Ouvindo os conselhos do doutor

Crônica #59 publicada no Diário de Santa Maria 13/09/2013 | N° 11789

Congestionamento. 

A rua está parcialmente trancada por causa de centenas de jovens reunidos em torno de uma distribuidora de bebidas. Estudantes? Quem sabe? Ele permanece o tempo todo entre freio de mão e embreagem, fica dando uns cutucões de leve no acelerador e a mão direita não sai da primeira marcha. A sinaleira está distante. Tem a impressão que os intervalos de mudança do semáforo estão durando o dobro do tempo. A cada troca de cor, o automóvel avança apenas alguns centímetros. Não emula nenhum tipo de protesto. Afinal, já há protestos demais. Buzinas. O amontoado de luzes, faróis e lanternas traseiras projeta um conglomerado de imagens borradas de vermelho, tons alaranjados e similares. Não tem como sair dali, sem chances. Já está atrasado para o seu compromisso, não vai chegar na hora nem com intervenção divina. 

18h15min.

Imóvel, via celular, dá uma conferida no e-mail, responde mensagens, enquanto ouve Hoje nos Esportes, na rádio Gaúcha. Nando Gross diz que o Internacional precisa ganhar a próxima partida para avançar no campeonato. Não vai ganhar...

Antes do break comercial, Nando toca Changes do Black Sabbath. “I’m going through changes”. A fila não anda. Ficar parado no trânsito é uma espécie de divã involuntário. Dentro do automóvel, um terapeuta imaginário lhe indica o caminho a ser percorrido.



– Você precisa parar de criar expectativas demasiadas – diz o especialista. 

Ele baixa o volume do rádio e tenta prestar a atenção no psicólogo.

Não é apenas uma voz interior, acredite – ele vê um homem confortavelmente reclinado no banco do carona. O estranho continua falando. 

– Você se lembra do Dr. House, da série de TV? 

– Claro, sou fã do doutor – responde o motorista. 

– Então já ouviu as palavras do filósofo Jagger: você não pode sempre ter o que quer. Dessa forma, o personagem de Hugh Laurie introduzia um de seus bordões favoritos, extraído de uma música dos Rolling Stones (You Can’t Always Get What You Want). Uma frase aparentemente depressiva, não concorda? 

Balança a cabeça positivamente e fala: 

– E daí, quem sabe, você encontra o que precisa, é isso né - but if you try sometimes, you just might find you get what you need!

 

Pois é, por outro ângulo, esse conselho pode soar animador. Afinal, se você tem o conhecimento prévio de que nem sempre as coisas sairão como você quer, há chances de se decepcionar um pouco menos com as pessoas e com a vida. Muitas vezes esse pessimismo disfarçado pode ser uma forma de otimismo. Ah, e pare de cobrar tanto a si mesmo. Ok? – complementa o doutor. 

Logo após, ao término de sua “análise” preliminar, como num passe de mágica, o terapeuta desaparece. No mesmo instante, a fila anda e o motorista finalmente rompe a faixa de segurança cruzando o ponto crítico do congestionamento. Não tem outra, poucos metros depois, ele para o carro, abre o porta-luvas e procura Let It Bleed, dos Stones. Seleciona a faixa nove do CD, dá o play e ouve o coral inglês cantando a frase do Doutor. 

Mick sabe das coisas.

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