Review: Shadow Kingdom, de Bob Dylan



Por Márcio Grings

“A tragédia e a comédia são dois campos que se tocam, o reverso da mesma moeda. Experimentar ambas só enriquece o ser humano e o torna mais sensível, mais compreensivo para com as contradições da própria vida”. A declaração de Buster Keaton (1895-1966), conhecido como ‘o comediante que nunca ria’, um das maiores estrelas do cinema mudo, se adapta perfeitamente ao protagonista de "Shadow Kingdom", apresentação virtual gravada por Bob Dylan em maio passado e que foi ao ar no último domingo (18). Lembro de Keaton, pois assim como o ator norte-americano, o tragicômico Dylan escolheu o passado como lar, tempo/espaço onde seu coração vive. Entre ambos, há (e houve) evidentes inadequações em aceitar a ordem das coisas. Filmado em preto e branco, o que vemos emula uma espécie de boteco de beira de estrada situado num universo paralelo de anos atrás.  


Num contexto pandêmico, mas sem máscaras, há uma minguada plateia acompanhando a apresentação (cerca de 15 pessoas), homens e mulheres aparentemente desinteressados com o que se sucesse do palco. Por outro lado, envoltos em nuvens de fumaça (os não fumantes não poderiam sobreviver cinco minutos nesse boteco), podemos entender o cenário posto como um exercício de beatitude: a música os coloca num estado de reflexão. Aos poucos, enquanto as garconetes repoem as bebidas nas mesas, o clima esquenta e os rostos parecem se iluminar. Adiante, há dança, integração, divertimento, mas nunca sem deixar de lado certa melancolia. E comicidade. "Talvez esta seja a imagem de Dylan do purgatório", escreveu o jornalista Doug Heselgrave (No Depression). Essa visão crepuscular é embalsamada por uma banda de jovens músicos impecavelmente trajados em vestes negras. E graças aos céus não há um maldito baterista para infernizar ninguém por ali, pois o contrabaixo de Janie Cowan dá conta do recado. "O conjunto musical usa máscaras, o que que oculta suas emoções e interações. É um efeito assustador que sugere a tragédia grega", complementa Heselgrave. Ao mesmo tempo, essa composição nos ancora no claustrofóbico 2021, tempos de insossos shows virtuais. 


Contudo, "Shadow Kingdom" está longe de ser uma apresentação insalubre. E assim como nos filmes de Buster Keaton, enquanto a apresentação evolui, o som das falas não apresenta sincronia com os movimentos labiais dos personagens ou aos acordes dos músicos. A farsa burlesca é sumariamente desmascarada quando percebemos que a banda está atuando num videoclipe, como um grupo pop que dubla a si mesmo. Assim, quando o público aplaude não há som de palmas. Entretanto, tudo funciona e nos captura. A la Jack Fate, o protagonista de "Mask and Anonymous" (2003), Dylan, o Rei das pegadinhas, novamente encena e nos mostra como flutuar nesse cortado. E aqui, em "Shadow Kingdom", a régua sobe. Se no longa-metragem de Larry Charles apenas as perfomances musicais obtém um resultado positivo, no filme de Alma Har’el (que assinou clipes dos grupos Beirut e Bajofondo) a ambiência emula o imaginário dos juke-joints do Sul profundo dos Estados Unidos. E além do mise-en-scène cênico, o resultado musical é simplesmente exuberante.   


No repertório, basicamente canções dos anos 1960/70, exceto "What Was It You Wanted", uma das melhores de "Oh Mercy" (1989), e uma das minhas preferidas desde sempre (não esqueça de ouvir a versão de Willie Nelson). Como um jogador que não economiza o ás escondido debaixo da manga, o show começa com uma cartada de mestre — a impressionante versão de “When I Paint My Masterpice”. Praticamente sem intervalo, "Most Likey Your Go Away" revive numa reinvenção cigana. "Queen Jane Approximately" ganha uma de suas melhores encarnações, para muitos o ponto alto de tudo que se ouviu. "I'll Your Baby Tonight" não é mais uma balada, agora temos um boogie woogie, contudo, alguém atirou no pianista! "Just Like Tom Thumb's Blues" emociona a velha guarda de fãs, e a desacelerada velocidade de "Tombstone Blues" pode ter decepcionado alguns (eu adorei!), pois Dylan não a canta — a declama em seu púlpito, igual um profeta do fim dos tempos, como de fato ele é. 


53 anos depois, "To Be Alone With You" tem uma nova letra, assim como a sempre necessária "Forever Young" é invocada como sermão da montanha. Em "Pledging My Time”, os casais se juntam e o salão celebra encontros românticos. Desencavada direto dos beirais dos anos 1960, "Wicked Messenger" oferece outro ponto dramático desse repertório. Mas é quando ouvimos "Watching the River Flow", em vestes caipiras e puxada pelo acordeom, só então percebemos uma espécie de alegria contagiante no ar. Ah, o blues! E aí chegamos em “Baby Blue”, canção de despedida novamente reinventada pelo mesmo artista que dobra a palavra reinvenção como se ela fosse um origami. Aproveitando a deixa, a melancolia é deliciosamente restaurada nos créditos finais, onde os ouvintes são capturados por um belíssimo tema instrumental. Tudo isso, bem empacotado, daria um excelente DVD, LP ou CD, quem sabe um dia... 

O Ocidente e o Oriente reverenciam “Shadow Kingdom”, pois Bob Dylan nos apresentou sua nova obra-prima.



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