First listen: Zuli "Apesar desse mundo" (2019)

Capa do álbum. Divulgação
Por Márcio Grings

Compositor, produtor, músico de mão cheia e artista nato, visão tátil que se mescla em suas atuações, Adriano Zuli é um dos grandes talentos advindos do cenário musical de Santa Maria - RS. Com a Gerigonça, Zuli gravou dois trabalhos e tocou em importantes palcos do país, como Circo Voador (Rio de Janeiro) e Festival Psicodália (Santa Catarina). Com a Jack of Hearts gravou o EP "Light & Shade" (2013). Como músico convidado - na posição de session man - contribuiu com inúmeros grupos/artistas da cidade e do estado, entre eles Pylla C14, Guantánamo Groove, Quarto Ácido, entre tantos outros. No teatro, atuou e compôs números musicais inéditos para espetáculos como "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá" (2011) e "Gabriela, Cravo e Canela" do grupo Teatro Por Que Não (2012); além de "A Caligrafia de Dona Sofia" e "Bonequinha de Pano", pela Cia Retalhos de Teatro (2015). Como intérprete, um de seus grandes momentos certamente está em "Mutante: as cores e os sons de Arnaldo Baptista" (2015),  projeto apresentado no Theatro Treze de Maio, espetáculo que nos assombrou com sua encarnação artística de Arnaldo Baptista, um dos mais genais artistas ligado ao rock nacional.   

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E eis que Zuli finalmente apresenta ao mundo seu debute solo no surpreendente "Apesar desse mundo", álbum, gravado ao longo de 2018, com previsão de lançamento para esse mês de fevereiro. "Delicadeza", primeiro single divulgado, já pode ser ouvido AQUI. Em "Apesar desse mundo" o músico compõe, arranja, produz, toca piano e teclados, e na maioria das vezes, busca apoio apenas no baixo de Rodrigo Cassuli e na bateria de Bruno Sesti, além de pontuais e importantes participações. Na temática, Zuli faz crítica social, fala do amor, do cotidiano, de política, esbanja bom humor, chama atenção para os desvios da ignorância, além de explicitar diversas mazelas, contradições, tristezas e alegrias comuns a todos nós. 

Viajando pelas 11 canções do álbum, dá pra perceber que a ligação com a MPB é uma das principais marcas do trabalho de Zuli. Por mais que haja permanentes trânsitos com gêneros como jazz, rock e até pinceladas de blues, não há como não ligar as composições/arranjos de "Apesar desse mundo" com o melhor da música brasileira. Guardada as devidas proporções, há fragmentos diversos que me aludem a lembrança de nomes como Walter Franco, Jards Macálé, Tom Zé e muito da fase solo de Arnaldo Baptista. Consequentemente, há experimentação, ousadia e uma zapeada valendo fora da curva habitual daquilo que hoje ouvimos corriqueiramente no cenário da música autoral [de qualidade] feita aqui no Brasil, principalmente nesses tempos desoladores que que vivemos.

A abertura do álbum nos oferece "O que posso fazer", faixa coescrita com Marcelo Rosa, perfeito abre-alas que expõe de cara várias virtudes de "Apesar desse mundo", uma delas o talento de Zuli como tecladista versátil, um músico criativo que nunca se furta de alternar teclas e timbres, invariavelmente com muito bom gosto. Um bom exemplo da escolha vicinal nos arranjos, dessa trajetória proposital em não trilhar um caminho usual, certamente está na divertido/subvertido "Samba pós apocalíptico", parceria de Zuli com Pedro Ribas, João Carlos Da Nova e Guiga Saldanha. "Roupa", com participação de Paulo Noronha, é o único momento guitarrístico do álbum onde a guitarra não impera e praticamente não existe. Noronha representa esse legado com categoria. "Carolina", jazzística e falsamente instrumental, traz a parte cantada apenas nos últimos segundos do tema, com destaque nos samplers de Bruno Sesti, além dos sutis vocais de apoio de Jordana Henriques, Helio Abreu e Diego Fiorenza.

"O que há"é uma música pronta pra cair na boca do povo, um hit certeiro com letra divertida e repleta de viradas e variações, um claro exemplo da 'escola Mutante' de Zuli. O pop low-profile "Simple as a tree", soa grandiosa no refrão, uma música que poderia figurar num álbum de Beck ou de algum artista gringo atual. Outro dos momentos importantes do álbum está em "Parte", naquela que talvez também seja a melhor letra do disco. O número conta com percussões de Edmilson Dias. "Único blues" também nos vende ecos de Arnaldo Batista, um blues brasileiro em que novamente brilha a proficiência do protagonista como instrumentista. "Delicadeza", primeira faixa revelada de "Apesar desse mundo", parceira do músico com Pedro Ribas, Pirisca Grecco, Raphael Madruga, Erick Correa e Rafael Ovídio, desmonta o baião e se apropria de várias conexões com a música brasileira e o pop.

Com glockenspiel e piano a frente, uma das minhas preferidas certamente é "Going to Colombia", uma canção de 2013, registro translúcido do talento de Zuli como arranjador e de como certas composições precisam de tempo para amadurecer. "A letra conta a história do cara que foi deixado por sua namorada por ser muito preguiçoso. Enquanto ele dorme, ela faz as malas e parte para a Colômbia", revela o autor. Quem nunca se deparou com uma história semelhante? Essa é outra das virtudes de "Apesar desse mundo", trata-se de um disco pulsante, não linear, repleto de boas histórias e de vida.

"Estátua do diabo" é um manifesto político repleto de ironia, uma música que reflete os tempos caóticos em que vivemos, e como a música ainda pode ser utilizada como instrumento de panfletagem. "Alguns anos atrás, vi um vídeo de um grupo de religiosos satanistas que resolveram instalar uma estátua de Baphomet [figura mística com ares diabólicos] em plena praça pública na cidade de Detroit, nos Estados Unidos. Eles alegaram que, em outros espaços públicos da cidade, haviam imagens e esculturas de santos e anjos ligados à igreja católica e que em um país laico, isso não poderia ser aceito. Portanto esta estátua do diabo foi um protesto. Pensei em escrever sobre isso quando vi, em plena televisão aberta, deputados na câmara brasileira votando o impeachment da presidenta usando o nome de Deus como justificativa", nos entrega Zuli sobre sua principal fonte de inspiração. Nenhuma música poderia ser mais perfeita para cerrar as cortinas de seu álbum de estreia.

"Apesar desse mundo" tem inúmeras credenciais para circular longe daqui, ganhar destaque e catequizar novos ouvintes. E este primeiro passo frente ao grande público já tem data marcada: Zuli é um dos artistas confirmados para o Pira Ruaral 2019, festival independente de música que acontece no mês de Abril, na Camping da Cascata, em Ibarama - RS. Sim, se você é um daqueles caras que reclama da falta de novos nomes e de nova música inteligente no front, eis uma boa chance de perceber que os ventos podem estar mudando. Geralmente quando a coisa fica osca, os grandes artistas ressurgem. E Zuli, certamente é um deles.  

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