55 anos do álbum de estreia do The Doors
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Por Márcio Grings
Jim Morrison só tinha 22 anos quando gravou o álbum de estreia da banda, mas Jimbo já era versado na poesia. A começar por aquilo que absorveu dos beats e de Jack Kerouac, livros que estavam na crista da onda no início dos anos 1960, é lugar comum afirmar que literatura está o tempo todo em suas letras. E há mais... A poesia transgressora de Arthur Rimbaud; analogias à mitologia grega; reconexões com as portas das percepção abertas por Aldous Huxley e William Blake — a liturgia pagã do rock seria reescrita nesse LP de estreia do The Doors. Lançado no embalo do Summer of Love, o celebrado Verão do Amor que varreu os Estados Unidos de leste a oeste, o grupo era um corpo estranho naquele cenário: agressivo demais, soturno demais, uma ilha naquele período iluminado do rock — “Se você for até São Francisco/ Lembre-se de colocar algumas flores em seus cabelos”. Piada! Jim Morrison no mínimo levaria a dúvida, a sombra, preconizando Donovan, ele seria a "season of the witch" daquele período, seria um dos mensageiros do caos.
Assista a live dos 55 anos do álbum epônimo do The Doors no Canal Pitadas do Sal
As ligações com o uso de drogas e
o xamanismo, o transe coletivo promovido pelos acid test e os festivais de rock, aquele ‘quê’ do transe coletivo irmanado aos indígenas, eram fixações de Jim. O
que Timothy Leary pregava no seu livro “A Experiência Psicodélica (1964) já colava
o ácido lisérgico com religiões primitivas (no caso o Livro Tibetano dos Mortos), tomo que influenciaria inclusive John Lennon e os Beatles, poucos anos depois. Mas Jim já estava
ligado nessa onda.
Ver os Doors no palco era encontrar o futuro do rock gótico antes dele pensar em nascer — sensual, ritualístico, o cicerone de um ritual pagão, o líder de uma seita, todos em um versam no cantor. E, se para alguns esse mise-en-scène poderia sugerir a farsa de uma encenação que se irmanava ao ilegítimo, lembro aos detratores que se você desdobrar as letras escritas pelo vocalista, o leitor/ouvinte se depara com um compositor confiante, dono de uma escrita que não sugere as visões de um iniciante, pelo contrário — encontramos um conhecedor do vernáculo artístico, inclusive elevando a régua e a qualidade das letras de rock:
“Você sabe, o dia implode a
noite/ A noite divide o dia/ Tentei correr, me esconder/ Atravessar bruscamente
para o outro lado”... E dar apenas uma espiada, afinal, todos estamos movidos pela
simples curiosidade de dar uma espiadinha no lado de lá...
Poucos meses depois de gravar o álbum
de estreia do Doors, Jim Morrison ficaria amigo do poeta beat Michael McClure, ambos alinhados
na mesma Highway da escrita poética. O cantor lançaria livros de poesia — aquela
mesma poesia que aparentemente não vê nada, parada em um fio de alta tensão, igual
um pássaro inofensivo, mas que do alto de seu púlpito, tudo vê. Não por acaso (ou
mesmo por ironia do destino) o corpo de Jim Morrison repousa desde 1971 no Père-Lachaise,
o cemitério francês que tem no túmulo do vocalista do Doors a lápide mais
visitada, na cripta localizada próximo aos jazigos de Edith Piaf, Chopin e
Rossini.
Chicago blues, enxertos de música erudita, jazz, música de cabaré, elementos literários da mitologia grega e um trânsito deliberado com psicodelia da segunda metade dos anos 1960 — o primeiro álbum é praticamente The Doors ao vivo, “The Doors: Live from the Whisky a Go Go”, como disse Ray Manzarek numa entrevista. Tem tudo que um trabalho de peso pede: um megahit (Light My Fire), cover significativos |(Back Door Man, Alabama Song) e um hino tão arrasador quanto anticomercial (Light My Fire).
55 anos do epônimo álbum de estreia do The Doors emerge à lembrança de como o rock pode ser interessante, inigualável, repleto de conteúdo e profundidades. Em tempo: a música do grupo poucas vezes conjugou com a superficialidade — seja pelas letras e por todo o conteúdo artístico entregue por Jim Morrison, Ray Manzarek, Robbie Krieger e John Densmore. Da mesma forma assombrosa que Jack Holzman — o todo poderoso da Elektra, gravador do Doors — colocou uim gigantesco outdoor na Sunset Strip com uma foto giogantesca da banda (foi a primeira vez que uma campanha de marketing de uma banda de rock utilizou esse método), ainda hoje eles soam grandiosos quando esse disco roda no toca-discos. Assim, ouvir esses primeiros 44 minutos da música é como pular de um trampolim rumo as profundidades do mar noturno.
BREAK ON THROUGH
O Lado A começa com a batida bossanovista
de John Densmore. A dramaticidade do Doors pode ser sintetizada em “Break on Through”.
A escola de Robbie Krieger teve como base inicial o flamenco de Mario Escudero
e Carlos Montoya, ao descobrir Paul Butterfield ele inverteu os polos. Caiu no
blues e no rock vidrado em Mike Bloomfield e Elvin Bishop, guitarristas da Butterfiled
Blues Band. Em entrevista a Rolling Stone Krieger confessou que aliterou “Shake
Your Money Maker” de Elmore James, na verdade pinçada de uma versão do próprio
Butterfield, além de ter “What I’d say” de Ray Charles em mente. Por mais que
ao ouvirmos a faixa de abertura do disco de abertura do Doors precisemos nos
esforçar muito para encontrar esses decalques, eis reflexos de como
a arte se desdobra e se transforma em outra coisa. A voz de tenor de Jim
Morrison e sua dramaticidade amarram tudo isso e se transformam numa canção
síntese do grupo.
SOUL KITCHEN
"Soul Kitchen" é o tributo de Morrison a um
restaurante de Venice Beach chamado Olivia's. O cantor muitas vezes ficou até
tarde por lá, dividindo o espaço com estudantes da UCLA.
"Deixe-me dormir a noite toda na sua cozinha de almas".
O teclado de abertura de “Soul Kitchen” se transformaria em “When
the Music is Over” no álbum seguinte. O baixista Larry Knechtel, integrante da
lendária Wrecking Crew, banda de apoio sediada em Los Angeles que ancorou
dezenas de álbuns na segunda metade dos anos 1960, não foi creditado em “Soul
Kitchen” e em “Light My Fire”, gravando sua participação em overdub. Ele simplesmente
duplicou as linhas de baixo da mão esquerda de Ray no teclado, seja no Hammond
B3 ou no Fender Rhodes. A ideia foi do produtor, Paul Rothchild, que buscava um 'punch' mais grave, algo que na posição dele, não obtinha êxito apenas com as
teclas de Manzarek. Não deixe de ouvir a versão de “Soul Kitchen” em “Alive She
Cried”, registro de shows do Doors entre 1968 e 1970, mas lançado só em 1983.
THE CRYSTAL SHIP
O barco embriagado de Rimbaud sempre me vem quando ouça a
história do barco de cristal do Doors. Jim evoca sua persona sinatriana, ele atua como um cantor de rock, mas sim como crooner, ao estilo das orquestras vestidas à caráter, de terno e gravata. Mas não se engane, não estamos falando
aqui desse tipo de tradição, quadrada, a tradição decantada em “The Crystal Ship”,
uma canção de amor que bate na poética
clássica, traz uma letra que funciona separada da música:
“Antes de você cair na letargia/ Eu gostaria de ter outro
beijo/ Outra chance fugaz de arroubo”.
Mais adiante ele preconiza a vida pregressa como astro do
rock, desconstruindo o arquétipo que ele próprio nos induziu:
“O navio de cristal foi abastecido/ Mil garotas, mil tentações/
Um milhão de maneiras de passar o tempo/ Quando voltarmos/ Eu deixarei um bilhete”.
Retalhando um trecho, o poema de Rimbaud diz:
“Sonhei que a noite verde em neves alvacentas/ Beijava,
lenta, o olhar dos mares com mil coros”.
Não há como desvencilhar uma obra da outra, por mais
diferentes que elas tragam, a inspiração no poeta francês está posta na própria
linguagem explorada por Morrison.
Alguns teóricos dizem que o tema na verdade faz referência as
drogas, sobre uma overdose ou talvez até um pacto de suicídio. Em 1990, uma carta de um fã ao Los
Angeles Times afirmou que a música era realmente sobre metanfetamina cristal, o
"navio" representava uma agulha, enquanto o "beijo" era a
agulha na veia. Já John Densmore desacredita essa ligação e diz que “The Crystal
Ship” é uma canção de despedida escrita após o rompimento de Jim com sua namorada da
época, Mary Werbelow.
TWENTIETH CENTURY FOX
“Twentieth Century Fox” versa sobre a cultura jovem e a atração que a garotada sentia por Los Angeles. O produtor Paul Rothchild fez a banda gravar sobre tábuas de madeira no estúdio para alcançar o efeito de batida ouvido na música. "Se você ouvir o som no refrão, parece um pequeno exército!" Rothchild lembrou em 1981. "Eu tinha acabado de fazer um disco de flamenco onde usei uma ideia semelhante. Achei que seria ótimo colocá-lo em um disco de rock 'n' roll."
ALABAMA SONG
Baseada em um poema escrito pelo poeta alemão Bertold Bretch
em 1925, Kurts Weil a musicou dois anos
depois. A versão do The Doors mantém um arranjo semelhante ao original, no
mesmo clima soturno e teatral, com o teclado de Ray soando como o piano de parede dos cabarés de antigamente.
LIGHT MY FIRE
Sorte de principiante. Sem nunca ter composto uma música,
Robbie Krugger traz o megahit “Light My Fire”, uma das música do Summer of Love
e até hoje um dos maiores sucessos do Doors. “Escreva sobre a terra e fogo”,
disse Jim ao inseguro Robbie. Com “Play it Fire" dos Stones” na cabeça, Robbie
veio com ela. Krieger utilizou 14 acordes diferentes na música. “Hey Joe”, do The
Leaves ofereceu alguma inspiração. “Foi Jim
que veio com o segundo verso sobre a pira funerária”, lembrou Krieger na série Classic
Albums". Manzarek acrescentou a introdução e linha de baixo ao estilo de
Bach (emprestada de "Blueberry Hill" de Fats Domino), enquanto
Densmore jogou o ritmo latino no caldeirão. No Brasil e em grande parte do mundo "Light My Fire" se
tornou um hit radiofônico na versão de Jose Feliciano. Além disso, virou
propaganda dos automóveis Buick e foi cortada/editada para tocar nas rádios.
BACKDOOR MAN
Willie Dixon é o autor, Howling Wolf a tonou um clássico, mas eis uma música que passou a ser
associada ao Doors, e ao seu vocalista. A visão de Morrison e do Doors sobre a
influência do blues destoa dos ingleses. Eles não reverenciam, reinventam o
blues, não é um arremedo, é o blues sendo levado adiante. “Back Door Man” é uma
das preferidas do vocalista nos palcos.
É uma das canções menores do álbum, que pode ser associada a
grande parte dos pastiches pop daquele período. A música tem uma história
curiosa: nasceu de uma sessão em que eles fizeram uma trilha incidental para um
filme promocional da Ford “Love Thy Customer” (1966) – veja AQUI. Partes
de "I Looked at You" - assim como outras faixas futuras do Doors
"Build Me a Woman" e "The Soft Parade" - podem ser ouvidas
ao fundo. O quarteto recebeu $ 200 pelo dia de trabalho.
END OF THE NIGHT
Os Doors tiraram seu nome de “As Portas da Percepção”
(1954), ensaio autobiográfico Aldous Huxley. Em “End of the Night!” eles levam
a inspiração de Huxley de volta ao lendário poeta
William Blake, empregando a verbiagem apocalíptica e dionisíaca de Blake em “Auguries
of Innocence”:
"Alguns nascem para um doce deleite, alguns nascem para
uma noite sem fim"
A letra da música diz:
“Pegue a estrada até o extremo da noite” (...) “Reinos de
prazer/ Reinos de luz” (...) “Alguns nascem para o suave deleite”.
Anos antes dos Beatles se iniciarem na Meditação Transcendental, Morrison, Densmore, Manzarek e Krieger participaram de oficinas ministradas pelo guru Maharishi Mahesh Yogi em 1962. Maharishi costumava usar a expressão "Take it easy, take it as it comes”, inspiração para o preâmbulo do pontapé na porta do Verão do Amor. A faixa seguinte, o fim do disco...
THE END
Tour de force que derrubou as linhas limítrofes entre teatro e o rock. Ao gravá-la, Morrison pediu que todas as luzes do estúdio fossem apagas, Bruce Botnick disse que apenas os VUs da mesa de áudio forneciam algum tipo de iluminação. Tomou LSD antes de começar a gravá-la, e quando o ácido bateu, ao dar uma volta pelos arredores, quando voltou ao estúdio, teve visões de que o lugar estava pegando fogo e esvaziou um extintor de incêndio próximo a sala de controle do estúdio. Jac Holzman, o chefão da Elektra, pagou os prejuízos. “É uma música que significa algo diferente a cada vez que você a ouve. É uma única música que possui vários espíritos. The End é sobre o fim de um relacionamento? O fim de uma vida? O fim do mundo? O assassinato de seu pai? Sua mãe é aquela garota? Isso te lembra do Vietnã ou {a Guerra da Ucrânia}? Val Kilmer? A banda no deserto no filme de Oliver Stone? Martin Sheen em um quarto de hotel em Hanói?”, disse Matt Koelling, uma das definições mais encaixadas sobre "The End".
Uma Obra Prima esse álbum! Tenho-o em minha coleção até hoje e Doors sempre será minha banda favorita de todos os tempos.
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