A longa estrada aberta por "Easy Rider"

50 anos de Easy Rider. Foto: divulgação Columbia Pictures


Por Márcio Grings

Quem nunca teve, ao menos uma única vez, vontade de mandar tudo para bem longe e, literalmente, colocar o pé na estrada? Como seria bom esquecer horário, compromissos, não ter um chefe a lhe ditar ordens e mais ordens, etc. Bom, pelo menos em pensamento, todo mundo já deve ter imaginado isso um dia. Essa teoria da contravenção está diluída em muitos filmes, livros, músicas e também nas histórias que você já ouviu ao longo da sua vida. Alguém que foge de casa e nunca mais é visto, um conhecido que abandona a faculdade de medicina e abraça a música como meio de vida, uma jovem que resolve chutar a monotonia de um emprego público e se dedicar ao artesanato. 

A transgressão, a quebra de regras ou do próprio maneio convencional em que a ordem natural das coisas involuntariamente nos conduz, sempre perturbam o traquejo de uma sociedade viciada em não sair do trilho. Por que alterar o que teoricamente não precisa ser mudado?



No livro "Viajante Solitário", Jack Kerouac já previa a extinção do autêntico vagabundo norte-americano. Sua retórica passava por defender andarilhos ilustres. Jack relembra no seu texto figuras como Jesus Cristo e Benjamin Franklin, que, segundo ele, viveram como poucos a arte de perambular. Ainda na linha de raciocínio do Rei dos beats, o vagabundo whitmanesquo estaria com os dias contados devido à tirania do capitalismo, principalmente pelo crescente culto à sociedade de consumo. Isso já começava a ser percebido pelo visionário escritor de "On The Road", lá pelo final dos anos 1940. "Tenho um bom chapéu na cabeça / uma trouxa às costas / o meu bordão / a brisa refrescante & a lua cheia". Pois bem, essa livre associação do poema de Dwight Goddard, entre idealismo, audácia, individualismo e culto à estrada, nos cai como uma luva na caracterização dos personagens do filme "Easy Rider", que chega aos 50 anos de seu lançamento na grande tela. Na trama (que trama?) a saga de dois jovens experimental a liberdade total enquanto atravessam o país com suas motocicletas.    

Numa das cenas  iniciais de "Easy Rider", ou "Sem Destino" como o filme foi batizado no Brasil, o personagem de Dennis Hopper (Billy) pergunta as horas a Peter Fonda (Whytt). Depois de certificar o horário, Whytt joga fora o relógio de pulso para logo após acelerar sua moto Harley Davidson em direção à estrada aberta. Esse espírito de liberdade que coopta nossos heróis ainda nos leva de imediato ao espírito dos proscritos do oeste selvagem do século 19.



Os próprios nomes conduzem a essa lembrança, pois lembram o lendário xerife Whytt Earp e o pistoleiro Billy The Kid. A lei e o bom bandido lado a lado? Billy & Whytt solfejam na mesma pauta e vivem num mundo onde a ausência de regras é bem-vinda. Um universo paralelo que está fixado para sempre na Geração Woodstock, uma norma sedimentada no final da década de 1960, logo após o colapso do american way of dream vivenciado pelos baby boomers (nascidos após o final da Segunda Guerra Mundial). De certo modo, a aventura começa em clima de total subversão, aparentemente financiada pela venda de uma carga valiosa de cocaína para um almofadinha (vivido no filme pelo músico e produtor Phil Spector).



Assim, logo de cara somos informados: - eles não são politicamente corretos. Longe disso! Em outro viés, o filme toca fundo na questão do preconceito, da estranheza que o 'diferente' desperta no cidadão médio. Pra começar, cabelo comprido é coisa de maricas. No entanto, Billy e Whytt parecem não se importar muito com toda essa ladainha. Porém, muitas vezes se assustam (como no vídeo acima). No fim das contas, o grande objetivo da dupla é chegar sã e salva até o tão desejado destino final: o Mardi Gras em Nova Orleans.



"Sem destino" foi escrito por Peter Fonda e dirigido por Dennis Hooper, feito com apenas 400 mil dólare (um orçamento ridículo para os filmes naquela época), naquele que é, sem sombra de dúvida, o projeto de suas vidas. Assim, de certo modo, fora do esquema dos grandes estúdios, também ajudaram a criar o cinema alternativo. Indicado a dois Oscar (Ator Coadjuvante e Roteiro Original), levou uma estatueta em Cannes (Melhor Filme), entre outras láureas. O clube de amigos reunido pela produção do longa ainda conta com a primorosa ajuda de Laslo Kovacs (Diretor de Fotografia), além da participação de Jack Nicholson - na época prestes a decolar como nova estrela em ascensão. Jack rouba a cena em vários momentos. A cena em que empina uma garrafinha de Jim Bean logo após deixar a prisão é antológica. Depois de "Easy Rider" ele seria um dos novos astros do cinema norte-americano.



O filme inaugurou a era do vídeo-clipe antes mesmo dela existir, antecipando o formato MTV de promover uma canção, imaginando a moldura específica de imagens dramatizadas com uma canção como pano de filme. Logo de cara, "The Pusher" (Steppenwolf) faz o abre-alas, emprestando um inicial tom de tensão à trama.  A cena seguinte com as motocicletas atropelando os créditos iniciais ao som do hard rock "Born To Be Wild" (com o mesmo Sttepenwolf) nos faz pisar com gana no acelerador, como se fossemos os próprios protagonistas da sequência em ação. O clima bicho-grilo dá o ar da graça ao som dos The Byrds, em "Wasn’t Born To Follow", quando Whytt resolve dar uma forcinha a um caroneiro hippie.



Logo depois passeamos pelo Monument Valley e exploramos a lendária paisagem onde grande parte dos filmes de faroeste foram filmados. A apoteose acontece ao som da balada "The Weight", canção do The Band que romantiza os andarilhos e a poeira de estrada, pano de fundo perfeito, iconizado por John Ford nos filmes de faroeste. Ainda temos a guitarra de Jimi Hendrix, o clima caipira do Fraternity Of Man (com outro showzinho particular de Jack Nicholson), o folk dylanista de Roger McGuinn, The Holy Modal Rounders e Electric Prunes. Não se fala em "Easy Rider" sem mencionar sua trilha sonora. Filme e música andam de mãos dadas o tempo todo.



Uma das grandes críticas feitas ao longa na época reverbera na explícita apologia às drogas, aparentemente conduzida com certa dose de irresponsabilidade por Fonda e Hooper. Contudo, é preciso contextualizar o cenário do final daquela década, absorvido pelo messianismo da era Paz & Amor. Dentro da trama, a maconha não passa de um agente que os legitima na jornada de curtição e experiência. "Easy Rider" talvez tenha sido o primeiro filme a abordar o tema com tamanha contundência e coragem. Essa liberdade ideológica acabou abrindo o caminho para uma série de outros filmes, tanto que, nos anos seguintes, a temática das drogas foi vastamente explorada pelo cinema mundial.



O modo como o filme foi realizado - praticamente sem um roteiro previamente amarrando a história - é outro constante alvo de discussão. No final das contas, essa forma deliberada de contar uma história acabou vazando e influenciando cineastas em diversas partes do mundo. Fonda e Hooper não descobriram a América com "Easy Rider", mas o road movie por excelência está na genética dessa intenção. Como diria o poeta Gregory Corso: “Estar na esquina à espera de ninguém é poder”. Esse bordão da vagabundagem e do gerenciamento do poder, poderia ser o epígrafe daqueles que nunca abandonaram o espírito indômito do conhecimento. Billy (o bronco e explosivo) & Whytt (o mais calmo, inteligente e introspectivo), uma dupla de vagabundos dos sonhos, onde o único objetivo parece ser apenas seguir em frente.

Abaixo a dramática cena final (contém spoiler).
   

"Easy Rider" pertence aquele naipe de filmes que nunca fenecem no coração dos entusiastas do gênero. O exercício da vagabundagem deveria ser disciplina obrigatória nas universidades. Todas essas lições de catecismo estradeiro permanecem pairando em algum lugar, certamente no coração dos idealistas, outsiders e amantes do espírito de liberdade emulado no filme.

Em tempo: essa postagem está sendo publicada poucas horas após o anúncio da morte de Peter Fonda, saiba mais AQUI. Seu desaparecimento é uma daquelas perdas que nos faze rever a importância da arte em diversas questões levantadas no filme, inquisições ainda vigentes no cenário atual de nossa sociedade.


Peter Fonda, Whytt ou Capitão América?. Foto: divulgação Columbia Pictures

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