Com
ingressos vendidos há quase um ano, imagens impressionantes rodando pelas redes
sociais e muita polêmica envolta, a quarta passagem de Roger Waters pelo Brasil
por si só já seria histórica. E está sendo, ainda que não por seus motivos mais óbvios. Dono
de um legado que o posiciona ao lado de alguns dos mais expressivos gênios da
cultura contemporânea, o baixista do Pink Floyd trouxe ao Brasil a turnê Us + Them, uma ode à tolerância reforçada por seu último trabalho, o espetacular Is
This the Life We Really Want?, de 2017.
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Foto: Rodrigo Ortega |
Tive
a oportunidade de acompanhar todas as turnês do músico inglês pelo país, mas
nem de longe em uma situação tão caótica como a atual. Vivemos tempos sombrios,
de polarização, onde a intolerância e a avalanche de fake news são capazes de
deturpar o inimaginável. Esqueça o papo-furado dos anos 1970
de que furar o cérebro com uma furadeira causaria mais “barato” ou de que é
possível atingir o nirvana somente com o pensamento. Estamos falando de algo tão poderoso que faz com que a realidade seja reescrita como uma autêntica paranoia distópica. E diante de um artista tão
engajado como Roger Waters, isso se torna um prato cheio para quem é mal
intencionado.
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Foto: Fábio Tito |
Com
casa cheia para os dois shows em São Paulo, Roger Waters trouxe ao país
exatamente o que se viu nas imagens ao longo dos últimos meses. Um telão que
extrapola a realidade, o som quadrifônico que tanto marca suas apresentações e
um setlist milimetricamente desenhado para transmitir uma mensagem de
tolerância e resistência. O show estava pronto.
Ao
vivo Roger Waters é apenas a extensão do idealista que cresceu com o trauma de
saber que seu pai e avô foram mortos por nazistas nas duas primeiras Grandes Guerras. Ao lado de uma banda
competente, que tem como destaque o guitarrista Dave Kilminster, reforça ainda
mais um discurso que sempre permeou sua carreira, mas que pode ser conferido com
maior ênfase em obras seminais do Pink Floyd como
The Wall e, posteriormente,
The
Final Cut. Nunca foi só música, mas
esqueceram de avisar o público.
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Fotos: Fábio Tito |
Em
sua luta contra a opressão das minorias, o fascismo e o preconceito, Roger
canta, vibra e faz uso de uma gama tão potente de luzes e imagens que é
impossível passar indiferente. Pinçando pérolas de seu repertório que dão
unidade a um discurso forte, ascende contra uma perigosa tendência conservadora
que assola o país. É assim que faixas de
Dark
Side of the Moon (
Speak to Me, Breathe
e
Time) e
Wish You Were Here (
Welcome
to Machine, além da faixa título) embalam a primeira metade do show.
O calo aperta quando
Déjà Vu, de seu último álbum, abraça o repertório e dá força ao
discurso da turnê.
Um trecho de "Mother" no player abaixo. Captação (Carmênio José).
Ainda
que ignorada solenemente pelo público, a trinca de
Is This the Life We Really Want? ainda conta com as belíssimas
The Last Refugee e
Picture That, abrindo caminho para o ponto mais alto da primeira
metade do show, com
Another Brick in the
Wall e seu coral coreografado de crianças. É quando o telão espelha a
palavra RESIST e o estádio se transforma em um verdadeiro pandemônio nos dois
dias de show.
Roger
Waters não tem medo. Afinal, artistas autênticos não tem medo. Roger criticou Trump
ao redor do mundo, mas especialmente em seu país, cruzando o território
americano em meio a protestos, perda de patrocínios (e uma arrecadação histórica)
e não baixou a cabeça. Por isso seria
muita ingenuidade achar que faria isso aqui.
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Foto: Fábio Tito |
Ao
estampar o nome de um dos candidatos à Presidência em uma lista de neofascistas
pelo mundo, Roger Waters sabia a briga que compraria.
E comprou. Com um palco modificado espelhando
outro de seus trabalhos mais engajados, o seminal
Animals, trouxe
Dogs e
Pigs como auge de um ódio capitalizado
ao longo de anos. É quando o show deixa de ser “Nós + Eles” para se transformar
em um “Nós Contra Eles”. Manifestações tomaram conta do estádio em ambos os
dias, mas especialmente no primeiro, pelo fator surpresa, a sensação era de que
a qualquer momento o caos pudesse explodir no lugar.
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Foto: Fábio Tito |
Assistindo
ambas as apresentações é impossível não se comover com o discurso do baixista
do Pink Floyd. Não se trata de uma birra idiota, mas um trabalho de
conscientização com o que está acontecendo ao redor do mundo e, agora,
infelizmente, no Brasil. Caso cada uma daquelas 45 mil pessoas que compareceram
ao show lessem as letras das músicas na sequência, tudo faria sentido.
TUDO! The Last Refugee e Picture
That não estavam antes de Wish You
Were Here a toa. Money não
aparece ante a faixa-título da turnê por coincidência. No ponto alto da turnê,
o que era uma mensagem de conscientização soava apenas como entretenimento, uma
balada de amor, certamente o sentimento menos existente naquele estádio. E o
ódio por ser desafiado por um artista “inglês e cheio de grana” assustou o público.
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Foto: Fábio Tito |
Na
reta final do show Roger Waters adotou posturas diferentes nas duas datas em
SP. Enquanto na primeira estamparia a hashtag #EleNão por duas vezes no telão,
no segundo parecia mais contido, porém não inibido. Discursou, ironizou o
público. Foi um autêntico artista. Encarou vaias com ironia, sorriu para quem
queria o ódio e mostrou que estava do lado certo.
Já Mother (outra que
desafia o autoritarismo às vésperas de um emergente turbulência anunciada no país) traz
esperança, assim como o conforto extasiante de Comfortably Numb. Quando o show ganha números finais Roger se despede.
Ao deixar o palco, obviamente ovacionado, tem a certeza de mostrar que a música
vai muito além daquilo que se toca, mas diante de um público que cada vez mais
alimentado pelo ódio, isso pouco importa.
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Foto: Fábio Tito |
Mais
que um show, a passagem de Roger Waters por São Paulo foi um alerta para o que
está por vir. Foi doloroso e triste, nunca em minha vida saí de um show com
tamanha agonia e medo. Jamais imaginamos viver a mesma atmosfera de Pink no
filme The Wall. Jamais pensamos que a artificialidade pregada em
Welcome to Machine seria a tônica de uma
turnê tão importante. E quem entendeu isso certamente chorou, chorou como
nunca, mas dessa vez não foi só pelos belos acordes de clássicos que há anos se
tornaram trilha definitiva de suas vidas.
Waters segue em 'campanha'. Até o final do mês ele toca em Brasília (13), Salvador (17), BH (21), RJ (24) e Curitiba (27), encerrando a perna brasileira da turnê
Us + Them em Porto Alegre (30). Em breve teremos mais notícias dessa já inesquecível quarta digressão do baixista do Pink Floyd pelo país.
Ouça uma das mensagens do músico durante um dos shows em São paulo.
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