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Lu Anne Henderson. Foto: reprodução |
Por
Márcio Grings
Estudos culturais e literários da década de 1950 tendem a se concentrar em duas coisas: conformidade e seu respectivo colapso. Juntamente com Marlon Brando, James Dean e Elvis Presley, no exame superficial e etnocêntrico desta êxtase cultural em que todos deveriam estar congelados, os escritores e poetas beat são geralmente creditados por sacudir o cidadão médio e conduzi-lo à revolução cultural dos anos sessenta. Essa teoria superficial na verdade é apenas o estopim do movimento literário promovido pelos escritores ligados a geração beat, ao mesmo tempo que filmes como "Juventude Transviada" esquadrinhavam um novo padrão de juventude e Elvis Presley sacudia os quadris em frente a uma audiência incrédula.
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Jack, Lu Anne e Neal, na representação cinematográfica de On The Road. Divulgação |
Por muito tempo, essa espécie de revolução cultural definiu um sentimento sobre os beats, principalmente se você fosse um leitor casual, não afiliado ao autêntico espírito desses malucos que viraram de ponta-cabeça os padrões de escrita e de comportamento. Se você gostava de rock'n'roll, carros, drogas, cabelo cumprido, paz e sexo livre - se você fosse cético em relação à autoridade institucional - provavelmente gostava do beats. E se você não se sentia conectado a nada disso, provavelmente os odiava. Desde o início, os acadêmicos tinham sua própria agenda esnobe a respeito dos beats, baseada principalmente em restrições moralistas e sabe-se la mais o quê, uma realidade que ainda vigora. Nada disso abalou a popularidade do mais icônico livro produzido por essa geração de escritores - afinal, você pode comprar uma cópia de “On The Road” em praticamente qualquer livraria decente no mundo ocidental.
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Mas desde os anos setenta, um tipo de crítica vem se desenvolvendo, algo que os aficionados da geração beat não podem ignorar, uma corrente que analisa a escrita e a cultura da beat como enraizadas na misoginia deliberada ou inadvertida. Há recorrentes afirmações de que Jack Kerouac e Neal Cassady, em seus constantes vais e vens pela América, estavam protagonizando um 'Clube do Bolinha' onde não havia espaço para as mulheres. Assim, qualquer mulher que os acompanhava - como Lu Anne Henderson, por exemplo - poderia ser vista como uma espécie de vítima de suas terríveis maquinações sexuais e libertárias, sendo consequentemente difamada pela sociedade como uma mera prostituta adolescente. Com "On The Road", Jack passou a ser visto como cronista oficial dessa gangue de proscritos, como a própria sinopse do livro de memórias de Joyce Johnson (Minor Characters) apontou em 1983, delatando, entre outras coisas, seu breve relacionamento como namorada do próprio Kerouac. Dentro do contexto dos beats, as mulheres eram personagens secundários, isso na melhor das hipóteses.
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No contra-fluxo desse ponto de vista, “One and Only: The Untold Story de 'On The Road'” é um livro muito importante, na medida em que reconfigura o papel das mulheres dentro da suposta história real que inspirou "On The Road", principalmente dando ouvidos a quem - por justiça - merece ser ouvido. E não apenas isso - estamos falando de uma presença legítima na moldura que enquadra essa lendária epopeia, alguém que esteve lá, próximo a tudo, vivendo lado a lado diversos momentos da trajetória que virou livro/filme e está arraigada às estradas vicinais da cultura pop. A mulher em questão é a própria Lu Anne Henderson, conhecida por todos que leram “On The Road” como Marylou”. Lu Anne, que tinha sido esposa de Cassady, viajou de carro pelo país com seu marido em 1946. A mesma Lu Anne que catalizou o
ménage à trois do casal com Jack ou Ginsberg. Lu Anne, que em 1948, apesar da anulação de seu casamento com Neal, quando o mesmo passou a viver com Carolyn Robinson, como amante, Lu Anne novamente viajou pela América com Cassady, e depois apenas com Kerouac, já em um estágio final da jornada. Era ela a jovem que fumava baseados com Cassady, Kerouac e Allen Ginsberg, celebrando a véspera de Ano Novo de 1948, para logo depois novamente colocar o pé na estrada com Jack e Neal para Argel, Louisiana, levando como penduricalho uma amiga que seria deixada na casa de William S. Burroughs.
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As aventuras de Lu Anne foram relatadas a Geraldo Nicosia em 1978, mesma época que o autor estava pesquisando e montando sua biografia de Kerouac. Por outra ótica, estamos falando de um tempo em que o feminismo estava ainda no berçário, e definitivamente, Lu Anne não era o tipo de mulher que ficava em casa como um das tantas meninas comportadas (e empacotadas) daquele tempo, totalmente fora do tempo e dos moldes pré-concebidos em jovens entendiadas (ou não) com sua vida suburbana da década de 1940.
Esse é um dos clichês que podem ser desmontados sobre as representações da mídia a respeito da geração beat: Lu Anne não apenas viajou pelo país de carona com Jack e Neal, ela também se maravilhou com a estrada e teve suas próprias epifanias descoladas das visões de seus companheiros. Por outro lado, assim como vários homens e mulheres de seu meio de convívio, obviamente Lu Anne também havia se rendido ao charme do bissexual Cassady: "Eu adorava o jeito de Neal. Eu estava sempre pronta para partir com ele para uma nova viagem", disse em um de seus relatos.
Por que será que os críticos - sejam eles homens ou mulheres - por anos e anos acusam os beats de misoginia? Por que eles preferem pensar que as mulheres que viajaram - e as mulheres que ficaram em casa - em seu falso constructo histórico, não foram igualmente responsáveis por suas próprias decisões? Em sua descrição, Lu Anne é clara - ao longo da jornada, ela foi responsável pelo seu próprio nariz, sem ficar apenas atrelada a figura de Neal. Ela não foi manipulada por ninguém, não estava viajando contra sua vontade, ela não perdeu nada - exceto talvez um romance mais íntimo que poderia ter compartilhado com Jack. Contudo, Lu Anne conseguiu vislumbrar profundamente a alma de ambos. Ela afirma que nem de longe era um joguete fácil dentro de suas relações e que sua persona não passa nem perto da 'piriguete' retratada por Carolyn Cassady em seu livro "On The Road", ou até mesmo figura ingênua e apagada que vimos no filme "Heart Beat".
A maior parte da narrativa na entrevista de Lu Anne lembra em detalhes os mesmos eventos que Kerouac descreve em "On The Road", mas do ponto de vista de Marylou. Como uma autêntica romancista, Lu Anne ainda se revela uma excelente contadora de histórias, com uma memória invejável para guardar pequenos detalhes. Graças a Nicosia, e a forma em que o livro é conduzido, os atendentes de postos de gasolina também podem ser vistos como poetas, segundo a ótica de Lu Anne.
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A entrevista também reflete o declínio precipitado de Kerouac, quando a fama chegou - tarde demais para um homem já exausto e desapontado com a vida, diz ela. Lu Anne nos privilegia um vislumbre inédito de seu exaustivo relacionamento com Neal, com quem manteve contato irregular até o fim de sua vida, pouco antes da fatídica viagem até México. "Para onde vamos depois daqui, querida?” Neal pergunta a ela. Ficou claro que a resposta, para Neal, não estava em lugar algum. Os trilhos da ferrovia em San Miguel de Allende, e uma morte solitária pela insolação o aguardavam.
"One and Only" conclui com uma carta não enviada de Lu Anne para Neal, datada de 1957. E por último, um adorável relato, íntimo e comovente de 31 páginas de Anne Marie Santos, pela filha de Lu Anne. Trata-se de um livro belamente concebido, editado e escrito e, pelas razões descritas, podemos estar convencidos de que há um acréscimo importante de informações a todos aqueles que são apaixonados pela beat generation.
Fonte: Holly Communion. Tradução livre: Márcio Grings
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