O tratador de cavalos



Crônica #63 publicada no Diário de Santa Maria 04/10/2013 | N° 11.807 

Entre um mate e outro, Gaudêncio começa a arrumar suas coisas. Por sete anos ele tratou dos animais daquela Cabanha. Nunca houve distinção no seu trabalho com o bicharedo, mas no correr dos anos, desenvolveu uma predileção por Vento Norte, um cavalo crioulo negro. Naquela manhã de despedidas, o sol ressurge brilhante, o céu se abre límpido num azul envernizado, resplandecente. Ao ver a cardoa pendurada na entrada da cocheira, larga a mala e resolve dar um último trato no animal preferido. Um adeus cheio de mimos. 

Abre a cancela e adentra a morada do reprodutor. Ele prontamente responde com murmúrios (relinchos) de aprovação. Com a escova na mão, Gaudêncio começa a acariciar o pelo do cavalo. Inicia pelas crinas, penteando madeixa por madeixa. Também utiliza os dedos em busca de diminutos nódulos. Não encontra. Sabe que sempre fez um bom trabalho. Passa as mãos pelo restante do corpo de Vento Norte, e procura lesões ou alguma anomalia mínima. Nada. Pega uma escova mais macia e parte para as orelhas e focinho, mas não localiza secreções nas bordas das fuças e no restante. O olhar do cavalo diz tudo – há cumplicidade e confiança com o tratador. Complementando a lida, Gaudêncio passa uma esponja úmida junto aos olhos e narinas, e por último higieniza o couto da cauda. 

Tem mais. Depois, desliza a mão por uma das patas do cavalo e aperta ligeiramente a zona do tendão na parte inferior da perna, flexionando o membro. Limpa os cascos, retira uma quantidade mínima de sujeira alojada na sola e junto à ferradura. O casco tem um aspecto saudável e como na maior parte do tempo que esteve por ali, não há sinais de infecção ou rachas. 

Com raro zelo, avança lentamente por cada centímetro da pelagem que possa ter sido esquecido. Com um pano de algodão macio, retira insignificantes vestígios de sujidade. Ele, agora como um expatriado de sua condição, sabe que vai sentir falta daquela rotina. Beija o focinho do cavalo e abraça seu pescoço. As lágrimas escorrem. O homem recolhe o material utilizado – guardando-o na bancada, para só então, fechar a cancela. Sai dali sem olhar para trás.

Mesmo fora da ativa, Gaudêncio sempre será um tratador de cavalos. Está no sangue daquele homem. Apesar da aparente tristeza em forçadamente abandonar o que não gostaria de deixar de lado, ele não está preocupado. Bem pelo contrário, sabe que tanto os movimentos de vida, quanto o sistemático ritmo do tempo, precisam encontrar novas direções. Vidraça limpa na janela, folhas verdejantes nas árvores. Renovação. Algo morre no tempo correto, para logo depois renascer em outra estação adequada. Quando compreendemos o significado do nosso mate, tudo fica mais claro. 

Ao roncar da bomba, mete o chapéu na cabeça e segurando firme sua mala, o velho tratador cruza a porteira rumo à estrada do dia seguinte. A imagem de Vento Norte continua pinoteando dentro dele. 

Tal como o Gaudêncio do poema, ele sabe: 

“Não vai ficar pra semente / quem nasceu pra ventania”.

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