UMA GAROTA CHAMADA GERTRUD 1.544
Os cabelos loiros brilham com o
excesso de luz. Fica encarando a própria imagem e congela por alguns instantes.
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Gertrud tem 19 anos. É o que
diz na sua pulseira digital presa no pulso esquerdo. A lembrança mais antiga da
garota remonta ao déjà vu de fixar o olho por horas, dias, semanas, meses,
anos, apenas em paredes brancas. O excesso de luminosidade sempre a incomoda.
Luz artificial. Conhece o sol por imagens digitais. O silêncio é perturbador.
Usa sempre um único tipo de vestimenta - uma roupa preta colada ao corpo. Só
conhece uma temperatura: 24°C, regulado por um ar condicionado. Mudo!
Visualizou apenas uma forma humana: seu instrutor. A fala robótica, o
escafandro na cabeça, os olhos sem brilho – uma postura cênica engessada que
impossibilita definir o que exatamente seja ‘aquilo’. Não há diálogo.
Nunca viu outra pessoa ao
vivo. Nem homem, nem mulher. Só vê e minimamente interage com a máquina
andrógina que aparece religiosamente uma vez por semana. Já chegou a duvidar de
alguma existência humana semelhante à dela. Em seus pesadelos, só existem máquinas
que comandam tudo. Ela é a única sobrevivente da antiga raça. Gertrud não se
lembra de nada relevante acontecido além de alguns meses. Na verdade, só
lembra-se das malditas paredes brancas e a luz predadora. Mesmo quando fecha os
olhos. E como um arquivo baqueado, a memória sofre diversos apagões. De tempo
em tempo ela passa por um processo de ‘imposição magnética’ que deleta coisas
dentro dela. Não tem a mínima ideia de quem comanda esse troço, mas não há o
que fazer a não ser ler e reler os manuais de procedimento. Uma espécie de
Bíblia daquele lugar sem religião ou Deus.
Gertrud está preparando-se
para a chamada ‘vida adulta’ fora da bolha. Na tela da sua pulseira há uma
legenda com nome e sobrenome: Gertrud 1.544. Todos os sobrenomes são números. Esse
é o dela. Atrás da orelha direita está afixado um chip. Dá pra sentir a
saliência ao escorregar os dedos pela pele.
Desde que a Terra foi
evacuada em 2078, e lá já se vão um centena de anos, e a forma como a
humanidade sobreviveu ainda é uma incógnita na cabeça dela. Daqui a
alguns meses, completa 20 anos, só então vai conhecer um novo estágio. Segundo
o instrutor, desde que nasceu mora na Estrela Child #26. Não tem a mínima ideia
quem sejam seus pais. Quando for relocada para alguma Estrela Human, outra
microestação dentro do complexo M-350 (e onde não há crianças ou adolescentes),
sabe que oficialmente estará adentrando outra etapa. Foi o que leu nos manuais.
Está entalhado numa placa do
seu quarto que todo o complexo soma 350 microestações. Dentro daquela casa
estéril aonde [supostamente] vive há quase duas décadas, o único resquício de
algo fora dos padrões rígidos em que está enquadrada é um estojo de maquiagem.
Todos os dias ela se maquia como se fosse encontrar alguém ou estivesse prestes
a sair daquele lugar. Olha seu rosto no único espelho do local e não consegue
esboçar um único sorriso. Gertrud acha tudo muito confuso. Todo o dia se
pergunta: Por que aquela luz azul fica piscando intermitente próximo à porta de
saída? De todo o modo falta poucos meses para aquela porta se abrir. Acredita
que algum dia possa decifrar o maldito mistério da existência em M-350. Caminha
na direção oposta ao espelho e olha para trás. Os cabelos loiros brilham com o
excesso de luz. Fica encarando a própria imagem e congela por alguns instantes.
Tem certeza absoluta que
alguém em algum lugar lê os seus pensamentos. Um dia ainda vai descobrir
quem é.
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