1972 na prateleira do amigo PJ. Domingo cinzento na capital gaúcha, pego o LP e coloco para girar. Plim! Perguntei como ainda não havia feito aquela viagem antes, por que demorei tanto tempo para olhar com mais calma e atenção para tudo o que estava envolvido ali? Naquele dia, fiz minha inscrição no Clube e há poucas semanas preenchi uma horrorosa lacuna que gritava na minha prateleira.   

Antes da música, há no Clube a poesia de Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Márcio Borges, elevando a régua das letras. Musicalmente há um delicioso enovelamento musical, que nos leva desde a música dos Beatles até o regional do interior do Brasil. Esse caldeirão tem o característico tempero mineiro, mas há sabores de vários lugares nesse pirão de cores e ritmos. No centro de tudo, Milton Nascimento e Márcio Borges, figuras complementares, irmanados pessoalmente e artisticamente, uma convergência só possível naquele momento, naquele lugar. E diferente da tropicália de poucos anos antes, com propostas claramente estéticas, o Clube encontra sua força na intuição e no sentimento, mas ambas estão conectadas pelo seu sincretismo cultural.   

"Clube da Esquina" traz tanta coisa que nos dá um nó: brazilian jazz, música folk mineira, modinhas, samba, fusion, rock progressivo e psicodélico, tudo enovelado com sofisticação harmônica, excelência e invejável técnica na execução. A própria forma como foi gravado, sem um planejamento específico, ancorado no virtuosismo dos músicos. Assim, os mineiros escreveram seu próprio evangelho da MPB, e não estamos falando de um livro apócrifo, pois esse “capítulo” é fundamental para entendermos nossa música. A potência das canções, os diferentes blends entrelaçados faixa a faixa, são tantos ingredientes que formam esse caleidoscópio, apontando para a imagem de uma constante estrada que leva a muitos lugares, o que também conecta o Clube à estrada mística dos escritores beat, de um sentimento nostálgico de eterna partida rumo ao Oeste de nossos dias.   

Entre minhas preferidas, mesmo falando de um álbum duplo sem faixas descartáveis, destaco “Tudo o que você podia ser”, “Cais”,  “San Vicente”, de  Milton; “Trem azul”, “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Paisagem da Janela”, com Lô Borges na linha de frente; “Saídas e Bandeiras” (dividida em duas partes, 1 e 2), traz Beto Guedes e Milton fazendo uma dobradinha de vozes imbatível; “Clube da Esquina 2” é uma das canções mais bonitas já escritas em todos os tempos; “Um gosto de Sol” nos remete as orquestrações de George Martin nos Beatles; “Pelo amor de Deus” é puro rock progressivo;  “Lilia” é um folk rock transcendental; “Trem de doido” é a cara do rock brasileiro dos anos 1970, “Nada será como antes” é um clássico absoluto que apresenta uma síntese do poderio do Clube e “Ao que vai nascer” parece uma canção tradicional britânica que o Renaissance poderia ter gravado. Na minha vida, acredito que “Clube da Esquina” chegou no momento certo, pois as letras, o espírito saudosista, tudo conjuga com meu olhar reflexivo de hoje. 

Quando ouço coisas como: “Você queria ser o grande herói das estradas”, penso em Jack e seu “On The Road” e nas minhas aspirações juvenis, de quanto a vida era aquilo que acontecia enquanto eu sonhava.

Quando ouço coisas como “Invento o mar, invento em mim o sonhador”, penso no mar dos meus sonhos, na costa uruguaia fria e sem uma alma viva próxima.

Quando ouço coisas como “Você pega o trem azul, o sol na cabeça”, penso que o trem está no meu imaginário desse de sempre, pois moro numa cidade ferroviária, e quando o trem da meia noite cruza na rua Sete de Setembro, aqui em Santa Maria, eu sinto que minha cama balança aqui da Chácara das Flores.

Quando ouço coisas como: “Subir montanhas, procurar diamantes” me lembro das lendas da infância onde potes de ouro aguardavam os aventureiros nos cerros da Depressão Central.     

Quando ouço coisas como; “Nuestras promessas de amores en el aire se han perdido” me lembro do rádio da cozinha da casa dos meus pais sintonizado em programas com músicas castelhanas. 

Quando ouço  coisas como: “Um gosto de vidro e corte com sabor de chocolate” vejo um poema  vitorioso em um álbum em que a poesia respira por cada sulco.

Quando ouço coisas como: “Cavaleiro negro que viveu mistérios” enxergo um Walter Scott tupiniquim, um Ivanhoé-Dylan-Black Rider, mais solar, é claro, pois ele está “banhado em ribeirão”.

Quando ouço coisas como: “Evitar a dor é impossível”, lembro das canções de Lupicínio, que conheceu a grande musa  inspiradora de sua vida aqui em Santa Maria, Iná, imortalizada na interminável dor de cotovelo em suas canções.

Quando ouço coisas como: “Minha cidade, aldeia morta”, penso no deserto cultural que não apenas a minha aldeia se tornou, mas o próprio Brasil que hoje vivemos. 

Quando ouço coisas como: “Juntar nossas forças para vender essa maré”, preciso dizer que aí está uma das chaves para mudar o que não está nos trinques, pois sem esperança, nada viceja.

Quando ouço coisas como: “Lembrou os sonhos que eu tinha”, penso que sem esse ingrediente nada faz sentido, pois quem não sonha está morto.

Quando ouço coisas como: “Corpo contra corpo, pele contra pele”, preciso dizer nada supera o tête-à-tête da vida real, a ausência do virtual traz a beleza ancestral em cada um de nós.

Quando ouço coisas como: “Nada a temer, nada a combinar”, tenho dito e reforço, a vida não necessita de mapas ou moldes definitivos, tudo é transitório e passageiro. 

"A música de Milton Nascimento vai do terreno ao angelical, ao mesmo tempo misterioso e franco, assombroso e sublime. Eumir Deodato, que fez arranjos de cordas para o Clube da Esquina e posteriormente trabalhou com Roberta Flack, Frank Sinatra e Kool & the Gang, ouviu em Nascimento paralelos à música erudita, mas admitiu: 'Até hoje não consegui descobrir o impulso rítmico que ele dá às suas músicas. É algo novo, misterioso, intrigante e desafiador. Poucas pessoas têm uma compreensão profunda do que é a música de Milton Nascimento'", disse Andy Beta na sua resenha do site Pitchfork. Milton é a síntese desse todo.  

Salve Márcio Borges, Beto Guedes, Fernando Brant, Lô Borges, Tavito, Wagner Tiso, Toninho Horta, salve, salve toda a trupe do “Clube da Esquina”, porque se Deus é brasileiro, tenham certeza — ele tem a voz de Milton Nascimento. 

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