Há 60 anos, Bob Dylan lançava seu LP de estreia

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Por Márcio Grings

Nossa história começa em 24 de janeiro de 1961, vindo do campus de Dinkytown, em Minneapolis, dividindo o volante com dois estudantes da Universidade Wisconsin, um músico desconhecido de 19 anos percorre cerca de 1.600 km e chega a Nova Iorque. Uma nevasca dos diabos o recepciona. Quando coloca os pés na Big Apple, esse rapaz tinha apenas U$ 10 no bolso, um violão a tiracolo, meia dúzia de tralhas e um livro como guia artístico — “Bound for Glory” — a autobiografia de Woody Guthrie, sua Bíblia de bolso. 

“Quando cheguei a Minneapolis, pareceu-me uma grande cidade. Quando a deixei, parecia um retiro rural que você vê  quando está passando por trem”, disse Bob Dylan anos depois.

A priori, Dylan veio a Nova Iorque para visitar Guthrie, seu ídolo, acamado em Greystock Park, New Jersey. Foi o que o fez já na primeira semana. Mas além de pedir à benção a Woody, seu plano de conquista buscava encontrar um espaço nos bares e casas de espetáculo de um dos corações artísticos dos Estados Unidos. Assim, em poucas semanas já tocava seu violão em palcos com Café Wha? e Gaslight, além de ao poucos se inserir na comunidade musical do Village nova-iorquino, e por lá conheceu músicos como Dave Van Ronk, Tom Paxton, Fred Neil,  Pete LaFarge e Phil Ochs.  

O músico vivia de favores, dormia na casa de amigos, girava de um lugar para outro, era um rato que circulava por onde havia um esconderijo disponível, uma figura chaplinesca muitas vezes ridicularizada. Mesmo assim, arrumou uma namorada, Suze Rotolo e, meses depois, em outubro de 1961, ao virar residente no Gerde’s Folk City, de Mike Porco, o jovem  alugou um apê em seu nome. Então, em 29 de setembro de 1961, saiu a resenha do jornalista Robert Shelton no New York Times, que assistira seu show na noite anterior. 

“Uma cara nova na música folk está se apresentando no Gerde’s Folk City. Embora tenha apenas 20 anos, Bob Dylan é um dos artistas com estilo mais distinto a se apresentar numa casa noturna de Manhattan há meses”.

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A vida de Dylan mudaria com essa resenha, assim como o review de Gilbert Millstein tornou Jack Kerouac famoso cinco anos antes, épocas em que um espaço no Times promovia o passe de mágica de transformar ilustres desconhecidos em celebridades. John Hammond, um dos todos poderosos que ancorava artistas e repertório de uma das gravadoras mais importantes da América, descobridor de Billie Holiday e Count Basie, fechou um contrato de cinco anos com Dylan. Concuminantemente, já aquecendo as turbinas, com a resenha de NYT no bolso, Dylan participou de uma sessão de gravações de Carolyn Hester, tocando gaita de boca nos estúdios da Columbia, com produção do próprio Hammond. Então, em novembro de 1961, em apenas dois dias, a um custo de US$ 402, Bob Dylan gravaria seu álbum de estreia, vendendo apenas cinco mil cópias. Das 13 canções, só duas eram de sua autoria. Contudo, a vida dessse jovem estava prestes a mudar, pois no ano seguinte ele seria celebrado como o Garoto Dourado da América. 

Mas tudo começou no epônimo primeiro LP, trabalho em que temos o country blues, folk, blues acústico e sua inspiração maior, Woody Guthrie, a bússola que o moveria adiante. Pelo menos até ali... 

Veja a live dos 60 anos do primeiro LP de Bob Dylan no Canal Pitadas do Sal   

YOU'RE NO GOOD 

A primeira música de Bob Dylan a surgir num disco de vinil é um cover de Jesse Fuller. E já podemos perceber a incrível dinâmica entre gaita/violão e a escola utilizada por ele: o folk blues.    

TALKIN' NEW YORK

Usando uma canção de Woody Guthrie como modelo, como nos lembra um de seus biógrafos, Robert Shelton, na letra Dylan destila sua hojeriza a estética empolada das cofeehouses e espeta a indústria fonográfica com executivos "que ficam ricos com um canetáço". Bob é um garoto com espírito de alguém mais vivído (seu personagem nesses dias), e seu estilo falado de compor (storytelling), é saudisista e busca inspiração nos músicos andarilhos que atravessavam o país com um violão e um ponto de vista.       

IN MY TIME OF DYIN'

Um spiritual que se tornou conhecido na voz de Josh White. O estilo do violão blues soa muito maduro, com a corda E afinada num tom mais grave e capotraste posicionado na quarta casa, o que revela um instrumentista com recursos. Para o efeito de slide, dizem que Dylan usou a tampa do batom de Suze Rotolo como bottleneck. Pertencente ao vernáculo do cancioneiro blues norte-americano, 13 anos depois, em 1975, o Led Zeppelin descontruiria "In My Time of Dyin'" e faria um versão arrasa quarteirão em "Physical Graffiti".     

MAN OF CONSTANTE SORROW 

Canção folclórica datada ainda do início do Século XX, foi revogada por Emry Arthur, que se autoproclamou o autor de "Man of Constant Sorrow". A versão de Dylan é espelhada nos New Lost City Ramblers, colegas do Villlage. Anos depois, em outro arranjo, no filme "E aí meu irmão, cadê você?/O Brother, Where Art Thou? (2000), a performance dos fictícios The Soggy Botton Boys (voz principal de Dan Tyminski) levou a música até uma nova geração de ouvintes, ganhando até um Grammy.     

FIXIN' TO DIE

Cavalo de batalha de Bukka White, Dylan materializa um vocal repleto de gana e maneirismos. "Fixin' to Die" foi relida diversas vezes, com destaque para a versão que Robert Plant fez em 2002, no álbum "Dreamland".    

PRETTY PEGGY-O

Era um tema tocado por Joan Baez que Dylan mudou o título e novamente nos induz ao imaginário do contador de histórias, com o mote de intensificar a batida do violão reforçando essa abordagem no arranjo da gaita de boca.       

HIGHWAY 51 BLUES

O bordão do violão seria reutilizado e melhorado dois anos depois em "It's All Righ Ma (I'm Only Bleeding). Curtis Jones é o autor de "Highway 51 Blues" (a rodovia 51 vai de New orleans até Madison, no Wisconsin), canção que ainda preambulou sua "Highway 61 Revisited". Outros a regravaram e até os Everly Brothers fizeram uma versão. O cover de Dylan é mais sombrio que grande parte dessas releituras.

GOSPEL PLOW

Outro spiritual, Dylan preconiza seu envolvimento com o cristianismo. A harmônica parece uma locomotiva a vapor, o que revela sua habilidade em tocar com um suporte de gaita e ainda acolorar as dinâmicas com o violão de aço.    

BABY LET YOU FOLLOW YOU DOWN

É um dos grandes momentos do LP, seja pelo violão dedilhado, a harmônica característica, pela forma como ele imprime sua marca vocal, mas principalmente pela maneira que a canta. No início, Dylan explica como Eric Von Schimidt lhe ensinou a música depois de se conhecerem "nos verdes pastos da Universidade de Harvard" (pura lorota!). Anos depois, ancorado pelo The Band em "Last Waltz", Bob a reavivaria, fazendo um mix com "Baby, Let Me Lay It On You" do Reverendo Gary Davis. É minha preferida do 1° LP.  

HOUSE OF THE RISIN' SUN

Essa canção vem da década de 1930, gravada por muitos e levada à proporções inimagináveis pouco tempo depois pelo Animals, tanto que impulsionaria Dylan a plugar seu instrumento no rock and roll. Bob se espelha na versão de Dave Van Ronk e, hoje, passado tanto tempo, ironicamente essa releitura me soa sem brilho quando comparada a outras tantas.  

FREIGHT TRAIN BLUES 

Canção vinda do espólio de Roy Acuff e Rambling Jack Elliot. Outro versículo de estrada, ecoando as hobo songs dos caroneiros decantados por Jack London em seus livros ou tal como Jack Kerouac e seu Vagabundos Iluminados e Viajante Solitários devotos de Santa Tereza e levando sarrafo dos Guarda-freios. Em parte da canção o vocal de Dylan emula o apito dos trens.    

SONG TO WOODY

É a ode de Bob Dylan ao seu maior ídolo até então, Woody Guthrie, artista que indicou o caminho dos primeiros anos de carreira. É uma variação de "1913 Massacre", e teria sido escrita logo depois da visita que o cantor fez ao ídolo. "Song to Woody" é um clara indicação de que um novo e bom compositor estava nascendo ali.   

"Aqui estou a mil milhas de casa/ Percorrendo um caminho que outros homens já fizeram/ Vejo teu mundo de pessoas e coisas/ Os teus pobres, camponeses, príncipes e reis/ Hey, Woody Guthrie te escrevi uma canção/ Sobre um singular velho mundo que surge outra vez/ Parce doente e está faminto/ Cansado e dilacerado/ Parece morimbundo e ainda mal nasceu".  

SEE THAT MY GRAVE IS KEPT CLEAN 

Spiritual propagado por Blind Lemmon Jefferson e redesenhado por Dylan, "See That My Grave is Kept Clean" faz o encerramento do primeiro LP de Bob Dylan em um clima barra pesada, mas totalmente concatenado com a vocação bélica da humanidade, em qualquer tempo. Há ainda evocações do Apocalipse da Bíblia, como se o protagonista estivesse morto, mas mesmo assim possibilitado de fazer um pedido de dignidade: 

"Cave minha cova com um pá de prata" 

A poder transcental da prata advém de eras remotas, e subentende-se que à força divina da prata mantém o corpo ligado ao espírito. 

Ouça o álbum na íntegra. 

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