"Get Back" é o maior triunfo documental dos Beatles

Os Beatles em "Get Back". Foto: Linda McCartney

Por Márcio Grings

Nenhuma hipérbole, superlativo ou excesso de adjetivos pode materializar a grandeza do filme do cineasta neozelandês Peter Jackson. É preciso vê-lo, absorvê-lo e incessantemente debatê-lo. Se os fãs de Beatles já eram megalômanos, agora, após "Get Back", o documentário, eles ficarão insuportáveis! Se em 1970, cerca de 50 horas de gravações feitas pela equipe de Michael Lindsay-Hogg resultaram em apenas 1 hora e 21 minutos de um 'fracasso monumental', como foi incessantemente ecoado desde sempre, cinco décadas depois, o mesmo material sob a 'curadoria' de Jackson, resultou em 7 horas e 48 minutos de uma obra-prima documental. Paul McCartney disse a Peter Jackson que, após ver as cenas brutas resgatadas pelo cineasta, Paul concluiu que aquele período não tinha sido tão ruim assim. A memória dele era a memória do documentário de Hogg. Na verdade, a lembrança ruim era algo compartilhado por todos. Uma realidade paralela fora construída pelo imaginário do filme de Michael Lindsay-Hogg, e já era tempo de um novo olhar resgatar esse material: "Eu gostaria de ir para o estúdio dos Beatles, sentar num canto, não interferir, e só assisti-los trabalhando", disse Peter Jackson. Com essa pulga atrás da orelha, o diretor da trilogia "O Senhor dos Anéis" começou a rever o material na tentativa de relatar essa história mal contada.  

Veja o live streaming do canal Pitadas do Sal que debate "Get Back" 

Você já pensou como cada ser humano enxerga a vida de uma maneira diferente? Tem outra — sabe aquela história de que se você passar uma receita para dois mestres cucas, cada um deles vai apresentar um prato com sabores distintos. E, caso você conte uma mesma história para dois sujeitos, há uma iminente possibilidade de que esse repasse ecoe de uma forma ambígua. A propagação de um fato como narrativa que apresenta diversos pontos de vista (muitas vezes) contraditórios sobre um mesmo assunto, e que convergem para um final inconclusivo, é chamado de efeito rashomon. O conceito surgiu inspirado no filme do cineasta japonês Akira Kurosawa, “Rashomon” (1950). O roteiro de Kurosawa e de Shinobu Hashimoto tem uma estrutura de narrativa não convencional que sugere a impossibilidade de obter a verdade sobre um evento quando há conflitos de pontos de vista. 

Nessa via, retornemos a “Let It Be”, o documentário, lançado junto ao LP homônimo em maio de 1970, poucas semanas após a separação oficial do grupo em 10 de abril daquele ano. Se compararmos “Get Back” (2021) com “Let It Be” (1970), ambos tem enfoque na mesma célula, mas o resultado é assombrosamente discordante. Contudo, nos dois temos cenas dos Beatles em Twickenhan e Saville Row, ensaiando canções e as gravando, assim como lá estão o registro da lendária apresentação no telhado do prédio da Apple, eventos ocorridos entre 3 e 31 de janeiro de 1969. Se fizermos uma dinâmica comparativa entre os filmes podemos realmente acreditar que “há mais coisas entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã filosofia”, como nos avisa William Shakespeare. E claro, eis um exemplo do tal efeito rashomon — o mesmo conteúdo resulta em dois materiais com pontos de vista distintos.

              

Entre as escolhas editoriais de ambos, Michael Lindsay-Hogg, diretor do documentário original, provavelmente apertado por um deadline mais curto (e pelo próprio desinteresse dos protagonistas em finalizar o filme), foi ao encontro a voz uníssona dos tabloides ingleses, ampliando aspectos pessoais e toda a confusão do imbróglio que marcou a dissolução dos Beatles: o “Let It Be” de Hogg mostra uma banda em colisão, próxima do fim, rumo ao seu epitáfio e num baixo astral tremendo, horroroso! Cinco décadas depois, quando ninguém mais imaginava que algo referente a esse projeto pudesse ressurgir ou trazer luz para algum fato novo ou relevante, Peter Jackson aproveitou o período pandêmico, reviu as cinquenta horas brutas das gravações originais e transformou um aparente novelo interminável, enfadonho e cheio de nós numa outra história. E com um resultado oposto. "Eles [a Apple Corps] me deixaram sozinho com aquilo e eu fiquei esperando assistir as cenas miseráveis das gravações como fora alertado. Eu assistia e ria. Pensava que era inacreditável. O que eu presenciava definitivamente não era o término dos Beatles". Na versão de Jackson, uma parte significativa do que está na minissérie “Get Back”, dividida em três partes e com quase oito horas de duração, já disponível na íntegra pelo canal Disney+, também aparece em "Let It Be. Ambos os filmes trazem drama e conflito de sobra nos ensaios e gravações. Contudo, o que fica no ar após concluirmos "Get Back" é uma sensação de vitória, de músicos laboriosos, de diversão, de missão cumprida, longe do fracasso ecoado historicamente em "Let It Be". 

    

Tenho certeza: os livros da história do rock precisarão ser reeditados. Um exemplo: ao reler trechos de “O Diário dos Beatles”, de Barry Miles (um biógrafo confiável), é possível conferir equívocos em relação ao que assistimos no documentário de Peter Jackson. As imagens falam por si, não há narrações em off, ou truques de edição. Há uma conversa elucidativa entre John e Paul (apenas em áudio, com microfone embutido num vaso de flor grampeado) registrada pela equipe de Hogg, quando podemos testemunhar como a dupla resolvia os conflitos internos, nesse caso o desaparecimento anunciado de George, que abandonou o set no meio de um ensaio. “Provavelmente, quando formos todos muito velhos, vamos concordar uns com os outros. E vamos todos cantar juntos”, diz Paul. Assim como em "Let It Be", “Get Back” também reflete uma banda que passa por um momento de transição, fora de seu território original, algumas vezes cansada, fragmentada, confusa e próxima de uma dissolução. Por outro lado, é inegável que há ainda muita força criativa nos Beatles, eles buscam incessantemente a aprimoração, trabalham muito e batem cartão diariamente no estúdio. É fácil perceber uma química invejável entre John e Paul — tanto nas brincadeiras, como velhos amigos que conhecem as piadas um do outro quanto musicalmente, como colegas de banda e coautores de diversas músicas — além de uma capacidade absurda da dupla em construir clássicos que permanecem como trilha-sonora da nossa existência até hoje. E todo o processo de ensaios e gravações se dá debaixo de muita pressão em cumprir o cronograma estabelecido pela produção do filme. 

Peter Jackson usou a mesma tecnologia de restauração de imagens de "They Shall Not Grow Old", documentário sobre a 1ª Guerra que ele fez em 2018.  Já os áudios de "Get Back" são resultado de uma ferramenta de inteligência artificial, criada especificamente para capturar o som em mono da equipe de Michael Lindsay-Hogg, agora separados individualmente e restaurados. Assim, a personalidade e os pontos de vista de cada um são ampliadas no documentário. Paul é o chefe. Até as pausas para o lanche, almoço ou o fim das atividades diárias passam por ele. Macca quase sempre é o primeiro a chegar e o último a sair. O maior workaholic do grupo demonstra ter as ideias mais objetivas nos arranjos, além de interferir, com a mesma objetividade, nas composições de John e George, demonstrando um preciosismo invejável (apenas confirmando o que todos já sabíamos). John é o eterno piadista, sempre pegando uma deixa e construindo uma nova anedota, seja ao mudar o sentido de uma letra ou até mesmo zoando na cabeça de alguém, o que não rebaixa seu gênio criativo. É necessário lembrar que, na época, Lennon estava afundado na heroína, meio que pacificado artificialmente pela droga, o que não desmerece sua atuação, pois o filme o amplia como um dos principais protagonistas dos Beatles e o coloca no patamar que ele merece. George, muitas vezes surge calado, aborrecido, principalmente no episódio 1, luta para fazer frente com suas canções contra uma das maiores duplas de compositores da história, e poucas vezes vence. Tanto que esse represamento resultou num álbum triplo, "All Thing Must Pass" (1970), triunfal estreia solo do beatle. Contudo, ao longo de "Get Back", George vai se soltando, dando mais de si, encontrando seu espaço na construção das novas músicas. Já Ringo, quase nunca abre a boca para debater algo, atuando como eterno coadjuvante na sua posição de instrumentista da banda n° 1 do rock mundial. Afinal "todos se sentem bem perto dele. Ele tem um coração gigante", como disse Linda McCartney para Michael Linday-Hogg em dado momento do doc. Ah, e a entrada de Billy Preston no projeto soa como uma injeção de alto astral no que já estava começando a esquentar. 

Yoko Ono, injustamente apontada como pivô da dissolução do quarteto, geralmente está sentada (calada) ao lado de John. Ela lê jornais, revistas, transcreve as letras do namorado, e outras vezes rabisca a escrita kanji numa tela estendida próxima a bateria de Ringo. Não vejo tensão ou constrangimento com sua permanente presença no estúdio. Linda McCartney traz sua câmera fotográfica e dispara vários de seus cliques eternizados em revistas e discos. Lá também está Ethan Russell, hoje reconhecido como um dos grandes fotógrafos do rock (ele é o responsável pelo sensacional álbum de fotos em "Qradrophenia" |1973| do The Who). As fotos da capa e contracapa de "Let It Be" são dele. Pattie Boyd, a esposa de George, dá o ar da graça em poucos segundos do filme. Na maior parte das vezes, ela simplesmente não estava lá. E Maureen, a esposa de Ringo, é um dos pontos altos do show no telhado. "A alegria de vermos Maureen balançar a cabeça para "Get Back". Ela era uma garota gritando no Cavern Club - ela é a única pessoa ali que entrou na fila e pagou para ver os Beatles", lembrou Rob Sheffiled, da Rolling Stone.    

"Get Back" é um livro aberto que revela as minúcias do processo criativo dos Beatles, e aí reside uma de suas maiores virtudes como documentário. E o documentário não tem pressa em nos revelar como se dava essa prática. Muitos criticam o filme por ser arrastado na parte inicial, mas eu vejo de outra forma: Jackson mergulha fundo nessas minúcias, não se preocupa em apressar certas resoluções, o que provavevelmente incomoda a geração atual, acostumada a instantaniedade do Instagram ou Twitter. "Get Back" é uma longa carta aberta a próprio punho, não é um retrato fake e impulsivo pensado como post para as redes sociais. Sacaram? Enquanto Paul apresenta uma ideia inicial de "The Long and Winding Road", Mal Evans, o faz tudo no entourage do fab four — e que também atuou como road manager nas turnês — anota trechos da letra ditados pelo próprio compositor (e ainda dá pitacos!). Mal ainda 'toca a bigorna' no arranjo inicial de "Maxwell's Silver Hammer". "She Came in Through the Bathroom Window" é ensaiada em clima de picardia. Entre uma pausa e outra, George interpreta uma versão voz e violão de "Mama, You've Been on My Mind" de Bob Dylan. Entre uma conversa e outra, John cita Martin Luther King e Alfred Tennyson enquanto Billy Preston improvisa em cima de "I Want You (She's so Heavy)". O ator Peter Sellers se junta ao grupo numa roda de bate-papo em Twickenhan. Ele logo salta fora ao perceber que não conseguirá comprender o humor liverpooliano. Bacana ver Eileen Kensley e Sue Ahearne, duas das incansáveis Apple Scruffs em ação na porta do estúdio em Saville Row. Eu me pergunto: onde estaria Lizzie Bravo? Heather, a filha de Linda com seu primeiro marido, o geólogo John Melvin See Jr, passeia pelos quatro cantos do estúdio como se estivesse num parque de diversões. John se esforça e dá o seu melhor para encontrar o solo perfeito em "For You Blue". Enquanto isso, Kevin Harrington, roadie do grupo, zurze pelos quatro cantos do estúdio, seja carregando equipamentos ou reabastecendo os bules de chá. Lindo de ver George ajudando Ringo (ao piano) com suas limitações harmônicas num esboço de "Octopus' Garden". Numa parte específica, a construção da letra de "Get Back", a música, o espectador é colocado numa sala vip onde ele pode ver como funcionava a dinâmica e o processo de composição de John e Paul (repare no preciosismo da dupla para encontrar o sobrenome de Loretta Fart, uma das personagens da música). Como que Michael Lindsay-Hogg deixou isso fora do filme de 1970? Várias das canções que estão em "Let It Be", o álbum, podem ser vistas em vídeo durante "Get Back", e isso é fascinante para qualquer fã dos Beatles. 

Reprodução Disney+ 

No controle de tudo, na cabine de gravação, lá está Glyn Johns, lendário produtor responsável pela engenharia de áudio, tanto em Twickenhan quanto no estúdio da Apple, em Saville Row. E no final do terceiro episódio, no registro do show no terraço da Apple, acompanhamos todos os detalhes e bastidores da apresentação: tanto lá embaixo, na rua, quanto no palco, lá em cima. Quando a tela se divide em três partes — ao estilo do que fez Michael Weidleigh no registro documental do Festival de Woodstock, filme lançado em 1970 — somos levados até o clímax/anticlímax com a polícia londrina interrompendo o show por reclamações dos vizinhos. "Get Back" nos passa essa sensação vitoriosa, muito distante do fracasso ecoado em "Let It Be", o filme. Um extrato desse sentimento está materializado bem no final, com os quatro Beatles ouvindo a apresentação gravada no terraço espremidos ao lado de Glynn Johns, George Martin, toda a equipe, esposas e namoradas. Tem um take que pega todos sapatos, os pés batendo no ritmo das canções. A felicidade e a sensação de dever cumprido ressoa pela tela. Eles venceram.  

Reprodução Disney+

Reescrevam os livros de música, coloquem "Get Back" ao lado de "The Last Waltz", como exemplo de excelência entre os documentários de rock. Reveja o filme mil vezes para que sejam extraído todos os detalhes. Os Beatles ressurgiram mais vivos do que nunca em 2021, dá pra acreditar nisso? O filme de Peter Jackson redefiniu o que parecia estabelecido e consumado. Salve, John, Paul, George e Ringo! "The Beatles is here to stay".               

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