Elton John: 50 anos de “Madman Across the Water”

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Por Márcio Grings

“Madman Across the Water” (1971) não é o melhor álbum de Elton John. Nos anos 1970, celebrada como a melhor das décadas de sua obra, certamente “Goodbye Yellow Brick Road” (1973) figura no alto do pódio, é um dos símbolos de sua excelência artística. Na mesmo período, há discos melhores do que ele, como “Honky Château” (1972), assim como “Captain Fantastic and the Brown Dirty Cowboy” (1975) tornou-se um dos preferidos dos fãs ou até mesmo “Tumbleeweed Conection”, o meu favorito. Entretanto, foi em “Madman Across the Water” que Elton John encontrou um som para chamar de seu, foi quando ele próprio entendeu a direção que seguiria a partir dali — protagonista de um tipo de música feita sob medida para brilhar nas FMs norte-americanas. 

Repleto de narrativas agudas e de personagens dramáticos, o álbum transmite a sensação de como deve ter sido desafiador para dois ingleses imaturos atravessar um país mergulhado por turbulências e mudanças. Produzido por Gus Dudgeon, o mesmo responsável pela ambientação de “Space Oddity, de David Bowie, e “Rocket Man”, do próprio Elton, ambas marcaram momentos estelares do pop rock daqueles tempos. Com toneladas de camadas orquestrais, Paul Buckmaster pesou a mão nos arranjos de ‘Madman’, e esse excesso transbora em todo o álbum. O disco também se alinha com vertentes do rock progressivo, um dos avatares da música naquela virada de década. Rick Wakeman, que no mesmo ano entrou no Yes, é um dos session musician que participam das gravações. Contudo, no ponto de vista do teste do tempo, esse alinhamento e sofisticação passou a ser uma das marcas do LP de 1971, é o que o torna relevante, é o álbum de um de seus sucessos tardios (graças a um filme), e trabalho que completa 50 anos em 2021. 

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Falando em excessos, quase 30 músicos tocaram nas sessões do Trident Studios em Londres. Por escolha de Dudgeon, Dee Murray (baixo) e Nigel Olson (bateria), dupla que poucos meses antes o ancorou no tour pelos Estados Unidos, não gravaram todas as músicas, há outros baixistas e bateristas no LP. Entre o time oficial de Elton, Caleb Quayle (guitarra) e Roger Pope (bateria), que já haviam gravado em registros anteriores continuaram escalados. Davey Johnston (guitarra), faz sua primeira aparição num disco de Elton, ele que se tornaria um de seus grandes colaboradores.    

Elton chega ao estúdio para gravar as canções de “Madman Across the Water” na posição de um artista vitorioso, pois ele vinha de três roteiros em cerca de apenas 10 meses rodando pelos Estados Unidos, sendo aclamado como grande bola da vez no pop naquele início dos anos 1970. Como artista, foi celebrado e bajulado na sua estada pela América. Para delírio de Bernie Taupin, letrista e grande parceiro musical de Elton, Bob Dylan foi um dos artistas que compareceu em dois shows de Elton em Nova York, e ao lado da esposa Sarah, visitou a dupla nos camarins. Dylan rasgou elogios para “My Father’s Gun”, uma das músicas de “Tumbleweed Connection”. Desse modo, ao final do tour, quando Elton e Bernie deixam os Estados Unidos, centenas de fãs foram se despedir deles no aeroporto. A Eltonmania estava começando.       

Elton John e Bernie Taupin

 Tiny Dancer

A letra de "Tiny Dancer" foi escrita por Bernie Taupin, parceiro de longa data de Elton John. Taupin disse que buscou capturar o espírito da Califórnia do início dos anos 1970, colocando um pedacinho de várias mulheres que conheceu na Ballerina que protagoniza a letra. O que todo mundo já sabe é que a canção foi inspirada especialmente numa de suas namoradas, Maxine Feibelman, que acabou se tornando a primeira esposa de Bernie. Maxine foi costureira da banda de Elton John e obviamente se casou com um músico (ou com um compositor, como a letra profetiza). Bernie e Maxine se divorciaram em 1976.

Quase 30 anos depois de seu lançamento, “Tiny Dancer” ganhou um novo sopro de vida ao ser incluída na trilha sonora do filme “Quase Famosos” (2000), de Cameron Crowe. A cena em que toda a trupe do Still Water canta a música no ônibus, tornou-se um dos grande momentos do cine-musical deste início de século e acabou introduzindo a canção para uma nova geração de admiradores. O título (pequena dançarina) se inspira nos movimentos delicados que Maxine fazia durante as performances da banda. Essa figura de linguagem também iluminou a personagem de Penny Lane (Kate Hudson) em “Quase Famosos”, inclusive com uma cena claramente inspirada nessa imagem materializada por Bernie e Elton na música. 

No documentário “Two Rooms”, de 1991, que mostra o processo de criação das músicas compostas pela dupla, eles revelam mais detalhes sobre o processo criativo de "Tiny Dancer". Não havia interação entre os dois: Elton ficava em um local e Taupin, em outro, e assim nascera essa música e tantas outras. Uma das críticas mais frequentes sobre "Tiny Dancer" foi a forma como Elton a interpretou, com um inglês próximo ao falado no Sul dos Estados Unidos. Anos depois, ele próprio reconheceu esse excesso.   

A letra fala de coisas simples: "Garota de calça jeans | Tão triste / Olhos e sorriso bonito  | Costureira da banda | Você se casará com um músico". Na lista das 500 Melhores Canções de Todos os Tempos da Rolling Stone, publicada em 2004, "Tiny Dancer" postula na posição nº 397. Um clássico absoluto do rock, canção que está no Monte Rushmore da música pop do nosso tempo.

     

— Levon

A letra, repleta de alegorias, narra a história fictícia de Alvin Tostig e seu filho Levon. É uma balada, mas também possui a energia do rock and roll, assim como representa a amplitude dos grande espaços, da música de Arena. É um dos centros emocionais do álbum, música que Elton voltou a incluir no setlist de seus shows mais recentes. Tive a oportunidade de ouví-la duas vezes: 2013 e 2017, ambas em Porto Alegre, e foi uma grande experiência perceber o quanto ela dialoga com o repertório dos anos 1970, e o quanto "Levon" envelheceu bem. Dizem que o nome da música é uma homenagem de Bernie Taupin a um de seus artistas favoritos, Levon Helm, lendário baterista e um dos vocalistas da The Band.       

— Razor Face

O velho bêbado de "Razor Face" parece um daqueles fracassados de "As Vinhas da Ira", livro de John Steinbeck que retrata a barra pesada dos tempos da Grande Depressão norte-americana. É outra das letras criticadas pelos biógrafos de Elton e Bernie, entre eles Tom Doyle, que escreveu o livro "Captain Fantastic".  Musicalmente é puro Elton John sound, com uma grande interpretação, vocais de apoio, um acordeom burlesco e todo aquele clima do rock dos anos 1970, com uma trabalho de guitarra sensacional de Caleb Quayle. 

Madman Across the Water

Piano de abertura, guitarra hipnótica, numa atmosfera intensificada pelas orquestrações de Paul Buckmaster, uma eclosão que se define no refrão, dramático, para logo depois desaparecer no vazio e começar tudo de novo. Parte da imprensa propagou uma referência de que o louco do outro lado da água (madman across the water) seria  uma menção a Richard Nixon, o que Bernie negou em várias entrevistas.     

— Indian Sunset

A tragédia do extermínio das nações indígenas está em "Indian Sunset". A descrição do cenário de uma aldeia dos índios iroqueses sendo atacada pelo exército, já no início da letra, é uma cena que foi incessantemente repetida não apenas na segunda metade do século XIX, mas também no cinema. O vergonhoso massacre das nações indígenas foi sumariamente acelerado pelas ações do governo norte-americano, contudo, ainda não aprendemos. Esse mesmo tratamento aos índios, como espúrias da nossa sociedade, ainda se dá em países como o nosso. Bernie traz a narrativa de um homem branco vivendo pacificamente entre os indígenas, o narrador da história, em primeira pessoa, é o mesmo homem que toma a filha do Chefe como esposa, mãe do seu filho. O letrista relembra a rendição de Gerônimo, que mesmo desarmado foi executado pelos soldados, sabendo que o mesmo irá acontecer com ele, pois não há piedade para os índios. E a imagem final, emocionante, revela que o protagonista sabe que um buraco de bala no seu corpo vai o levar até as pradaria celestes. A letra de Bernie Taupin, um apaixonado pelo imaginário western — o faroeste dos filmes, livros e gibis, vai de encontro com uma tendência daquele início de anos 1970: o revisionismo histórico do extermínio indigenista. 

Lembro que um ano antes de "Madman Across the Water" chegar às lojas, "Enterrem meu coração na curva do rio", de Dee Brown, um livro que certamente Bernie leu, se tornou um best-seller, uma narrativa que esteve pareada ao clima anti-belicista dos protestos contra a guerra do Vietnã. E mais: o mesmo livro ainda se alinha a uma série de filmes que descrevem cenas muito parecidas com a que foi relatada em "Indian Sunset" — "Pequeno Grande Homem" (1970), com Dustin Hoffman e direção de Arthur Penn; "Soldier Blue", com Candice Bergen e direção de Ralph Nelson, são bons exemplos. E ainda cito um HQ western, Ken Parker, de Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo, principalmente do episódio "Chemako", escrito e desenhado nos anos 1970 e distribuído no Brasil em 1979 pela extinta editora Vecchi (e que recentemente foi relançado pelo editora Mythos). 

Livro, filmes, HQ e a música vibram na mesma sintonia. Musicalmente, o início a capela soa como um réquiem ao estilo "good day to die" dos índios. O rufar da bateria de "Indian Sunset", como se fossem tambores de guerra, ameaçam mover os móveis de lugar se você aumentar o volume do som. O lado B começa em grande estilo, como uma saga, como se fosse a música de encerramento de um faroeste e estivéssemo vendo os caracteres na tela apresentando os créditos finais. 

— Holiday Inn

É uma letra que funciona como diário de viagem, pois documenta as experiências de Elton e Bernie durante as turnês nos Estados Unidos. A música pode ter sido escrita no pedaço de papel qualquer, como diário de bordo, durante um voo, com detalhes de como é aterrizar em Boston, depois desembarcar, pegar a limusine e ir direto para um hotel. É uma música que ficaria melhor no álbum anterior, "Tumblewwed Connection", ou no próximo, "Honky Château", com o espírito do rock californiano daquele início de anos 1970, claro que pelo olhar distorcido de Bernie/Elton e pela pomposa produção, o que contraditoriamente gera um resultado bem interessante.   

— Rotten Peaches

O que parece uma falsa-balada inofensiva — com um coro de anjos no refrão — na verdade versa sobre um criminoso drogado que não tem para onde ir. Mais um personagem de Bernie que ruma para lugar nenhum ou caminha a passos largos até o desastre: "Já estou farto de tanta cocaína e pílulas | Sob a luz do senhor, eu minto | Estou a dez milhas de casa".   

— All the Nasties

Através da letra de Bernie, que parece endereçada à imprensa, Elton fala que um dia irá revelar um segredo, uma questão pessoal. Hoje dá para imaginar que possivelmente seja um recado sobre sua sexualidade. "Se eles me fizessem a pergunta certa | O que eu poderia dizer a eles? | Certamente eu seria criticado pelas costas". E mais adiante diz: "Eu percebo a maneira que eles me retratam". Os dois minutos em que o coro de vozes repete a frase "Oh my soul" reflete a barra pesada e a danação que poderia trazer de arrasto com essa revelação. A letra é de Bernie, sempre é necessário lembrar disso, e é incrível como grande amigo de Elton, que o conhecia como ninguém, faz de "All the Nasties" uma reflexão dos dilemas pessoais e da alma do cantor. De todo omodo, é o ponto mais baixo do álbum, com alguma enrolação nas transições. O que poderia ser resolvida em 2 minutos e meio chega a desesperados 5 minutos de música.        

— Goodbye   

Se "All the Nasties" possuiu um bocaco de enrrolação, a poética “Goodbye”, dura menos de 2 minutos, passa o recado com invejável maestria e celebra uma das melhores letras e músicas de "Madman Across the Water". Uma canção triste e assustadora, que começa apenas com Elton e seu piano. Parece que o disco está recomeçando, mas está terminando. A orquestração funérea combina com o clima soturno deste Lado B, como se fosse uma despedida trágica dos todos os personagens, e Bernie Taupin nos apresenta sua obra-prima dessa leva de escritos musicados por Elton: 


"E agora que tudo acabou | Os pássaros podem refazer seus ninhos | Eu só vou nevar quando o sol sair | Eu só vou brilhar quando começar a chover | E se você quer uma bebida | Segure minha mão | Assim, o vinho fluirá para a terra e alimentará o rebanho | Porque eu sou um espelho e posso refletir a lua | Vou escrever loas dedicadas apenas a você | Eu serei sua colher de prata | Me desculpe por ter demorado tanto | Afinal, eu sou o poema que não rima | Basta voltar uma página | Eu vou me perder, eu vou me perder".
Parece uma letra premonitória, pois como disse Bernie poucas semanas antes a Elton, enquanto os dois curtiam anônimos as ruas de Nova York: "Acho melhor você aproveitar o anonimato agora, porque logo isso vai mudar". E Elton logo logo iria chegar ao topo, e se perder. Mas essa é outra história. Jerry Cantrell (Alice Chains) fez um cover que vale a pena ouvir de "Goodbye". Ouça AQUI 

Em 2013, na sua primeira passagem por Porto Alegre, Elton vestia uma jaqueta azul repleto de brilho e, ao virar de costas para plateia, era possível ler o nome do álbum com a logotipia idêntica à capa de “Madman Across the Water”. O álbum representa uma ponte entre o passado e o futuro de Elton, e certamente o teste do tempo o tornou maior do que ele já foi.  

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