Memorabilia: os Melhores Álbuns de 2021


Por Márcio Grings

Toda vez que vejo listas dos álbuns escolhidos em sites e plataformas especializadas em música, sinto-me assombrado. O mundo que eu conhecia não existe mais. Esse é o 11º ano em que publico uma listagem desse gênero. Contudo, sempre vale o aviso: muitas vezes algum álbum figurante por aqui possivelmente não esteja ranqueado em outros sites de música. O que o leitor encontra no Memorabilia é sempre uma visão particular, baseada naqueles discos que de uma forma ou outra acabaram caindo na micro teia que me circunda. Esse universo pessoal, caracterizado na forma de vejo e ouço música, se espelha no modelo de como se davam as coisas no Século XX. Eis uma das marcas dessas escolhas — o saudosismo (ouça a seleção no player ao final desta postagem). Como nos diz Neil Young em "Shape of You": "Estou velho agora, mas ainda sonho"E quem não sonha está morto.         

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ROBERT PLANT AND ALISON KRAUSS "RAISE THE ROOF"

O fato de Robert Plant olhar para a frente e não viver à sombra do gigante espectro do Led Zeppelin nos trouxe muitas benesses. "Raising Sand" (2007), por exemplo, laureado com o Grammy de Álbum do Ano, marcou sua parceria vitoriosa com a cantora norte-americana Alison Krauss. A repetição de uma fórmula muitas vezes faz o tiro sair pela culatra, mas não é o caso de "Raise the Roof". Gravado em 2019, mas lançado somente em 2021, o álbum tem direção musical de T Bone Burnett, o que novamente traz unidade e o conecta à sonoridade do primeiro disco da dupla. "Can't Let Go" (Randy Weeks), "Go Your Way" (Anne Briggs) e "Searching for my Baby" (Bobby Moore), são músicas que dispensam âncoras e respiram atemporais. E para quem pensa que há espaço apenas para doçuras em "Raise the Roof", ouça com atenção a única composição inédita do álbum, a apocalíptica "High and Lonesome" (parceria com Burnett, com ecos da dupla Page/Plant). Trata-se de uma das melhores canções escritas por Robert Plant neste século: “A estrada foi feita para caminhar / Sem desespero / Vou conspirar, estarei lá / Eu vou fazer um trato, vou dançar no inferno”. É claro que a nova reunião da dupla passará batido pela geração do streaming e do Tik Tok, mas se você está interessado em viajar nas versões de Robert e Alison, esse passeio não o decepcionará.    

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HIS GOLDEN MESSENGER "QUIETLY BLOWING IT"

Bandas como o His Golden Messenger irão desparecer. Elas são boas demais para viver em 2021. Basta olhar para a capa de "Quietly Blowing It" e você já sabe o que está embalado dentro do pacote. Solitário, MC Taylor, o líder do grupo, de chapéu e óculos escuros, um olhar desconfiado para a câmera. Ele está no meio de uma plantação e o milho foi recém colhido. A lua cheia, ainda visível apesar de uma nascente réstia de sol, o circunda como uma auréola. A orientação country & soul é uma das marcas do grupo da Carolina no Norte, basta ouvir a faixa título para sacar de que conteúdo é feito a pasta base das canções. O cricilar dos grilos no final da terceira faixa faz a cama para a guitarra que abre "It Will if We Let It". E nesse lugar idílico, dá para ouvir o coachar de uma rã em "Way Back in the Way Back" e, enquanto o vento sopra, a música é nossa oração: "Não tenha medo / Estaremos bem pela manhã / Há comida na mesa". Em "Hardlytown" encontramos o melhor da verve cancioneira do Messenger, ponteada pela gaita de boca ao estilo Neil Young. "Sanctuary" é puro folk-country — violão da linha de frente, um piano costurando os espaços. "Glory Strums" não é muito diferente, mas aqui eu não posso deixar de lembrar que uma música como essa poderia tocar nas rádios, mas não toca. Bandas como  His Golden Messenger deixarão de existir, pois a música pop está indo para direção contrária. Enquanto isso, fujo da multidão —  "𝐯𝐨𝐥𝐭𝐨 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐦𝐞𝐮 𝐚𝐫𝐚𝐝𝐨" — e os sigo lavoura adentro em busca de alguma espiga esquecida. 

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THE WALLFLOWERS “EXIT WOUNDS”
 

Durante a corrida do ouro dos anos 1990, os Wallflowers estavam lá, donos do pedaço ao lado de bandas como Pearl Jam e Hootie & The Blowfish. Algumas despareceram, outras permanecem por aí. Com temas como "One Headlight" e "6th Avenue Heartache", o álbum “Bringing Down the Horse” (1996) forneceu a base para Jakob Dylan liderar várias encarnações do grupo que ajudou a criar. Com atuação bissexta, entre mudanças na formação e longos hiatos, o grupo negocia com os tempos, sem abandonar o foco no rock'n'roll e na tríade guitarra, baixo e bateria, além de um providencial órgão Hammond. E nessa linha de montagem que o Wallflowers lançou "Exit Wounds", um bom disco após nove anos de silêncio. Sem tentar brigar com o presente, o Wallflowers apresenta temas ligados a sua herança musical, canções despretenciosas — mas poderosas —como "I Heat the Ocean", "Roots and Wings" e "Maybe Your Heart's Not in It No More" (com voz de apoio de Shelby Lynne). Jakob Dylan sabe que sua música não mudará o mundo (como seu pai fez), mas também sabe que ainda pode conquistar o coração de muitos saudosistas. Pessoas como eu, quem sabe até mesmo você que agora lê essas linhas.

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CHRISSIE HYNDE "STANDING IN THE DOORWAY"

"Guardadas as devidas proprorções sempre vi Chrissie Hynde consoante a pináculos como Bob Dylan, Tom Pettty e Keith Richards, um equilíbrio feminino/masculino, pura androgenia sexy e plural". Esse trecho extraído do livro "Quando o Som Bate no Peito" — compre AQUI —  mostra como Chrissie é reconhecida pelo meu coração — ela tem o sorriso torto de Tom, o movimento corporal de Keith e Bob na mente. A líder dos Pretenders acaba de nos presentear com "𝐒𝐭𝐚𝐧𝐝𝐢𝐧𝐠 𝐢𝐧 𝐭𝐡𝐞 𝐃𝐨𝐨𝐫𝐰𝐚𝐲", um álbum apenas com canções de Dylan. Difícil apontar um destaque, pois a cantora está muito a vontade nessa revisitação. Ao seu lado, o guitarrista James Walbourne (integrante do Pretenders), mesmo companheiro que a acompanhou na série do Youtube "Dylan Lockdown Series", faísca que originou a chama deste álbum. Quando vi Crissie cantando "I Shall Be Released" no Madison Square Garden em 1992 no Bob Fest, ao lado de Jesus Cristo e os 12 apóstolos, pensei: "𝐞𝐬𝐬𝐚 𝐦𝐮𝐥𝐡𝐞𝐫 𝐧𝐚𝐬𝐜𝐞𝐮 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐜𝐚𝐧𝐭𝐚𝐫 𝐁𝐨𝐛 𝐃𝐲𝐥𝐚𝐧". Por isso, ouça "𝐈𝐧 𝐓𝐡𝐞 𝐒𝐮𝐦𝐦𝐞𝐫𝐭𝐢𝐦𝐞", "𝐒𝐰𝐞𝐞𝐭𝐡𝐞𝐚𝐫𝐭 𝐋𝐢𝐤𝐞 𝐘𝐨𝐮", "𝐘𝐨𝐮'𝐫𝐞 𝐀 𝐛𝐢𝐠 𝐆𝐢𝐫𝐥 𝐍𝐨𝐰", "𝐃𝐨𝐧'𝐭 𝐀𝐩𝐚𝐫𝐭 𝐭𝐨 𝐌𝐞 𝐓𝐨𝐧𝐢𝐠𝐡𝐭"e apenas comprove que eu estou absolutamente certo.

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SHELBY LYNNE "THE SERVANT"

"The Servant", novo álbum da cantora norte-americana Shelby Lyne, foi gravado pouco antes de o mundo fechar suas janelas em março de 2020. É um disco gospel, onde ela venera a condição humana por intermédio de canções seculares. Shelby tem a companhia de George Doering (guitarra) e  James Gadson (bateria): “Este álbum é um dos meus maiores orgulhos”, disse. "Gravá-lo, salvou minha alma". Nas canções, a cantora respira e remoe as letras, coteja entre o pecado a a redenção. Shelby Lynne buscou inspiração nos discos gospel de Elvis Presley, algo evidente quando ouvimos as vozes de apoio, ao estilo das gravações do Rei. Tem um detalhe que sempre me fascina na música de Shelby: nunca teremos excessos, seu arranjos priorizam espaços vazios, o ar respira livremente entre uma frase e outra. Canções canônicas como "Just a Closer Walk With Me", "Go Tell It On the Mountain" e "Didn't It Rain" nos dizem que não é preciso ser religioso nem citar hinos e homilias para que nos sintonizemos com o recado espiritual de "The Servant". Que álbum, Shelby! 

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TONY JOE WHITE "SMOKE FROM THE CHIMNEY"

"𝐒𝐞 𝐖𝐢𝐥𝐢𝐚𝐦 𝐅𝐚𝐥𝐤𝐧𝐞𝐫 𝐭𝐨𝐜𝐚𝐬𝐬𝐞 𝐛𝐥𝐮𝐞𝐬 𝐞𝐥𝐞 𝐬𝐨𝐚𝐫𝐢𝐚 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐓𝐨𝐧𝐲 𝐉𝐨𝐞 𝐖𝐡𝐢𝐭𝐞", disse o jornalista Rhis Williams. Tony nos deixou em outubro de 2018, 28 dias depois do lançamento de "Bad Mouthin", sua despedida em forma de álbum. Prolífico até o fim de sua vida, deixou gravada nove demos, canções guias apenas com sua voz e violão (ou guitarra). Dan Auerbach, dos Black Keys, produziu e arranjou essas músicas inacabadas. Assim nasceu "𝐒𝐦𝐨𝐤𝐞 𝐅𝐫𝐨𝐦 𝐭𝐡𝐞 𝐂𝐡𝐢𝐦𝐧𝐞𝐲". Para entregar ainda mais autenticidade, Auerbach chamou músicos de Nashville, incluindo o guitarrista Marcus King, o tecladista Bobby Wood e o violinista Stuart Duncan. White foi um dos criadores originais do swamp rock, um gênero enraizado no sul da Louisiana, caracterizado pela mistura do blues de Nova Orleans com o country, além de trazer ritmos crioulos. A faixa título tem a marca de sua voz grave e catarrenta (Tony já tinha voz de velho aos 20 anos, imagine aos 75): "𝐀𝐥𝐠𝐮𝐦𝐚𝐬 𝐜𝐨𝐢𝐬𝐚𝐬 𝐧𝐮𝐧𝐜𝐚 𝐞𝐯𝐚𝐧𝐞𝐬𝐜𝐞𝐦 / 𝐂𝐨𝐦𝐨 𝐟𝐮𝐦𝐚ç𝐚 𝐬𝐚𝐢𝐧𝐝𝐨 𝐩𝐞𝐥𝐚 𝐜𝐡𝐚𝐦𝐢𝐧é".A balada  "𝐁𝐢𝐥𝐥𝐲" é simplesmente sublime: "𝐃𝐞𝐢𝐱𝐚𝐦𝐨𝐬 𝐭𝐚𝐧𝐭𝐚𝐬 𝐩𝐨𝐧𝐭𝐚𝐬 𝐬𝐨𝐥𝐭𝐚𝐬 / 𝐅𝐨𝐦𝐨𝐬 𝐞𝐱𝐩𝐮𝐥𝐬𝐨𝐬 𝐞 𝐜𝐡𝐮𝐭𝐚𝐝𝐨𝐬 𝐭𝐚𝐧𝐭𝐚𝐬 𝐯𝐞𝐳𝐞𝐬 / 𝐄 𝐨 𝐜𝐡ã𝐨 𝐟𝐢𝐜𝐚 𝐜𝐚𝐝𝐚 𝐯𝐞𝐳 𝐦𝐚𝐢𝐬 𝐝𝐮𝐫𝐨 / 𝐁𝐢𝐥𝐥𝐲, 𝐚𝐬𝐬𝐢𝐦 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐞𝐮, 𝐯𝐨𝐜ê 𝐬𝐚𝐛𝐞 / 𝐍ã𝐨 𝐝á 𝐦𝐚𝐢𝐬 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐯𝐨𝐥𝐭𝐚𝐫 𝐝𝐞 𝐨𝐧𝐝𝐞 𝐯𝐢𝐞𝐦𝐨𝐬". E por último, "𝐒𝐜𝐚𝐫𝐲 𝐒𝐭𝐨𝐫𝐢𝐞𝐬" é um blues que vai fazer você sacar o espírito do som de Tony Joe White, fluindo igual a fumaça do cachimbo de Falkner.

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NEIL YOUNG & THE CRAZY HORSE "BARN"

Eu não conheço alguém que seja mais fã de Neil Young do que eu. LPs como "Comes a Time" e "Rust Never Sleeps" mudaram minha vida, isso antes de descobrir todos os tesouros do canadense. Os álbuns dos anos 1990 — tudo que segue até "Silver and Gold" (2000) — ainda são objetos de minha devoção. Porém, o velho Neil parecia ter perdido a força nos últimos anos, pois a irregularidade foi uma marca de muitos de seus discos. Talvez o problema fosse eu, talvez. Contudo, acabamos de nos reconcIliar. "Barn" faz um F5 e reorganiza qualquer confusão ou mal entendido."Estou velho agora, mas ainda sonho". Neil declara em "Shape Of You", gravada no estilo desleixado de "Tonight's the Night", com Nils Lofgren ao piano, substituto de Frank 'Poncho' no Cavalo Louco. "Heading West" é puro Crazy Horse, símbolo de outro dos acertos de "Barn" — são esses tiros curtos  que realmente funcionam no álbum, são raros os excessos e as longas passagens instrumentais. Por outro lado, a lembrança de "Zuma" salta pelos sulcos em "Welcome Back", o melhor momento do Neil solista.  Já "Tumblin' Thru the Years" é uma ode a sua esposa, Darryl Hannah: "sem você aqui, estaria cambaleando". Direto de seu retiro nas Montanhas Rochosas, aos 76 anos, o bom Neil Young se levanta e novamente nos emociona.

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THE BLACK KEYS "DELTA KREAM"

Muitas vezes o que aparentemente é visto como démodé, também pode ser reconhecido com hype. Uma banda que sempre soube transitar nessa recauchutagem foi o 𝐁𝐥𝐚𝐜𝐤 𝐊𝐞𝐲𝐬, principalmente quando o cosmo desse material está baseado na imperfeição do blues. Em apenas dois dias, como cerca de 10 horas de labuta, 𝐃𝐚𝐧 𝐀𝐮𝐞𝐫𝐛𝐚𝐜𝐡 e 𝐏𝐚𝐭𝐫𝐢𝐜𝐤 𝐂𝐚𝐫𝐧𝐞𝐲 gravaram no Easy Eye Sound Studio, em Nashville,  "𝐃𝐞𝐥𝐭𝐚 𝐊𝐫𝐞𝐚𝐦", 10º disco de estúdio dos americanos. No apoio, Kenny Brown (guitarra) e Eric Deaton (baixo), integrantes do grupo original de R.L. Burnside, lendário músico do Mississippi. Metade do disco traz canções de Junior Kimbrough, bluesman que é idolatrado pelo Keys. Entre as canções de Kimbrough, eles revisitam uma maravilha chamada "𝐂𝐨𝐚𝐥 𝐁𝐥𝐚𝐜𝐤 𝐌𝐚𝐭𝐭𝐢𝐞", símbolo do blues capenga do Norte do Mississippi, com ênfase na bateria e guitarra. Com falsete na voz e um acento pop, "𝐆𝐨𝐢𝐧𝐠 𝐃𝐨𝐰𝐧 𝐒𝐨𝐮𝐭𝐡", de Burnside, quebra ao meio no solo de slide. Já "𝐌𝐞𝐥𝐥𝐨𝐰 𝐏𝐞𝐚𝐜𝐡𝐞𝐬", de Big Joe Wiliams, é uma daquelas músicas que merecem um looping interminável. O Black Keys consegue manter a luz do blues tremeluzindo, o que faz de "Delta Kream" um considerável feito nesses tempos de tanto conteúdo imaterial. “𝐕𝐞𝐣𝐨 𝐞𝐬𝐬𝐞 𝐦𝐚𝐭𝐞𝐫𝐢𝐚𝐥 𝐛𝐚𝐬𝐢𝐜𝐚𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐦ú𝐬𝐢𝐜𝐚 𝐟𝐨𝐥𝐤, 𝐞 𝐦𝐮𝐢𝐭𝐚𝐬 𝐝𝐞𝐬𝐬𝐞𝐬 𝐭𝐞𝐦𝐚𝐬 𝐬ã𝐨 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐩𝐞ç𝐚𝐬 𝐝𝐞 𝐬𝐞𝐠𝐮𝐧𝐝𝐚 𝐦ã𝐨 𝐩𝐚𝐬𝐬𝐚𝐝𝐚 𝐝𝐞 𝐠𝐞𝐫𝐚çã𝐨 𝐞𝐦 𝐠𝐞𝐫𝐚çã𝐨”, disse Auerbach à Rolling Stone. O toque de Midas do Black Keys é justamente esse: transformar sucata enferrujada em prata polida com cara de nova (vintage é um termo moderno), como ouvimos em "𝐋𝐨𝐮𝐢𝐬𝐞" (Mississippi Fred McDowell). Assim, o grupo acaba por intorduzir o blues numa nova geração de fãs. Palmas, que eles merecem   

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BLACKBERRY SMOKE "YOU HEAR GEORGIA"

O 𝐁𝐥𝐚𝐜𝐤𝐛𝐞𝐫𝐫𝐲 𝐒𝐦𝐨𝐤𝐞 sempre esteve no meu radar, mas até cerca de três anos, nunca havia me aprofundado na obra do grupo.  A ficha fez plim em 10 maio de 2019, no Bar Opinião, em Porto Alegre, noite em que os vi ao vivo. E como é bom conhecer uma banda no palco, perceber suas dinâmicas, ver de perto a interação entre os músicos, sentir a sensação do som batendo no peito. Saí de lá com dois CDs da banca oficial debaixo do braço — "Like An Arrow" (2016) e "Find a Light" (2018), e assim o Blackberry Smoke ganhou um novo fã. "𝐘𝐨𝐮 𝐇𝐞𝐚𝐫 𝐆𝐞𝐨𝐫𝐠𝐢𝐚" não é o melhor álbum já lançado pelo grupo liderado pelo cantor, compositor e guitarrista Charlie Starr.  Entretanto, guardadas as devidas proporções, eles continuam a ocupar a lacuna deixada pela ausência de novas bandas espelhadas no southern rock dos anos 1970. O Smoke soa mais antigo do que é. No novo disco, a receita costumeira está na mesa — o motor ronca alto empulsionado por riffs encardidos, pela voz de um dos melhores vocalistas da atualidade e por canções poderosas, como a faixa título. "𝐀𝐢𝐧'𝐭 𝐭𝐡𝐞 𝐒𝐚𝐦𝐞" já nasceu como clássico, certamente não sairá do setlist dos shows. "𝐇𝐞𝐲 𝐃𝐞𝐥𝐢𝐥𝐚𝐡" traz o imaginário country mesclado a energia do rock, numa levada de bateria que nos faz facilmente bater o pé ao ritmo da música. O som do violão de aço em  "𝐎𝐥𝐝 𝐄𝐧𝐨𝐮𝐠𝐡 𝐭𝐨 𝐊𝐧𝐨𝐰" anuncia a balada exestencial do álbum, longe de ser uma canção de amor, Charlie traz uma solução filosófica que recomenda a como viver entre a cruz e a espada: "𝐃𝐨 𝐛𝐞𝐫ç𝐨 𝐚𝐨 𝐭ú𝐦𝐮𝐥𝐨, 𝐧𝐨𝐬𝐬𝐚 𝐣𝐨𝐫𝐧𝐚𝐝𝐚 é 𝐥𝐨𝐧𝐠𝐚 / 𝐔𝐦 𝐝𝐫𝐨𝐠𝐚𝐝𝐨 𝐩𝐫𝐞𝐜𝐢𝐬𝐚 𝐝𝐞 𝐮𝐦𝐚 𝐚𝐠𝐮𝐥𝐡𝐚, 𝐮𝐦 𝐩𝐫𝐞𝐠𝐚𝐝𝐨𝐫 𝐩𝐫𝐞𝐜𝐢𝐬𝐚 𝐝𝐞 𝐮𝐦𝐚 𝐚𝐥𝐦𝐚 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐬𝐚𝐥𝐯𝐚𝐫 / 𝐅𝐢𝐪𝐮𝐞 𝐧𝐨 𝐜𝐚𝐦𝐢𝐧𝐡𝐨 𝐝𝐨 𝐦𝐞𝐢𝐨". Na verdade, "You Hear Georgia" desceu um degrau em relação aos últimos dois álbuns dos Fumacentos, o que não nos nos furta de sua grande virtude: estamos falando de um disco para quem gosta de rock'n'roll!        

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BEBETO ALVES "CONTRALUZ"

Gravado em sua casa, tudo o que ouvimos em "Contraluz"* é fruto da ação de Bebeto Alves, que autoproduziu seu novo álbum (Compre AQUI). Incatalogável, afeiçoado ao crossover, o artista zarpa e zurze para todos os lados. Ele oscila entre orientalismos, percussões, traços de blues, provocativas dissonâncias, afinações sinistras, batidas eletrônicas — mas também se resolve no unplugged; canta em português-espanhol-inglês, explora minimalismos e excessos, qual coisa forja um som que muitas vezes bate no rock, mas que sempre encontra no violão de aço — e no dedilhar da milonga — o fio condutor para fundir todas as profusões. Poeta, antena da raça — artista que captura todos os sinais — sua música é como um tabuleiro ouija doido para nos revelar novas aparições, seja "no meio das coisas vivas (ou) das coisas mortas", como nos diz em "Preciso Encontrar". Assim, a possessão musical de Bebeto nunca se afasta do sentido plural de uma ancestralidade fronteiriça, é o que acontece em "De déu em Déu" e na faixa título. O mantra existencialista "Aroma perdido" ulula como um canto de sereia: "Eu não posso de rasgar as asas do poema | Eu já não posso deixar de guardar a sirena | Lá fora na noite estrangeira | Nem deixar de sentir o aroma perdido no ar da fonteira". Essa ubiquidade, o desejo de estar em todos as paragens, seja aqui ou lá sabe-se onde, é o poder de teletransporte na música de Bebeto Alves. Eu tenho o tíquete premiado (já o ouvi), e "Contraluz" me deixou solto no ar, como uma pena bailando ao vento frente o reflexo do sol. O Álbum ainda não está disponível no Spotfy, por isso "Contraluz" não está na playlist abaixo. 

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Como bonus track no player incluo três canções de "Lefftover Feeling", novo álbum de John Hiatt, gravado com The Jerry Douglas Band. Um álbum que tem o bluegrass como ponto de partida, mas vai além, com um som amadeirado e profundo. Ouça "Mississippi Phone Booth", "Keen Rumbler" e "The Music is Hot".   

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