Os Melhores Álbuns de 2020

Arte: dreamstime.com/
Por Márcio Grings

O sentimento de estar vivendo num mundo distópico se ampliou em 2020, certamente os meses mais estranhos e atípicos de nossas vidas. A sensação de que cada um vive dentro de sua bolha particular ganhou novas proporções com a pandemia. Toda vez que vejo listas dos melhores álbuns em sites e plataformas especializadas em música, sinto-me assombrado. O mundo que eu conhecia não existe mais. Esse é o décimo ano em que publicamos uma listagem dos nossos escolhidos. Contudo, sempre vale o aviso: muitas vezes algum álbum figurante em nossa relação possivelmente não esteja ranqueado em nenhuma lista dos grandes sites de música do Brasil e do mundo. É sempre uma visão particular, baseada naqueles discos que de alguma forma ou outra acabaram caindo nessa micro teia. 

 
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10 
— AC/DC "Power Up"

Qualquer moleque, que assim como eu, começou a ouvir rock and roll no início dos anos 1980, tem uma dívida com o AC/DC. Eu sou grato a eles. Assim, quando vemos essa retomada do grupo em pleno período em que estamos privados de sacudir o esqueleto num show musical, ouvir "Power Up" é como ingerir um poderoso energético. Esqueça tudo o que você ouviu do AC/DC até aqui, até por quê, eles irão relembrar você nessa audição. É tudo maravilhosamente igual. Os esboços deixados por Malcom ao irmão Angus estão revividos em "Power Up" — na voz de Brian Johnson, na bateria do fora-da-lei Phil Rudd, uma batida com sua digital característica. O baixista Cliff Williams também está de volta à escuderia, e na primeira base, Stevie responde pelo legado da família Young. O velho Angus está lá, saltitando em "Shot the Dark". Ao ouvi-la pela primeira vez, já nos segundos iniciais, e logo depois, ao assistir o clipe, posso dizer que tive uma das grandes alegrias do ano. Muitas vezes precisamos apenas do básico para ser felizes.         
 
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9 — 
Deep Purple "WHOOSH!"

Vamos a máxima — não se mexe em time que está ganhando. "Whoosh!" é o terceiro álbum na sequência assinado pelo produtor canadense Bob Ezrin (Pink Floyd, Kiss). E sucessivamente,  o bom "Now What?" é inferior a "Infinite", mas "Whoosh!" coloca os dois no bolso. O Deep Purple encontrou um caminho estável em sua formação MK VIII (2002-atualmente), ao qual tive a felicidade de assistir duas vezes (2014/2017). "Throw My Bones" reprisa o período funky com Coverdale/Hughes. Já "The Long Way Round" é puro Deep Purple anos 1970. Se "And The Adress" lhe soa familiar, palmas para você — trata-se de uma releitura do 1° álbum do grupo, "Shades of Deep Purple". Uma das marcas de  "Whoosh!" é uma linha mais comedida, menos arroubos instrumentais e um acabamento de composição mais focado na canção, a exemplo de "Nothing At All", que mesmo assim joga luz no teclado de Don Airey. Destaque para a bonita capa, adaptação de uma foto feita pela web designer russa Elena Saharova. Com de 50 anos na cola, o Purple segue firme no topo do ranking da 3ª idade idade do hard rock mundial.    

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8 — Neil Young "Homegrown"

"Homegrown", álbum perdido de Neil Young nos anos 1970, e só lançado em 2020, finalmente veio a tona. É uma obra sombria. A faixa título e "Star of Bethlehen" já eram conhecidas de "American Stars N' Bars" (1977). "Love is A Rose", afamada pela releitura de Linda Ronstadt, é muito semelhante a tomada inclusa em "Decade" (1978). "Little Wing" espelha a abertura de "Hawks & Doves" (1980) e "White Line" está transfigurada da versão elétrica de "Ragged Glory" (1990), sem o Crazy Horse e centralizada no violão. Das canções desconhecidas na discografia oficial, "Separate Ways" e "Try" poderiam figurar como outtakes de "Harvest" (1972). "Vacancy" rememora a eletricidade de seus melhores momentos nos anos 1970. "Mexico" traz apenas Neil e o piano, refletindo sobre sua fossa. "Kansas" versa sobre o tema monocromático do álbum —  a dor de cotovelo, mas por outro lado — elevando a moral  — o blues "We Don't Smoke It No More" nos joga na farra casual. Não é o melhor que ele já nos deu, mas é um bom álbum de Neil Young, melhor que 90% do que ouvimos por aí. 

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7 — 
Emma Swift "Blonde On the Tracks"

Emma Swift nasceu na Austrália, mas é residente em Nashville, Meca da música country. Em "Blonde on the Tracks" a cantora de 38 anos dedica um álbum inteiro apenas com interpretações de Bob Dylan. Surpreende primeiro por algumas escolhas pouco óbvias, temas pinçados do lado B do songbook dylanista, é o caso de "One of Us Must Know (Sooner or Later), "Sad Eye Lady of  the Lowlands" e "The Man in Me". Surpreende pelo clique instantâneo de colocar nesse balaio de gatos "I Countain Multitudes", um dos destaques do novo álbum do bardo, recentemente lançado. E surpreende principalmente pela qualidade de suas releituras. O disco é irretocável, seja pela produção segura de Pat Sansone (Wilco), pelos arranjos fora da casinha convencional e por puro arrebatamento que encontramos em músicas como "Queen Jane Aproximatelly" (como se fosse uma versão dos The Byrds). Esqueça a capa infeliz e não deixe de ouvir "Going, Going, Gone" e "You're a Big Girl Now", transcendentais. 

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6 — Laura Marling "Song For Our Daughter"

Incrível, mas Laura Marling acaba de lançar mais um álbum sensacional. Seus últimos três trabalhos entraram na listagem dos melhores em anos anteriores, nesse ranqueamentos do Memorabilia — "Once I Was an Eagle" (2013), "Short Movie" (2015) e "Semper Femina" (2017), e o mesmo ocorre com "Song for Our Daughter". Esse conjunto de canções funciona como recados para uma filha imaginária. "Only the Strong Survive", "Blow by Blow" e "Fortune" são música dignas de uma grande compositora, na escala de Joni Mitchell. A faixa-título soa crua, como uma demo registrada na sala da casa da cantora, até que um quarteto de cordas nos relembra que Ethan Johns não está para brincadeira em sua cadeira de produtor. A mesma sensação de simplicidade aflora em "The End of Afair", violão, voz e uma triste história de amor. E as luzes se apagam com "For You", uma canção de ninar para ouvir com os olhos fechados. Se o Grammy fosse uma premiação séria, a cantora inglesa Laura Marling já teria colocado um troféu na sua prateleira.    
    
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5 — Bruce Springsteen - "Letter To You
"

Toda a vez que me sinto desconectado, desprovido de algum envolvimento emocional com a música lançada nos dias de hoje, Bruce Springsteen me recorda que suas canções podem nos acordar desse transe. É o que aconteceu quando ouço "Burning Train", uma das faixas de "Letter To You". Novamente com o apoio da sua E Street Band, Bruce ainda resolveu resgatar três temas que ficaram de fora de "Greetings from Asbury Park, N.J", seu  LP de estreia em 1973, e entre elas — "Song for Orphans" é imersa pela influência de Bob Dylan. Já "Janey Needs a Shooter" nos leva sem escalas para a essência de  sua música nos anos 1970. "Letter To You" encerra com "I'll See You in my Dreams" e ecos de "Born to Run", enquanto cobre um campo temático diferente. É uma música síntese do espírito de Bruce Sprigsteen com sua E Street Band, pois permite que todos brilhem individualmente, numa letra que reflete sobre a perda de pessoas queridas e o rastro de saudade que elas deixam com sua ausência.       

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4  — Ira! "Ira"

O 12º trabalho autoral da banda surge após 13 anos sem novidade no front. "Ira" (sem a exclamação incluída como marca registrada junto ao nome da banda), é um álbum que denota a maturidade de um dos mais importantes grupos do rock nacional. As letras exaltam o amor, o feminismo, insurgem contra a opressão e estimulam reflexões sobre o passar do tempo. O disco começa com um chute na porta — "O amor também faz errar", canção que evoca à lembrança do mod dos anos 1960. "A nossa amizade" parece uma tema esquecido da Jovem Guarda. A semiacústica "Mulheres à frente da tropa" ganha credenciais para se tornar em hino feminista. "Chuto pedras e assobio" soa triste e reflexiva, além de espelhar a individualidade e a solidão dos dias atuais e, "Efeito Dominó", com participação de  Virginie Boutaud, é a sinfonia do disco, uma balada seminal com todos os adjetivos que a colocam no panteão das grandes canções do grupo. Louco para ver tudo isso ao vivo! 

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3 — 
Bebeto Alves "Oh Blackbagual pela Última Vez!"

"Bebeto Alves é peripatético" — fomos sabiamente avisados pelo produtor musical Sérgio Carvalho, em "Mais uma Canção", documentário de Rene Goya Filho lançado em 2013. E entre suas extravagâncias, Bebeto é um artista com raro destemor, ele se aventura, mais acerta do que erra, e assim como Neil Young nos anos 1980, é difícil prever seus próximos passos. "Oh Blackbagual pela Última Vez" é um álbum de milongas, mas claro, milongas ao estilo de Bebeto, diferente na construção, por exemplo, dos discos em que gravou apenas músicas de Mauro Moraes. O novo álbum é sublime, universal — milongueiro até por dentro dos ossos, mas impregnado de muitas coisas — de rock, de regionalismos, de pop, de tudo um pouco. "João Madrugada", "Outras Verdades", "Milongaria", "Milonga" e "As Coisas" são perfeitos exemplos do flerte com a alma rio-grandense, mas com espírito livro, sem tramelas ou cercanias delimitadas — é música para o mundo! E e ainda temos a frippiana "Não Volto Mais", os orientalismos de "Nego de Alah". Bebeto sendo Bebeto — indispensável. Azar de você que ainda não ouviu... 
  
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2 — 
Pretenders "Hate For Sale"

Chrissie Hynde é uma sobrevivente, uma ativista do rock. E "Hate for Sale" é o melhor disco do Pretenders neste século. "The Buzz" acorda o fantasma do guitarrista James Honeyman-Scott; "You Can't Hurt of Fool" parece uma desfigurada releitura de alguma balada dos anos 1950; "Turf Accountant Daddy" e I Din't Know When to Stop" resgatam um rigor ausente no rock de hoje; "Maybe Loves in NYC" poderia tocar nas FMs, se as FMs de hoje pudessem ser levadas a sério. "Junkie Walk" é puro punk e "Crying in Public" é uma piano song comovente: — "Chorar em público é lamentável / Uma mulher apaixonada é algo muito delicado / Triste sem algum motivo aparente / Chorando em público, no carro ou no shopping / Chorando em público, chorando em público". Simples, direta e confessional como uma boa canção deve ser. E Chrissie Hynde continua uma cantora inoxidável.    

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1 — Bob Dylan "Rough and Rowdy Ways

“Rough and Rowdy Ways” é lírico, literário, extremamente caleidoscópico e muito mais do que apenas 'áspero e turbulento' como o título sugere — muitas vezes também há delicadeza e refinamento. "I Countain Multitudes”, tema inspirado inicialmente em "Song to Myself", poema do escritor norte-americano Walt Whitman, é puro lirismo; "False Prophet" se assemelha ao Chicago blues; “I’ve Made Up My Mind to Give Myself To You" passa raspando no gospel e Dylan nos entrega uma de suas baladas inesquecíveis;  "Black Rider" é um poema sombrio; "Goodbye Jimmy Reed" percute a lembrança dos inferninhos no Sul dos Estados Unidos; "Mother of Muses” é ao mesmo tempo uma canção de amor, um tema sobre solidão e morte, um tratado sobre história e cultura. Alguém já pensou em ouvir um blues com letra que descreva imagens análogas a Roma Antiga? — "Crossing the Rubicon" é a responsável por esse feito. "Key West" divaga visões do passado e meditações sobre a imortalidade e "Murder Most Foul" é uma paisagem sonora que encerra o álbum como obra-prima visual.  Qualquer lista dos Melhores do ano que não relacionar “Rough and Rowdy Ways” é uma maldita FAKE NEWS.

Abaixo ouça uma playlist com alguns temas selecionados dos 10 álbuns. 

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